Muitos se enganam na forma que enxergam as animações diante do audiovisual, e isso cresce principalmente quando o assunto é cinema. O estilo sempre é colocado em outra categoria, pois, na concepção de muita gente, animações não são exatamente filmes ou simplesmente estão à altura de se equiparar as produções feitas com atores.
Algo no mínimo curioso, já que todas as animações utilizam basicamente as mesmas ferramentas usadas nos live actions para contar suas histórias. E não apenas no texto encenado através dos desenhos em tela, mas pelos elementos fundamentais como montagem, fotografia, trilha sonora e atuação.
Sim, atuação, pois além de todo trabalho de dublagem com o avanço da captura de movimentos os trejeitos e as expressões dos atores são cada vez mais marcantes nesses personagens animados.
E muito antes dessa mágica high tech poder ser empregada, muitos artistas já conseguiam passar as mesmas emoções através da qualidade de seus traços. No ocidente isso começou com as produções hoje históricas de empresas como Bray Studios, Fleischer Studios, Hanna-Barbera Productions e claro da Walt Disney.
Só que no oriente as animações sempre foram encaradas como puras expressões de arte e levadas muito mais a sério, a começar pelos próprios quadrinhos, onde nos EUA, na chamada Era de Ouro, não víamos títulos com grande peso dramático ou temático, a não ser claro nas zines e quadrinhos independentes. Em países como Japão, China e Coreia, mesmo abordando também a ficção cientifica, o cotidiano sempre foi algo recorrente em suas histórias.
Mas basta a gente avançar um pouco no tempo e conferir o alto nível da qualidade artística vista nos inúmeros animes lançados no oriente a partir dos anos 50 e que perduraram até hoje. Se aqui o Brasil as pessoas param para conferir suas novelas, no Japão os números de audiência dos animes são ainda mais impressionantes se comparados proporcionalmente.
E a partir dos anos 80 com a chega do home vídeo, através de fitas VHS e laser disc, a obra começou a ser expandida para o ocidente e explodiu no início dos anos 90, inclusive em países como o nosso. Aliás, o nosso contato com esse tipo de mídia causou um choque tão grande que que os demais desenhos americanos meio que perderam a graça.
‘Cavaleiros do Zodíaco’, ‘Dragon Ball’ e ‘Street Fighter Victory’ traziam narrativas continuas que deixavam todo mundo aguardando o desfecho das histórias. Com isso surgiram uma legião de fãs dos animes.
E com amadurecimento do público, obras mais sérias começaram a aparecer por aqui ou mesmo os próprios fãs foram atrás em busca do que era o suprassumo da mídia. Foi aí que os deuses da animação oriental como os próprios Miyazaki, Ōtomo e Tezuka passaram a ser conhecidos.
Realizadores que faziam cinema na essência da palavra. Que criavam histórias poderosas, personagens humanos e complexos, com tramas situadas em conceitos históricos e sociais, que esteticamente impressionavam pela sutileza nos movimentos e feições das figuras retratadas.
E é justamente sobre esses filmes que falaremos dessa vez aqui no canal. Dentre vários, separamos dez produções que foram significativas e marcaram pra sempre a história sétima arte. Longas verdadeiramente transformadores e únicos. Então vamos lá falar e relembrar dessas maravilhas.
10 – Perfect Blue (1997) MUBI
Iniciando a lista temos ‘Perfect Blue’, uma das animações que melhor trabalhou o tema da obsessão de maneira bem subjetiva. A gente acompanha a carreira de Mima, que faz parte do grupo musical Cham e, mesmo com um modesto número de fãs, acaba deixando a banda para conseguir uma maior fama como atriz.
O sempre incrível Satoshi Kon coloca o espectador na mente de Mima, que na ânsia de sempre tentar alcançar a perfeição, acaba sucumbindo a obsessão e vive um tormento por sua insegurança. Com o tempo ela meio que sucumbe a loucura e a gente acompanha esse processo de maneira muito próxima e visceral.
