domingo , 22 dezembro , 2024

Festival do Rio | Severina – Literatura, paixão e furtos

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A menina que roubava (mais que) livros

“Que poder tem o amor senão perdoar?” Com os dizeres de William Carlos Williams se inicia Severina, terceiro longa de Felipe Hirsch e seu primeiro voo solo enquanto roteirista e diretor. O filme, que se passa no Uruguai, narra a história de um livreiro (Javier Drolas) intrigado com uma mulher (Carla Quevedo) que passa a frequentar a loja e roubar os livros. O primeiro furto o causa curiosidade, mas por uma razão que o mesmo não é capaz de explicar não a impede. No segundo, se espanta por ela ter voltado à cena do crime, conseguindo passar pelo detector sem o dispará-lo. E na terceira, já envolvido por uma mistura de curiosidade, interesse e indignação, não a permite prosseguir sem intervir. Ali, ele já está nitidamente rendido por algo que não é possível explicar, uma natureza fugidia da personagem que se apresenta – somente então – como Ana e o captura para um delírio amoroso.

A força do longa está em materializar na personagem de Ana a pulsão inexplicável dos sentimentos com os quais o personagem é tomado e – na metáfora do filme – roubado. Todas as vezes que Ana rouba livros, o detector não consegue captar o ato, mas o ato é visto, e aqui Hirsch dialoga com esse descompasso sensorial capaz de racionalizar o fato – mas incapaz de apontar seu processo – de forma que o personagem do livreiro questiona Ana sobre como executa os furtos sem ser percebida e sua resposta é um simples “Se eu contar não é mais um segredo”.



Ana escapa dos sensores, das mãos, do previsível e circula como fluido nas engrenagens do romance entre ela e a literatura, o livreiro e ela, o livreiro e a literatura. E nesse aspecto é necessário apontar que o filme consegue entrar na metalinguagem com elegância, se aproveitando inteligentemente do cenário que se ambienta: a livraria. O lugar se torna um emaranhado poético que passa do romântico para a melancolia sufocante da estagnação do personagem, e também não à toa a direção enfatiza o fato da obra se dar em uma cidade decadente, na qual o que sobra – além das ruas desertas – são os estacionamentos. A dificuldade do personagem em tomar uma decisão que lhe confira alguma liberdade é notória, e o que podia ser visto como uma paixão, era uma obsessão que servia apenas para ofuscar essa impotência.

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Em SeverinaHirsch reforça seus laços com a literatura enquanto principal influência dramatúrgica em sua carreira, as citações não são poucas – principalmente levando em consideração a profissão do protagonista- porém,  mais forte que essas pontuações é a presença do paralelismo com o conto de Borges O Zahir e a ideia de que algo, sozinho, pode seduzir multidões. Isso realmente se concretiza na obra quando, ao buscar por Ana em livrarias, o personagem descobre que o que se passou com ele também ocorreu com tantos outros e “ele não seria o último”. Tal como o conto de Borges menciona que o próximo passo da obsessão seria causar uma total incapacitação na qual se alimentar sozinho não seria mais possível, no longa de Hirsch surge a figura do pai/namorado (Alfredo Castro) que acaba em coma e após a internação, por uma questão financeira, é levado para a casa do protagonista, mais precisamente seu quarto de trabalho. O desdobramento dessa situação é o que faz o filme abrir rumo a libertação de seu personagem central como uma espécie de quebra do feitiço.

Enquanto diretor e roteirista, Hirsch demonstra um notável aprimoramento de seu estilo, dando tintas ao seu filme, responsáveis pela desafiadora tarefa de transitar entre atmosferas etéreas que corriam o risco de uma pretensão desmedida ou até mesmo um ritmo enfadonho. Mas habilidosamente, ele consegue escapar desses abismos para um trabalho de construção de personagens bastante eficaz. A trilha realizada por Arthur Faria conversa com a cidade, tão personagem e importante para o desenvolvimento quanto o casal central, preenchendo com sons aerados e densos o vazio estarrecedor do que transcorre e vaza entre os dedos.

Severina aponta que a solução entre o sonho e a realidade está em se recolocar perante ambos com a precaução de não estar preso a nenhuma delas em um compromisso maior consigo mesmo, pois não há como não sermos atravessados pela exterioridade, mas é preciso atravessá-la também.

