domingo , 24 novembro , 2024

Fim da censura – Cinema Italiano livre do cerceamento

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Liberação põe fim a um longo período de restrição da indústria

Há uma frase do diretor italiano Dario Argento que é “na Itália o censor é muito velho e há muitos juízes e psiquiatras que te analisam”. A fala do cineasta é importante visto que tanto seus trabalhos como os de muitos outros (e nessa lista estão incluídos nomes como Federico Fellini e Bernardo Bertolucci) de alguma forma foram afetados pela então vigente censura do cinema italiano.



Foi apenas recentemente que o governo da Itália baniu de vez a legislação que concedia a órgãos públicos, mais especificamente o Ministério de Assuntos Internos, a autoridade de editar ou banir filmes que contivessem material tido como “impróprio”. Em uma declaração sobre a decisão o Ministro da Cultura Dario Franceschini apontou para a nova mudança onde “o sistema de controle e intervenção que ainda permite o Estado em intervir na liberdade de artistas está definitivamente encerrado”.

A prática de censura no cinema italiano já é bem antiga, remontando até mesmo antes do fascismo. Foi a partir de maio de 1914, por meio do Decreto Real n.534 (à época o país era governado pelo Rei Vítor Emanuel III até a adoção de um modelo republicano em 1946) que se estipulou o objetivo de “proibir o público de assistir: espetáculos ofensivos à moralidade, decência pública e cidadãos privados; espetáculos que sejam contrários à reputação nacional e ao decoro ou à ordem pública, ou que possam perturbar as boas relações de eventos internacionais….”.

O cinema já era uma realidade para a Itália no início do século XX

O cenário italiano para esse tipo de decisão, no início do século XX, de certa forma já concedia um clima adequado para que tal decisão viesse a de fato entrar em vigor no ano de 1914. Processos de maior controle sobre todo material cultural que era produzido já existiam desde 1910, onde os prefeitos tinham autonomia para regularizar obras tidas como imorais. Ironicamente, conforme dito no artigo The First Phases of Film Censorship in Italy escrito por Marco Grifo, o pedido por um escritório de regulamentação partiu de uma fonte inesperada.

“O pedido de ter um único escritório central de conceder liberações para os filmes foi feito pelos próprios produtores, de modo a limitar eventuais perdas financeiras que eles poderiam sofrer devido aos gostos individuais dos prefeitos. Também foi uma esperança de estabelecer ordem em um clima de confusão.”

A partir de 1913 essa regulamentação ficou mais ampla com a proposta de lei do parlamentar Luigi Facta no qual um único escritório teria a autoridade para censurar ou liberar quaisquer produções italianas ou estrangeiras que fossem ser exibidas para um grande público. No ano seguinte o verdadeiro processo de censura foi implementado para todo o território onde as avaliações seriam conduzidas por duas comissões compostas por oficiais do Diretório Geral de Segurança Pública e políticos no geral.

Parlamento italiano de 1913 votou pela adoção das primeiras medidas de censura

Quando o governo fascista de Mussolini ascendeu em 1922 ele de início manteve o sistema de comissões regulatórias vigente até então com algumas introduções pequenas de novos elementos que deveriam ser pesados também. Roberto Gulì em seu Film Censorship During Fascism concede um ponto de vista interessante sobre a relação do então novo regime fascista com o hábito já pré-estabelecido de censura.

“Os parâmetros para se avaliar os filmes de acordo com os méritos permaneceram inalterados: os auditores continuavam a procurar por aptidões morais, presença de cenas violentas, repugnantes ou cruéis… até as que pudessem incitar ódio entre as várias classes sociais. O aparente desinteresse durante a aurora do fascismo sobre a censura de filmes é, em parte, devido ao fato que a maior preocupação de Mussolini era, como se sabe, mais relacionada ao controle das notícias e informações do que filmes fictícios.”

O autor prossegue indicando que esse aparente desinteresse foi colocado de lado a partir de 1934 com a criação do Subsecretariado do Estado para Imprensa e Propaganda, quando a responsabilidade de avaliar as produções audiovisuais passou para o Subsecretário de Estado que tinha seu próprio departamento para filmes. 

A chegada do governo fascista de Mussolini apenas intensificou o controle que já existia

Segundo Gulì a censura fascista se diferenciou pois “fortaleceu a chamada censura preventiva, ou seja, na fase de pré-produção, especialmente por meio de manter um controle sobre o roteiro; e a gradativa transferência de poderes cerceadores das comissões revisoras para funcionários mais graduados”.