Visualmente, ‘Perfect Blue’ também agrada bastante, principalmente pela proposta onírica latente naquele universo. Sendo referência pra muita coisa, inclusive para o cineasta Darren Aronofsky, que usou como referência a clássica cena da banheira no seu ‘Requiem Para Um Sonho’. Satoshi Kon também fez outras coisas maravilhosas como ‘Paprika’ e ‘Millennium Actress’.
9 – Metrópolis (2001) MUBI
‘Metrópolis’, do cineasta Rintaro, é baseado num mangá de 1949 do gênio Osamu Tezuka, que por assim teve como influencia o clássico do expressionismo alemão também de nome Metrópolis, este dirigido por Fritz Lang. O filme se passa exatamente numa cidade chamada Metrópolis, onde humanos e robôs convivem pacificamente. Quando o Duque Red, o homem mais rico da cidade, resolve construir uma torre gigante no meio da cidade baseada na figura da sua sobrinha Tima, mas que na verdade é uma máquina destrutiva erguida por Lawton, um cientista criminoso que é caçado por Kenishi.
Nesse meio tempo desastres passam a acontecer por lá, Lawton morre e Kenishi e Tima se perdem na cidade, acabam se encontrando e se apaixonando. E em meio a todo esse caos e intrigas que envolve a trama, que por si só é repleta de ramificações, o casal luta contra esses inimigos para fugir das armações do filho adotivo do Duque chamado de Rock.
Mas o grande trunfo do cineasta Rintaro é mesclar o estilo de animação mais clássica do próprio Tezuka aos recursos modernos e entregar um trabalho primoroso graficamente falando.
8 – Ghost In The Shell – O Fantasma do Futuro (1995) Netflix
O próximo da lista é ‘Ghost in the Shell’, um dos mangás e animes mais influentes na área da ficção cientifica, que não por acaso finalmente ganhou no ano passado uma adaptação em Hollywood, mas que já foi referenciado diversas vezes em gigantescos universos como o de ‘Matrix’. Criado por Masamune Shirow, em 1989, ‘Ghost in the Shell’ teve o seu primeiro longa-metragem animado em 1995, que expõe bem o cerne da obra.
A história se passa em 2029 e mostra o ápice da tecnologia e a conexão que os humanos fizeram com as máquinas, criando realidades virtuais para ter informações através de corpos cibernéticos plugados às suas consciências. E por meio de uma trama investigativa o filme aborda a questão do implante de falsas memória, um questionamento recorrente da major Makoto Kusanagi.
A produção também utiliza da tecnologia DGA digitally generated animation, que permite alinhar vários recursos digitais aos desenhos feitos a mão. Naquela época já podia se notar o salto técnico na mídia, não apenas pelas cores extremamente bem definidas, apesar de acinzentadas pela fotografia, mas também na movimentação dos personagens, muito próximas de cenas reais. E até hoje impressiona.
7 – Cowboy Bebop – O Filme (2001) HBO Max
Pra quem não sabe, Hajime Yatate é na verdade um pseudônimo do estúdio Sunrise, que foi quem concebeu e produziu a série animada de tv ‘Cowboy Bebop’, que de tanto sucesso acabou ganhando materiais adicionais como mangás, romances e um filme que saiu no início dos anos 2000.
A ideia principal saiu da mente do diretor Shinichiro Watanabe, que nos leva pro ano de 2071 onde devido a tecnologia avançada as pessoas passaram a viver na colônia terrestre de Marte. Lugar que acabou ficando bastante violento, obrigando o governo autorizar alguns caçadores de recompensa chamados de Cowboy a manter a paz nas cidades.
E logo aparece o maluco vilão Vincent com uma arma biológica em pleno dia das bruxas pretendendo acabar com o mundo. Só que um dos caçadores de recompensa, Spike Spiegel e sua equipe se juntam pra combater essa nova ameaça.
Uma história à primeira vista um tanto batida, mas que devido a abordagem humanizada dos personagens que por si só são cheios de carismas e das muitas e incríveis cenas de ação, ‘Cowboy Bebop‘ ganhou o mundo. O texto possui sutis camadas filosóficas e discute alguns temas espinhentos. A adaptação da Netflix em live action não agradou e foi cancelada já na primeira temporada.
