O Bebê do Lobisomem
O terror é um gênero específico e muito celebrado. No Brasil, jovens cineastas arriscam-se cada vez mais pelo segmento, que tem o imortal Zé do Caixão como ícone máximo em nosso cinema, cultuado internacionalmente. Enquanto muitos se enveredam por tentar reproduzir a essência do que é feito em outros países, em especial os EUA, uma dupla de diretores de São Paulo ousa seguir por um caminho oposto, um caminho mais interessante e criativo.
Marco Dutra e Juliana Rojas apostam na regionalidade e em nossos problemas sociais para traçar paralelos e criar daí o medo. Seus filmes funcionam como críticas, cujo horror vem de forma entranhada nas mazelas do dia a dia de nossa realidade muito sofrida.
Ao olharmos os trabalhos anteriores da dupla, percebemos que o novo As Boas Maneiras soa como homenagem e certo retalho do que fizeram até o momento, porém, transcendendo todo o acervo dos cineastas . Existe aqui essa tênue linha do real com o fictício, retirado de seu filme de estreia, o terror social Trabalhar Cansa (2011). De Quando Eu Era Vivo (2013) temos a estética e clima de terror intimista e minimalista. Enquanto de Sinfonia da Necrópole é extraído a musicalidade e a beleza que mesmo as trevas reservam.
Como de costume, o roteiro escrito pela própria dupla de cineastas conta a história Ana (Marjorie Estiano), uma interiorana que cometeu um dos maiores pecados que uma mulher de cidade pequena pode cometer, ficou grávida sem ser casada e terá o filho sozinha. Já começam aí as críticas implícitas, apontando o sistema social arcaico, de como a mulher ainda é vista por uma sociedade hipócrita, transbordando de valores antigos, completamente defasados. Como contramedida, seus pais a enviam para a cidade grande, onde a mantêm escondida até a criança nascer, ou quem sabe para nunca mais voltar.
Na cena de abertura, a ingênua protagonista procura uma babá / empregada para ajuda-la nas tarefas domésticas, durante a fase crítica de sua gravidez. A muito bem vinda ajuda chega nas formas da ótima Isabél Zuaa, que interpreta Clara. Logo, as duas se entrosam e a relação aos poucos vai se transformando em uma amizade, um elo de confiança. Clara é por si só uma personagem dona de uma psique complexa e levemente misteriosa. Aos poucos também, Clara – a verdadeira protagonista aqui – vai percebendo mudanças de comportamento na patroa, que variam de caminhadas noturnas pelas ruas, lanches na madrugada e outras esquisitices, tudo em nome de um pretenso sonambulismo.
As Boas Maneiras é o filme mais ambicioso da dupla de diretores, que confia numa direção de arte caprichada, somada a uma fotografia belíssima – as noites na cidade, quando Ana sai para caminhar parecem pinturas, um destes momentos inclusive é revelado no trailer. Além disso, As Boas Maneiras também faz uso de eficientes efeitos visuais, que criam inteiramente um dos personagens.
Na sua primeira metade, As Boas Maneiras soa mais como um filme de Dutra e Rojas, extremamente enigmático, fazendo menção a obras como O Bebê de Rosemary (1968), e destacando as dores da maternidade como elemento chave desta narrativa. Tal associação se torna inevitável. Este é também o trecho com maiores possibilidades, no qual ainda estamos montando em nossas mentes, através de um verdadeiro leque, o caminho que a obra irá seguir em sua história.
Na segunda metade, o longa se transforma completamente, abraçando de vez as tintas de produções do gênero e se aproximando mais do que verdadeiramente conhecemos como terror. Aqui, Dutra e Rojas se cobrem nas convenções do gênero, focando mais no explícito e deixando o subentendido para escanteio. Neste momento é que o filme aparece como obra do fantástico, sem grande espaço para a sutileza, e incluindo muito do aspecto do cinema B, do trash, e de produções verdadeiramente de terror.
Obviamente, antes que eu esqueça de mencionar, essa ruptura ocorre após o nascimento da criança, onde o talentoso ator mirim Miguel Lobo substitui Estiano como parceiro de tela da protagonista Zuaa. São muitas homenagens e referências, incluindo algumas bem criativas visualmente, que remetem aos clássicos da Universal, vide Frankenstein (1931).
As Boas Maneiras fala também sobre o distanciamento e sobre imposições sociais, refletindo sobre os marginalizados, os que não se encaixam e como não aceitamos o que é diferente. O longa também guarda uma sincera relação de mãe e filho, na qual a amorosa guardiã, mesmo sem ser a progenitora, faz de tudo para resguardar sua cria. Mãe só há uma, mas a biologia não tem nada a ver com isso.