Com isso em mente a máquina de controle do Estado funcionava com alvos pré-visualizados, ou seja, certas obras nem mesmo precisavam passar pelas comissões para sofrerem proibições como aquelas vindas dos Estados Unidos, França e União Soviética. Isso porque os censores miravam principalmente por obras que contivessem mensagens que batiam de frente com as ideias defendidas pelo governo. 

Um exemplo foi A Grande Ilusão, filme francês de Jean Renoir de 1937, que mesmo vencendo o prêmio de Melhor Conjunto Artístico no Festival de Veneza trazia uma história que criticava a noção de que a guerra é algo que devesse ser almejado (indo contra o pensamento militarista do fascismo) e que estabelecia como palco central um campo de prisioneiros de guerra aonde o diálogo entre soldados de diferentes nacionalidades desmontava quaisquer preconceitos prévios.

“A Grande Ilusão” traz consigo uma forte mensagem pacifista

Outro caso memorável foi o que aconteceu à O Grande Ditador de 1940, a sátira definitiva de Charles Chaplin que explicitamente ridicularizava os movimentos nazista e fascista italiano. A maior parte da Europa só viria a ter acesso a obra no pós Segunda Guerra, porém no caso da Espanha em específico a obra só seria liberada após a morte do ditador Francisco Franco em 1975. 

Dessa maneira o fim da guerra marca um momento de reavaliação da censura italiana, ainda que ela não tenha sido erradicada. Na parte do país que havia sido ocupada pelos aliados houve um cuidado de erradicar toda e qualquer obra que fizesse apologia ao fascismo enquanto que na antiga República de Saló (localizada ao norte do país e que foi o território que Mussolini manteve controle entre 1943 e 1945) manteve-se intacto a estrutura de cerceamento que já existia.

Mesmo com a aprovação de novas leis que em tese deveriam reformar o sistema de avaliação cinematográfica, o decreto de 1945 em que se estipulou a criação de um novo órgão chamado Escritório Central de Cinema permaneceu vivo o hábito de que, na Itália, era necessária a existência de um representante estatal para determinar que filmes deveriam ser banidos ou exibidos; não apresentando grande variação do que já era praticado desde 1914 ou 1922.

Filme de Chaplin permaneceu banido de muitos países da Europa até depois da guerra

É na confusão de poder italiana do período que entra a Igreja como um elemento por vezes decisivo sobre o cinema. No artigo ‘It Existed Indeed…it was all over the papers’: memories of film censorship in 1950s Italy da dupla Daniela Treveri Gennari e Silvia Dibeltulo é indicado como o controle do Vaticano sobre o cinema se consolidou.

 “Isso só foi possível graças a centralização do poder alcançada por Giulio Andreotti.. que operava em concordância com os desejos do Vaticano… Andreotti lembra Montini de todas as operações que ele se encarregou visando uma consolidação da presença católica no cinema italiano. Essas intervenções incluíam uma contribuição financeira ao Centro Católico Cinematográfico; a presença de um representante católico no júri do Festival de Filmes de Veneza…”

A estimativa de obras abolidas durante o período da censura é abordada por Nick Vivarelli em sua matéria Italy Abolishes Film Censorship, Ending Government Power to Ban Movies para a Variety no qual ele, através da fonte original vinda do portal Cinecensura, estima que 247 filmes italianos, 130 norte-americanos e 321 obras de outros países foram abolidas da Itália desde 1944 (isso não contando o período prévio a esse ano) bem como mais de 10.000 obras foram obrigadas a cortar cenas.

Mesmo com o cerco em torno das liberdades criativas, o cinema italiano conseguiu prosperar durante a segunda metade do século XX; entre os anos 50 e 70 o país viu o florescer da melhor época da comédia com obras como Os Eternos Desconhecidos e Amarcord de Federico Fellini. Esse também foi o período que os grandes nomes do audiovisual da Itália surgiram; não só do já mencionado Fellini (que ocupa o topo dos nomes) mas também de Sergio Leone (que conquistaria Hollywood ao remodelar o gênero western), Dario Argento (que uniu o gênero terror à um senso estético apurado), Roberto Benigni (referência na comédia) e muitos outros.

