Desde que a ferramenta do audiovisual foi enfim empregada para contar histórias, dando origem ao que chamamos de cinema, os livros sempre foram fontes de inspiração. Porém, devido às limitações técnicas e demais recursos práticos, alguns deles, por muito tempo, eram tidos como inadaptáveis. Hoje, com todo aparato tecnológico existente e depois de tudo que já foi feito, é difícil afirmar que algo da mídia ainda se enquadre nessa premissa. Claro, do ponto de vista técnico, pois quando vamos para o textual, nos deparamos com outros pontos que nos leva a questão levantada.
Exatamente o que é notado nos trabalhos do lendário escritor estadunidense Thomas Pynchon, de 77 anos. Um artista venerado internacionalmente, vencedor de importantes prêmios literários e que possui, dentro da ficção, uma obra multifacetada, que aborda diversos campos, como história, filosofia, parapsicologia e ciências exatas. Onde também é um sujeito recluso dos holofotes, que nunca sequer concedeu entrevistas ou pousou para fotos, tendo uma vida simples com sua mulher e filho.
Os enormes contos de Pynchon possuem uma complexidade latente e ignoram regras básicas de construção narrativa. Por exemplo, o autor não ver problemas em inserir (ou descartar) dezenas de personagens e subtramas paralelas, dentro de suas fábulas excêntricas. Deixando muitos leitores perdidos em meio a tanta informação sobrevinda. De modo que, mesmo com todo sucesso e reconhecimento, jamais um dos seus livros havia sido transposto para as telas, justamente porque nenhum produtor se atrevia. Uma vez que, além de desenvolver os inúmeros temas em questão, teria que lidar com a estrutura original do texto e o não envolvimento do escritor.
É aí que entra Paul Thomas Anderson, um homem que, não por acaso, é um dos profissionais mais cultuados da indústria cinematográfica mundial, pois, com apenas 44 anos de idade, construiu uma carreira brilhante por realizar obras que, além de possuir ampla riqueza técnica e estética, detém de um enorme leque de personalidades, tratam de assuntos delicados e dialogam de maneira singular com a plateia.
Isso, desde os jovens clássicos ‘Boogie Nights: Prazer Sem Limites‘ (1997) e ‘Magnólia‘ (1999), quando, quase emulando os mestres Robert Altman, Martin Scorsese e Jacques Tati, discutiu sobre homossexualidade, incesto, preconceito, vícios e violência; até sua fase mais dura e intimista, que se espelha em Terrence Malick, Sidney Lumet e Jonathan Demme, nas também obras-primas ‘Sangue Negro‘ (2007) e ‘O Mestre‘ (2012), que discorrem questões pungentes, como família, fanatismo, ganância e religião.
Ou seja, é difícil achar, atualmente, um cineasta que se encaixe tão bem nos padrões citados e que estivesse comprometido a fazer algo à altura do autor, que não o P. T. Anderson. E perpetra o feito ao entregar este fabuloso ‘Vício Inerente‘ (2009), detentor de elementos e características que marcaram tanto a obra do escritor, quanto a do diretor.
Estabelecendo sua trama no agitado início dos anos 70, na Califórnia, onde o movimento hippie e a contracultura eram cada vez mais presentes na mente da população americana, também atormentada pela Guerra do Vietnã e chocada com a carnificina promovida pelos seguidores de Charles Manson, a mesma leva que vivia mergulhada em drogas, o diretor inicia a jornada do detetive particular Doc Sportello (Joaquin Phoenix), quando sua ex-namorada e amada Shasta Fay (Katherine Waterston) o contrata para investigar um esquema de extorsão envolvendo o seu novo amante ricaço, Michael Z. Wolfmann (Eric Roberts).
A partir daí, iniciasse uma investigação incessante por pistas de algo que não se sabe ao certo o que é ou qual direção se tomar. Nesse percurso, Doc começa a descobrir inesperadas informações que o leva a lugares estranhíssimos, situações surreais e figuras pra lá de bizarras, que, de forma indecifrável, talvez estejam ali para acrescentar à trama ou simplesmente confundir mais ainda a linha de raciocínio do investigador (e espectador).
Só que, a bem da verdade, pouco importa ou interessa, pois, se formos analisar rapidamente veremos que, mesmo com todos os curiosos acontecimentos, a resolução do caso advém de forma simples e direta. No fim das contas, tudo acaba soando como perfumaria de luxo, já que o conteúdo dos casos paralelos é rico em temas e pode gerar teorias mais profundas.
Contando com o que talvez seja o design de produção mais sofisticado de sua carreira, principalmente em estética visual, devido à lindíssima fotografia neo-noir de Robert Elswit, que, alternando paletas coloridas e lentes cristalinas, confere um tom atmosférico pitoresco àquele universo, Anderson segue à risca o espirito de Thomas Pynchon e cria uma narrativa descompromissada, que mais parece um quebra-cabeça, onde a trama vai sendo montada com o tempo e tudo começa a fazer sentido, ou não. Uma linha tênue entre inovação e erro, isso porque parte do público pode desistir do longa, já que não é fisgado instantaneamente – ainda que haja uma narração em off apenas para situá-lo.
Os planos-sequências (marca do cineasta) se fazem presentes aqui novamente e soam cada vez mais importantes nas cenas empreendidas. Bem como alguns closes panorâmicos e pequenos clipes contemplativos, ou mesmo líricos, acompanhados pela bela trilha sonora do já parceiro Jonny Greenwood (músico da banda Radiohead) – como aquele em que Doc e Shasta correm na chuva, ao som da canção Journey Through the Past, de Neil Young.
Falando nisso, todo elenco parece conectado e as figuras que interpretam funcionam maravilhosamente bem. Ainda em 2010, quando planejava adaptar o livro, P. T. Anderson queria que Robert Downey Jr. fosse Doc Sportello, mas devido a problemas de agenda, o papel caiu no colo de Joaquim Phoenix, que vivendo a melhor fase da sua carreira não desperdiça a chance e entrega um sujeito estranho, mas também doce e engraçado, conquistando de pronto o espectador.
Igualmente, a pouco conhecida atriz Katherine Waterston oferece à sua Shasta uma ternura genuína e consegue ser sexy quando deseja. Mas quem rouba a cena aqui é o experiente Josh Brolin, interpretando o maluco oficial Christian “Pé Grande” Bjornsen. Sem nenhum tipo de histeria, nos poucos momentos que tem em tela, Brolin, como muito poder interpretativo, protagoniza as cenas mais catárticas e hilariantes do longa.
Deste modo, Paul Thomas Anderson nos brinda, mais uma vez, com um trabalho primoroso, de essência categoricamente lisérgica, mas sem os exageros psicodélicos que se imaginava. E que, diferente do hilariante marketing inicial divulgado, carrega em seu universo uma forte tensão e grande peso dramático, abrindo espaço para comédia apenas no jeito de ser dos personagens. Como até deve se encaixar no gênero do romance, pelo centro das ações do protagonista estar geralmente ligado a seus anseios amorosos. Em suma, é um ótimo filme, imperdível para quem aprecia cinema de qualidade.