6 – Crianças Lobo (2012) YouTube
Produzido pelo Studio Chizu em parceria com a Madhouse, ‘Crianças Lobo’ é dirigido por Mamoru Hosoda, conhecido por Summer Wars e A Garota que Conquistou o Tempo, e também pôde contar com Yoshiyuki Sadamoto (de Evangelion) para fazer o design dos personagens. Um baita timaço. O filme teve seu debute primeiramente na Europa, em Paris sendo mais específico, enfim, uma produção de grande calibre.
E nada disso é gratuito, pois ‘Crianças Lobo’ trata maravilhosamente bem sobre a questão das diferenças. Fala sobre uma mulher chamada Hana que após perder o marido tem duas crianças para criar, só que ambas são meio lobos meio humanos, sendo assim fica impossível o convívio entre eles e as pessoas da cidade. Hana se isola no interior para tentar proteger os filhos, mas ao passar do tempo ela percebe que seus vizinhos estão se aproximando dela e que querem ajudá-la a cuidar dos bebês. Hana entende que era impossível isolar os garotos do mundo.
É uma história aparentemente simples e cotidiana, mas que com o caminhar da trama e depois de alguns desdobramentos vamos compreendendo a verdadeira intenção do autor. A delicadeza e o carinho presente no texto. O clímax então é emocionante a ponto de fazer o público se debulhar em lágrimas. Vale muito a pena conferir.
5 – Gen Pés Descalços (1983) e Tumulo dos Vagalumes (1988) YouTube
Dando a “roubadinha” de sempre, aqui vamos falar de dois petardos bem parecidos. O mangá e depois o longa animado ‘Gen Pés Descalços’, de Keiji Nakazawa, foi um dos principais títulos a tocar na ferida da segunda guerra mundial e o que ela causou no Japão, após os eventos de Hiroshima e Nagasaki.
Este é um filme de animação muito simplória se comparado aos demais da lista, mas que como poucos critica sem nenhum medo o governo japonês e aponta seus comandantes como também responsáveis pelas bombas americanas dizimarem milhares de pessoas. Uma obra que fala do todo e mostra o sofrimento de várias famílias e de um País que ainda hoje tem uma ferida aberta e que talvez jamais irá cicatrizar.
‘Gen Pés Descalços’ é um filme doloroso, mas fundamental para entender o contexto histórico pela visão nipônica. E não se pode falar de Gen sem mencionar o ainda mais tocante e devastador ‘Tumulo dos Vagalumes’, do saudoso Isao Takahata, que aborda o mesmo tema de maneira mais intimista e pessoal. A história dos irmãos Seita e Setsuko jamais será esquecida.
4 – O Conto da Princesa Kaguya (2013) Netflix
Falando nisso, recentemente tivemos a notícia do falecimento do próprio cineasta, animador, roteirista e produtor Isao Takahata, um artista multifacetado que teve como sua obra de despedida o esplendido ‘O Conto da Princesa Kaguya’. Um filme que possui uma delicadeza impar não apenas por sua história tratar de uma protagonista doce tendo que lidar com algumas convenções sociais orientais da época, mas por sua estética ser uma das mais bonitas já vistas no Estúdio Ghibli.
E conhecendo um pouco que seja da empresa, vocês já devem saber o quão impressionante é essa produção. Os cenários inteiros parecem ser pintados em aquarela, enquanto os personagens têm traços que parecem ter sido feitos com um giz de cera. Ambos os estilos casam perfeitamente e formam um deleite para os olhos. Junte isso a um conto muito tocante e tenha em mãos uma obra de arte.
3 – Your Name (2016) HBO Max
Não é de hoje que Makoto Shinkai é um dos maiores nomes da animação japonesa, o cineasta já fez longas que já podem inclusive serem chamados de obras-primas, o caso de ‘Cinco Centímetros Por Segundo’ e ‘O Jardim das Palavras’. Mas foi com ‘Your Name’ que Shinkai ficou conhecido no mundo inteiro e alcançou um feito dito por muitos como impossível, que foi passar a bilheteria do oscarizado ‘A Viagem de Chihiro’ e de alcançar o posto de maior bilheteria da história de uma animação japonesa.