Em suma, o fim oficial da censura no cinema italiano tem um peso considerável tanto prático (ainda que muitos dos filmes historicamente banidos há tempos já tenham sido vistos pelo público) quanto simbólico pois representa o suspiro de alívio de uma indústria que agora poderá autodeterminar quais filmes são indicados para quais segmentos e cujos  cineastas não mais precisaram passar pela experiência de verem suas obras constantemente editadas e cortadas para se adequar ao censor. 

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Foi apenas recentemente que o governo da Itália baniu de vez a legislação que concedia a órgãos públicos, mais especificamente o Ministério de Assuntos Internos, a autoridade de editar ou banir filmes que contivessem material tido como “impróprio”. Em uma declaração sobre a decisão o Ministro da Cultura Dario Franceschini apontou para a nova mudança onde “o sistema de controle e intervenção que ainda permite o Estado em intervir na liberdade de artistas está definitivamente encerrado”.

A prática de censura no cinema italiano já é bem antiga, remontando até mesmo antes do fascismo. Foi a partir de maio de 1914, por meio do Decreto Real n.534 (à época o país era governado pelo Rei Vítor Emanuel III até a adoção de um modelo republicano em 1946) que se estipulou o objetivo de “proibir o público de assistir: espetáculos ofensivos à moralidade, decência pública e cidadãos privados; espetáculos que sejam contrários à reputação nacional e ao decoro ou à ordem pública, ou que possam perturbar as boas relações de eventos internacionais….”.

O cinema já era uma realidade para a Itália no início do século XX

O cenário italiano para esse tipo de decisão, no início do século XX, de certa forma já concedia um clima adequado para que tal decisão viesse a de fato entrar em vigor no ano de 1914. Processos de maior controle sobre todo material cultural que era produzido já existiam desde 1910, onde os prefeitos tinham autonomia para regularizar obras tidas como imorais. Ironicamente, conforme dito no artigo The First Phases of Film Censorship in Italy escrito por Marco Grifo, o pedido por um escritório de regulamentação partiu de uma fonte inesperada.

“O pedido de ter um único escritório central de conceder liberações para os filmes foi feito pelos próprios produtores, de modo a limitar eventuais perdas financeiras que eles poderiam sofrer devido aos gostos individuais dos prefeitos. Também foi uma esperança de estabelecer ordem em um clima de confusão.”

A partir de 1913 essa regulamentação ficou mais ampla com a proposta de lei do parlamentar Luigi Facta no qual um único escritório teria a autoridade para censurar ou liberar quaisquer produções italianas ou estrangeiras que fossem ser exibidas para um grande público. No ano seguinte o verdadeiro processo de censura foi implementado para todo o território onde as avaliações seriam conduzidas por duas comissões compostas por oficiais do Diretório Geral de Segurança Pública e políticos no geral.

Parlamento italiano de 1913 votou pela adoção das primeiras medidas de censura

Quando o governo fascista de Mussolini ascendeu em 1922 ele de início manteve o sistema de comissões regulatórias vigente até então com algumas introduções pequenas de novos elementos que deveriam ser pesados também. Roberto Gulì em seu Film Censorship During Fascism concede um ponto de vista interessante sobre a relação do então novo regime fascista com o hábito já pré-estabelecido de censura.

“Os parâmetros para se avaliar os filmes de acordo com os méritos permaneceram inalterados: os auditores continuavam a procurar por aptidões morais, presença de cenas violentas, repugnantes ou cruéis… até as que pudessem incitar ódio entre as várias classes sociais. O aparente desinteresse durante a aurora do fascismo sobre a censura de filmes é, em parte, devido ao fato que a maior preocupação de Mussolini era, como se sabe, mais relacionada ao controle das notícias e informações do que filmes fictícios.”

O autor prossegue indicando que esse aparente desinteresse foi colocado de lado a partir de 1934 com a criação do Subsecretariado do Estado para Imprensa e Propaganda, quando a responsabilidade de avaliar as produções audiovisuais passou para o Subsecretário de Estado que tinha seu próprio departamento para filmes. 

A chegada do governo fascista de Mussolini apenas intensificou o controle que já existia

Segundo Gulì a censura fascista se diferenciou pois “fortaleceu a chamada censura preventiva, ou seja, na fase de pré-produção, especialmente por meio de manter um controle sobre o roteiro; e a gradativa transferência de poderes cerceadores das comissões revisoras para funcionários mais graduados”.

Com isso em mente a máquina de controle do Estado funcionava com alvos pré-visualizados, ou seja, certas obras nem mesmo precisavam passar pelas comissões para sofrerem proibições como aquelas vindas dos Estados Unidos, França e União Soviética. Isso porque os censores miravam principalmente por obras que contivessem mensagens que batiam de frente com as ideias defendidas pelo governo. 

