Sabemos que sempre que o assunto sobre qualquer tipo de representatividade entra em cena, ele vem acompanhado de muitas críticas, muito haterismo e de muita gente falando coisas como “este mundo tá chato demais”, “é muito mimimi”, etc. Mas todo mundo com um pouquinho de empatia e com capacidade para se colocar no lugar do outro pôde perceber o impacto de Pantera Negra com o público negro ou de Mulher-Maravilha e, mais recentemente, Capitã Marvel dentre as mulheres.
Representatividade é muito mais que mimimi. É sobre se ver em cena, sobre poder apreciar através do seu semelhante a sensação de empoderamento e lugar de fala. E nada melhor para tratar de empoderamento do que um filme de super-herói/super-heroína, não é mesmo?
Embora seja notório que ainda há muito a se evoluir na representatividade feminina e afrodescendente nos longas de heróis, há uma comunidade que ainda busca um avanço mais significativo no gênero. Trata-se, é claro, da representação LGBTQ. Nem no Universo Cinematográfico da Marvel, nem no da DC, tivemos a oportunidade de conferir um super-herói gay, bissexual ou trans. E chegou a hora de mudar isso.
É importante destacar que neste contexto, enquanto o cinema ainda tem muito a caminhar, as séries de TV têm brilhado consideravelmente. Especialmente as da DC, exibidas principalmente pela CW (Warner, no Brasil). Arrow, The Flash, Supergirl e Legends of Tomorrow contam não apenas com personagens não-heteronormativos, mas com heróis. Supergirl, inclusive, na atual temporada introduziu uma super-heroína trans, interpretada por uma atriz trans (Nicole Maines). Ainda no chamado Arrowverse, o canal foi atrás de uma atriz lésbica para viver a Batwoman (Ruby Rose). A maioria dos personagens são bem desenvolvidos e o tema é sempre inserido de forma natural. O mesmo acontece nas séries da Marvel, como Agents of S.H.I.E.L.D. e Runaways.
Antes que alguém venha apontar para a monumental distância de qualidade entre as séries-farofa da CW e os universos cinematográficos, o que fica é que o público apaixonado por quadrinhos e super-heróis está sim aberto a lidar com a diversidade em cena, falta apenas um pouco mais de coragem dos estúdios. Nas HQs, por exemplo, os fãs também já se acostumaram com personagens da comunidade LGBTQ. O Flautista (DC) e o Estrela Polar (Marvel) foram marcos de representação lá no início dos anos 90. Lembrando que até 1989, havia uma proibição expressa da CCA (Comics Code Authority) sobre a presença de personagens gays nos quadrinhos dos Estados Unidos.
Já passou da hora de Hollywood investir em heróis gays, trans ou bisexuais. E, aqui, é importante reforçar que a representação precisa ser aberta, clara e transparente. Não dá mais para, em pleno 2019, ficarmos lidando com este tipo de “homosexialidade Dumbledore”. Ou seja, aquela que a autora fala que existe, mas que não é vista em cena em momento algum. Na Marvel, tivemos recentemente o caso da Valkyrie em Thor: Ragnarok. Tessa Thompson chegou a revelar que interpretou a personagem como bissexual, mas nada que sugira isso apareceu na tela no corte final. Uma cena de Valkyrie na cama com outra mulher chegou a ser rodada, mas ficou de fora do filme. Outro longa que cortou uma cena de conotação LGBTQ foi Pantera Negra. Uma sequência que trazia um flerte entre Ayo (Florence Kasumba) e Okoye (Danai Gurira), ambas integrantes da guarda de Wakanda, chegou a ser exibida para a imprensa, mas tampouco sobreviveu ao último corte.
Antenado com o momento, e cheio de dinheiro com os sucessos de Pantera Negra (US$ 1,3 bilhão nas bilheterias mundiais) e Capitã Marvel (US$ 1,1 bilhão e contando), o todo-poderoso da Marvel Studios Kevin Feige, em entrevista recente, revelou que é questão de tempo para um super-herói LGBTQ chegar às telonas. No mesmo sentido, Victoria Alonzo, chefe de produção da Marvel, destacou que “o mundo está pronto” para que isso ocorra, e reforçou: “Todo nosso sucesso é baseado em pessoas que são incrivelmente diferentes. Por que gostaríamos de ser reconhecidos por apenas um tipo de pessoa? Nossa audiência é global, diversa e inclusiva.”
Além da importância de dar voz para uma significativa parte de seus fãs, a Disney/Marvel deve pensar até mesmo no conforto de seu sucesso. Explico: seus filmes têm sido praticamente à prova de crítica e Capitã Marvel está aí para provar que a companhia fez um universo tão consolidado que sobrevive também aos haters espalhados pelo mundo. Um herói LGBTQ renderia ataques, é verdade. Talvez o filme fosse proibido em alguns países ultraconservadores. Mas nada capaz de abalar o estúdio. Diante disso, há quase uma responsabilidade em ousar, em buscar o diferente. Quanto aos haters, eles estarão presentes nas redes, e até mesmo nas salas de cinema. Ou você acha que vão deixar de assistir a Vingadores 5 por causa de Carol Denvers?
Dentre os mais conservadores, há sempre o argumento de que personagens LGBTQs podem influenciar jovens e crianças, o que não faz o menor sentido. Gays, lésbicas, bis e companhia passaram a vida toda assistindo a personagens e relacionamentos héteros no cinema (na TV, nas revistas, na família e na igreja) e isso não fez com que mudassem suas orientações.
A diversidade está presente em nossa sociedade, e cabe ao cinema reproduzir isso. A falta de heróis da comunidade LGBTQ não fará jamais uma pessoa mudar sua sexualidade, mas afetará sim sua sensação de ser representada. Em se tratando de minorias que são constantemente vítimas de violência, preconceito e intolerância, é papel da arte lhes dar lugar de fala. Seja na Marvel, seja na DC, o cinema precisa de um super-herói LGBTQ. E logo.