FROZEN, AQUECENDO CORAÇÕES
Desde que John Lasseter assumiu a chefia de criação dos Walt Disney Animation Sudios, as produções do estúdio vêm recuperando o brilho. Frozen: Uma Aventura Congelante carrega as qualidades dessa retomada, uma repaginada nos signos que se tornaram marcas dos desenhos da casa, sem perder a aura dos clássicos.
Inspirado na fábula A Rainha do Gelo, do dinamarquês Hans Christian Andersen, Frozen narra a história das princesas Elsa e Anna (quer coisa mais Disney do que duas! princesas?!). Com poder de controlar o gelo (uma Midas polar, transformando em gelo o que toca), Elsa é isolada do mundo por seus pais, afastada até do convívio com a irmã Anna, após quase matá-la. Anos se passam, e o castelo abre suas portas para a coroação de Elsa, que, após perder o controle, foge, deixando o reino de Arendelle sob rigoroso inverno.
Frozen traduz a renovação pela qual passa o estúdio. Características clássicas Disney estão lá, bem encaixadas: personagens fofos, valorização da familiar, animais com comportamentos antropomorfizados, um universo de pura magia e encantamento, números musicais. Olaf, o boneco de neve, possui o carisma típico das personagens fofas da Disney. Contrariando o material de marketing, ele aparece lá pelos 45 minutos do filme, deixando a impressão de que seu potencial poderia ter sido mais bem explorado.
Centro nervoso do enredo é a relação entre as irmãs. Elsa sofre com seus poderes, quase uma maldição. Seu isolamento e inadaptação ao mundo são visualmente representados por seu figurino pesado e de tons escuros. No final do primeiro ato, Elsa foge para as montanhas e cria, no momento mais belo do filme, um castelo de gelo. Ela substitui as roupas pesadas por um levíssimo vestido. A oposição expõe a mudança da personalidade de Elsa, que finalmente se sente livre. O preço dessa liberdade é sujeitar o reino de Arendelle a um rigoroso inverno. Seus atos, involuntariamente, atuam como agentes vilanescos.
Anna tem sede de viver. Passou a vida nos muros do palácio e sem conviver com sua irmã. No dia da coroação, ela acaba se apaixonando pelo primeiro príncipe encantado que tromba pela frente. Depois da fuga de Elsa, ela deixa seu amado de lado e parte para resgatar a irmã. Anna passará de uma garota ingênua para uma garota madura. Seu figurino reflete as mudanças. De vestidos inocentes e luminosos no começo, ela se fecha em roupas pesadas. Mas do que proteger do frio, é a representação visual da sua decisão de renegar um príncipe encantado para ajudar a irmã; ela renega o mundo para voltar-se aos problemas familiares.
O roteiro de Frozen nos engana. Brincando com o estilo consolidado pelos estúdios Disney, leva-nos a crer que abraçará um clichê para, logo em seguida, mudar o rumo. Essa linha fica bem clara na subtrama romântica, que funciona como elemento secundário, e na personalidade das protagonistas.
Nos clássicos filmes de princesas da Disney, elas eram garotas passivas (sem trocadilhos), que encontravam a felicidade nos braços do príncipe encantado, vulgo, homem perfeito. Mesmo protagonistas, os atos de heroísmo cabiam aos rapazes. Branca de Neve e os Sete Anões e A Bela Adormecida são exemplos máximos dessa estética.
Há um bom tempo, essa formula vem sendo abandonada e reinventada. Jasmim de Aladim é mais proativa do que Branca de Neve e a Bela, de A Bela e a Fera, não só é mais ativa do que sua chara, como fica acordada o filme inteiro. O peculiar em Frozen é abertamente questionar os clichês, o que repercutiu bem entre os críticos. Alguns até ressaltar que os estúdios superam o machismo. Façamos algumas observações, digamos, sociológicas.
A crítica de que a Disney incutiu na cabeça das meninas um ideal de felicidade pelo casamento é antiga. Dê um google e facilmente você encontrará um blog versando sobre isso. Não se trata de negar a influência dos desenhos no imaginário das meninas (e dos meninos também). O que sempre me incomodou foi a atribuição de superpoderes aos Estúdios. Seu peso é menor do que julgam seus críticos.
Além do mais, as críticas mais rasteiras esquecem que a sociedade tinha uma visão subalterna da mulher. Os desenhos eram parte desse contexto. E, antes de sair cobrando uma postura arrojada, vale lembrar: estamos falando de desenhos infantis produzidos por um estúdio família que visa lucro e alcançar os mais variados públicos. Não esperem grandes inovações. Estúdios com essas características costumam ir a reboque das mudanças.
Também devemos lembrar que essas animações se inserem na tradição dos contos de fadas. A Disney, nas suas principais produções, exerceu a arte de atualizar os enredos aos nossos tempos. E foi muito bem sucedida – com certeza bem melhor do que alguns pedagogos que pararam de atirar o pau no gato. Os contos de fadas trabalham com arquétipos dos nossos medos e anseios. Nesse espaço, a criança pode se aventurar de forma segura. Eles evoluem junto com a sociedade. Se os colocarmos muito a frente de seu tempo, não teremos contos de fadas, mas sátiras.
Não se trata de negar o machismo de certos filmes (notadamente os de princesa do começo da Disney), mas de compreender que não há intenções malévolas, mas os reflexos de um tempo. Curiosamente, as produções que carregam esse estereótipo são concentradas no período clássico. E, mesmo naquele tempo, podemos encontrar personagens femininas fortes.
Frozen é a culminância de duas mudanças. Por um lado, a completa adaptação dos estúdios a uma sociedade na qual a igualdade entre homens e mulheres existe – lembrando que os estúdios têm como referencial os EUA. De outro, a renovação do próprio estilo Disney, que sofreu uma crise existencial com o surgimento da animação 3D, lá com Toy Story.
Frozen tem personagens masculinos de personalidades fracas, construídos para serem inferiores às mulheres. Por mais heroico que seja Kristoff, ele será sempre um plebeu encantado disfuncional, longe do galã clássico. Desajeitado e bobo, ele demora até para tomar a iniciativa, algo bem comum entre os homens de hoje. O coração nobre é sua maior qualidade. Hans é um pastiche dos príncipes clássicos – sua virada no último ato é muito mal trabalhada, talvez, tenha sido proposital.
A maior e mais bonita revisão que o roteiro faz dos estereótipos é no final, quando Anna encontra o amor verdadeiro que lhe aquece o coração. Sem dúvida, a cena mais emocionante do filme.
Frozen está em plena sintonia com nosso tempo e com a evolução da própria Disney. Com personagens femininas fortes que conduzem a trama, tem um final que, afastada a fantasia, trata até de maneira realista a felicidade. Anna será feliz para sempre, não porque assim é a vida, mas porque está com o homem que ama, porque tem o amor de sua irmã, por ter os amigos em sua volta. E, porque todo o filme precisa acabar. E, sim, porque também precisamos de uma dose de ilusão. Ainda mais em uma sexta-feira, quando estreia Ninfomaníaca, de Lars Von Trier.