Um exemplo foi A Grande Ilusão, filme francês de Jean Renoir de 1937, que mesmo vencendo o prêmio de Melhor Conjunto Artístico no Festival de Veneza trazia uma história que criticava a noção de que a guerra é algo que devesse ser almejado (indo contra o pensamento militarista do fascismo) e que estabelecia como palco central um campo de prisioneiros de guerra aonde o diálogo entre soldados de diferentes nacionalidades desmontava quaisquer preconceitos prévios.

“A Grande Ilusão” traz consigo uma forte mensagem pacifista

Outro caso memorável foi o que aconteceu à O Grande Ditador de 1940, a sátira definitiva de Charles Chaplin que explicitamente ridicularizava os movimentos nazista e fascista italiano. A maior parte da Europa só viria a ter acesso a obra no pós Segunda Guerra, porém no caso da Espanha em específico a obra só seria liberada após a morte do ditador Francisco Franco em 1975. 

Dessa maneira o fim da guerra marca um momento de reavaliação da censura italiana, ainda que ela não tenha sido erradicada. Na parte do país que havia sido ocupada pelos aliados houve um cuidado de erradicar toda e qualquer obra que fizesse apologia ao fascismo enquanto que na antiga República de Saló (localizada ao norte do país e que foi o território que Mussolini manteve controle entre 1943 e 1945) manteve-se intacto a estrutura de cerceamento que já existia.

Mesmo com a aprovação de novas leis que em tese deveriam reformar o sistema de avaliação cinematográfica, o decreto de 1945 em que se estipulou a criação de um novo órgão chamado Escritório Central de Cinema permaneceu vivo o hábito de que, na Itália, era necessária a existência de um representante estatal para determinar que filmes deveriam ser banidos ou exibidos; não apresentando grande variação do que já era praticado desde 1914 ou 1922.

Filme de Chaplin permaneceu banido de muitos países da Europa até depois da guerra

É na confusão de poder italiana do período que entra a Igreja como um elemento por vezes decisivo sobre o cinema. No artigo ‘It Existed Indeed…it was all over the papers’: memories of film censorship in 1950s Italy da dupla Daniela Treveri Gennari e Silvia Dibeltulo é indicado como o controle do Vaticano sobre o cinema se consolidou.

 “Isso só foi possível graças a centralização do poder alcançada por Giulio Andreotti.. que operava em concordância com os desejos do Vaticano… Andreotti lembra Montini de todas as operações que ele se encarregou visando uma consolidação da presença católica no cinema italiano. Essas intervenções incluíam uma contribuição financeira ao Centro Católico Cinematográfico; a presença de um representante católico no júri do Festival de Filmes de Veneza…”

A estimativa de obras abolidas durante o período da censura é abordada por Nick Vivarelli em sua matéria Italy Abolishes Film Censorship, Ending Government Power to Ban Movies para a Variety no qual ele, através da fonte original vinda do portal Cinecensura, estima que 247 filmes italianos, 130 norte-americanos e 321 obras de outros países foram abolidas da Itália desde 1944 (isso não contando o período prévio a esse ano) bem como mais de 10.000 obras foram obrigadas a cortar cenas.

Mesmo com o cerco em torno das liberdades criativas, o cinema italiano conseguiu prosperar durante a segunda metade do século XX; entre os anos 50 e 70 o país viu o florescer da melhor época da comédia com obras como Os Eternos Desconhecidos e Amarcord de Federico Fellini. Esse também foi o período que os grandes nomes do audiovisual da Itália surgiram; não só do já mencionado Fellini (que ocupa o topo dos nomes) mas também de Sergio Leone (que conquistaria Hollywood ao remodelar o gênero western), Dario Argento (que uniu o gênero terror à um senso estético apurado), Roberto Benigni (referência na comédia) e muitos outros.

Em suma, o fim oficial da censura no cinema italiano tem um peso considerável tanto prático (ainda que muitos dos filmes historicamente banidos há tempos já tenham sido vistos pelo público) quanto simbólico pois representa o suspiro de alívio de uma indústria que agora poderá autodeterminar quais filmes são indicados para quais segmentos e cujos  cineastas não mais precisaram passar pela experiência de verem suas obras constantemente editadas e cortadas para se adequar ao censor. 

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