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“Que poder tem o amor senão perdoar?” Com os dizeres de William Carlos Williams se inicia Severina, terceiro longa de Felipe Hirsch e seu primeiro voo solo enquanto roteirista e diretor. O filme, que se passa no Uruguai, narra a história de um livreiro (Javier Drolas) intrigado com uma mulher (Carla Quevedo) que passa a frequentar a loja e roubar os livros. O primeiro furto o causa curiosidade, mas por uma razão que o mesmo não é capaz de explicar não a impede. No segundo, se espanta por ela ter voltado à cena do crime, conseguindo passar pelo detector sem o dispará-lo. E na terceira, já envolvido por uma mistura de curiosidade, interesse e indignação, não a permite prosseguir sem intervir. Ali, ele já está nitidamente rendido por algo que não é possível explicar, uma natureza fugidia da personagem que se apresenta – somente então – como Ana e o captura para um delírio amoroso.

A força do longa está em materializar na personagem de Ana a pulsão inexplicável dos sentimentos com os quais o personagem é tomado e – na metáfora do filme – roubado. Todas as vezes que Ana rouba livros, o detector não consegue captar o ato, mas o ato é visto, e aqui Hirsch dialoga com esse descompasso sensorial capaz de racionalizar o fato – mas incapaz de apontar seu processo – de forma que o personagem do livreiro questiona Ana sobre como executa os furtos sem ser percebida e sua resposta é um simples “Se eu contar não é mais um segredo”.

Ana escapa dos sensores, das mãos, do previsível e circula como fluido nas engrenagens do romance entre ela e a literatura, o livreiro e ela, o livreiro e a literatura. E nesse aspecto é necessário apontar que o filme consegue entrar na metalinguagem com elegância, se aproveitando inteligentemente do cenário que se ambienta: a livraria. O lugar se torna um emaranhado poético que passa do romântico para a melancolia sufocante da estagnação do personagem, e também não à toa a direção enfatiza o fato da obra se dar em uma cidade decadente, na qual o que sobra – além das ruas desertas – são os estacionamentos. A dificuldade do personagem em tomar uma decisão que lhe confira alguma liberdade é notória, e o que podia ser visto como uma paixão, era uma obsessão que servia apenas para ofuscar essa impotência.

Em SeverinaHirsch reforça seus laços com a literatura enquanto principal influência dramatúrgica em sua carreira, as citações não são poucas – principalmente levando em consideração a profissão do protagonista- porém,  mais forte que essas pontuações é a presença do paralelismo com o conto de Borges O Zahir e a ideia de que algo, sozinho, pode seduzir multidões. Isso realmente se concretiza na obra quando, ao buscar por Ana em livrarias, o personagem descobre que o que se passou com ele também ocorreu com tantos outros e “ele não seria o último”. Tal como o conto de Borges menciona que o próximo passo da obsessão seria causar uma total incapacitação na qual se alimentar sozinho não seria mais possível, no longa de Hirsch surge a figura do pai/namorado (Alfredo Castro) que acaba em coma e após a internação, por uma questão financeira, é levado para a casa do protagonista, mais precisamente seu quarto de trabalho. O desdobramento dessa situação é o que faz o filme abrir rumo a libertação de seu personagem central como uma espécie de quebra do feitiço.

Enquanto diretor e roteirista, Hirsch demonstra um notável aprimoramento de seu estilo, dando tintas ao seu filme, responsáveis pela desafiadora tarefa de transitar entre atmosferas etéreas que corriam o risco de uma pretensão desmedida ou até mesmo um ritmo enfadonho. Mas habilidosamente, ele consegue escapar desses abismos para um trabalho de construção de personagens bastante eficaz. A trilha realizada por Arthur Faria conversa com a cidade, tão personagem e importante para o desenvolvimento quanto o casal central, preenchendo com sons aerados e densos o vazio estarrecedor do que transcorre e vaza entre os dedos.

Severina aponta que a solução entre o sonho e a realidade está em se recolocar perante ambos com a precaução de não estar preso a nenhuma delas em um compromisso maior consigo mesmo, pois não há como não sermos atravessados pela exterioridade, mas é preciso atravessá-la também.

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