E não é para menos, ‘Your Name‘ é uma preciosidade difícil de achar por aí. É um filme que flerta com diversos gêneros como romance, fantasia, comédia e até mesmo musical. Sim, há no meio do longa diversas passagens cantadas. E antes que você fique com medo disso, saiba que elas acontecem de maneira muito orgânica. E como não poderia deixar de ser nas obras de Makoto Shinkai, o filme possui momentos encantadores como andamentos bem tristes, sem jamais se entregar ao melodrama.
O diretor sempre ficou marcado por destacar os cenários que aborda e nessa produção então tal característica é ainda mais aparente, pois a cidade nada mais é que um personagem da trama. ‘Your Name‘ fala muito sobre compaixão e visão de mundo. De como encarar a vida de várias maneiras, e isso é representado tanto metaforicamente quanto literalmente. E, nesse caso, o artifício do sobrenatural funciona bem e casa com a linguagem.
2 – Akira (1988) Netflix
Katsuhiro Otomo criou o mangá ‘Akira’, com mais de 2 mil páginas ainda em 1982, sendo um sucesso colossal e influenciando diversos outros realizadores. Em 1988 ele mesmo concebeu e dirigiu o longa-metragem de mesmo nome, que foi ainda mais aclamado por deixar um pouco de lado o misticismo em volta da história vista no quadrinho e apostar num viés mais político e filosófico no audiovisual.
É uma ficção cientifica de primeira linha, passada numa Neo Tokyo cyberpunk, no maior estilo ‘Blade Runner’, onde a atmosfera é recheada de elementos de terror e a paranoia da guerra no oriente é latente. O lugar é comandado por magnatas corruptos, e não é difícil vermos gente nas ruas da cidade protestando e cobrando seus direitos.
A obra também fala sobre vingança, amizade e compaixão. E mesmo com 30 anos de lançada, continua intacta e parece ter sido feita nos dias de hoje, não só pelo contexto social, mas pela soberba qualidade de animação, que era muito à frente do seu tempo.
1 – A Viagem de Chihiro (2001) Netflix
Fazer uma lista com dez longas animados japoneses sem citar pelo menos uns três filmes da entidade Hayao Miyazaki é um trabalho árduo, para não dizer impossível. Como deixar de fora ‘Meu Vizinho Totoro’ e ‘Princesa Mononoke’, filmes que encantaram a todos.
Mas seguindo a regra da lista, um deles precisava representar os demais, e mesmo que eu ou você não considere ‘A Viagem de Chihiro’ o melhor Miyazaki já feito, foi a partir desse filme que a cultura pop e os cinéfilos de todas as partes do mundo abraçaram o trabalho do cineasta e foram atrás de suas demais obras. ‘Spirited Away’, como foi chamado nos EUA e distribuído pela própria Disney, ganhou o Oscar de Melhor Animação e o Urso de Ouro em Berlim.
É basicamente um conto de fadas moderno, com muitas liberdades históricas e capaz de fazer o público viajar com sua imaginação por um mundo mágico, curioso e ao mesmo tempo sombrio. É recomendado para todas as idades, não tem a violência gráfica de ‘Mononoke Hime’, ainda que em muitos momentos os personagens se vejam em situações surreais.
A protagonista Chihiro é uma garota que passa por um processo de transformação e descoberta, vivendo uma verdadeira odisseia e se transformando numa figura valente que faz de tudo para salvar os seus pais e enfrentar as demais adversidades que aparecem. Uma personagem feminina muito forte.
Junte isso ao ápice que tinham chegado na época no quesito de animação clássica ou não 3D. É chover no molhado falar na movimentação dos moldes, mas dessa vez a coisa foi tão bem realizada que muitos duvidavam que o Miyazaki teria usado rotoscopia nos personagens. ‘A Viagem de Chihiro’ é uma obra-prima que possui merecidamente a fama enorme que tem e toda repercussão causada.