domingo , 22 dezembro , 2024

Grace e Frankie | Relembrando uma das melhores séries da década passada

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Em vários textos aqui no site, falamos sobre como a comédia é um dos gêneros mais complicados de serem trabalhados; afinal, ele deve se renovar constantemente para não cair nos convencionalismos excessivos, como as quebras de expectativas previsíveis, a entrada do melodrama superficial ou até mesmo resoluções incabíveis para um universo irreverente. É claro, se pensarmos no auge das séries cômicas dos anos 1980 e 1990, como Seinfeld’ e Friends’, as saídas formulaicas ainda eram agradáveis e sutis ao público – e sabíamos que aquele recorte completamente bizarro era proposital. Contudo, manter-se preso a isso é um dos piores equívocos que se pode cometer no showbiz; a ideia aqui é a originalidade, a busca pelo impensável, por histórias que não poderiam ser contadas.

Nos últimos anos, a Netflix tornou-se uma plataforma de criação expansiva, e mesmo que tenha se rendido às ruínas de alguns produtos bem medíocres, criou obras-primas da televisão contemporânea como Unbreakable Kimmy Schmidt’ e The Good Place’, invadindo territórios considerados tabus e repaginando-os com uma perspectiva única. E foi com o mesmo intuito que Martha Kauffman (trazendo sua grande experiência de volta à tona) e Howard J. Morris arquitetaram um cotidiano às avessas de duas famílias aparentemente perfeitas, mas cujas conturbações insurgiram numa época um tanto complicada, e a ele deram o nome de Grace e Frankie’. A trama, que poderia facilmente mergulhar em algo insosso, na verdade tornou-se uma das maiores surpresas de 2015 – e estendeu-se por sete incríveis temporadas.



É claro que trabalhar dentro de uma equipe clássica como essa não seria fácil: as protagonistas, que emprestam nome para o título do show, são interpretadas apenas por dois dos maiores nomes de sua geração, Jane Fonda e Lily Tomlin nas respectivas personas. Não é nem preciso dizer que ambas as atrizes criam uma química inexplicável que supera todas as expectativas nas telinhas, abrindo espaço para suas habilidades performáticas e cultivando margens para versáteis rendições. Seja na presença da tragicomédia ou de subvertentes como coming-of-age ou tour-de-force, as duas sempre fazem algo de parte maior e, mantendo esses fortes laços intercambiáveis, conseguem trazer todos os outros personagens para um mesmo nível de desenvolvimento e delineação.

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Mas nos voltemos à história principal: Grace e Frankie são duas mulheres da terceira idade muito bem resolvidas vivendo uma longe da outra, ainda que seus maridos trabalhem juntos na mesma firma de advocacia. Entretanto, tudo isso muda quando, durante um almoço planejado de última hora, Robert (Martin Sheen) e Sol (Sam Waterston) revelam às duas que estão tendo um caso há mais de vinte anos e que só agora resolveram assumir quem realmente são e começar um novo capítulo – afinal, nunca é tarde para amar, não é mesmo? Todo esse escopo seria hilário, se não fosse trágico; claro, colocar um casal de idade avançada em uma subtrama LGBT é sempre bem-vinda, e os roteiristas encontram um modo muito leve e nem um pouco ofensivo de tratar isso ao mostrar a perspectiva de cada um dos afetados, sem se deixar levar por uma entrega parcial.

Ainda que não chegue aos pés de Fonda e Tomlin, os dois atores, também veteranos da indústria do entretenimento, carregam consigo uma fofura inigualável que deixa quase impossível odiá-los por mentirem e traírem suas esposas sem ao menos lhes dar alguma satisfação. Eventualmente, a construção arquetípica dos personagens também revela falhas ao mesmo tempo em que permite nos conectarmos em diversos âmbitos com cada um deles – e a presença excessiva de personas secundárias é ofuscada pelo tratamento minucioso que a série em si recebe.

Grace e Frankie passam a viver juntas na casa de praia que foi adquirida pelos dois, alfinetando-se o tempo todo pelos estilos totalmente opostos de vida que levavam antes de entrarem num círculo compulsório de convivência: enquanto esta sempre optou por uma vida hippie, em contato com entidades místicas, a quebra de padrões estéticos e o apreço pela arte moderna – ela até mesmo dá aulas de pintura para ex-detentos como modo de reabilitá-los -, aquela mergulhara em pura ostentação, mostrando sua superioridade até mesmo para com os filhos (ora, ela até mesmo era CEO de uma empresa de produtos de beleza antes de passá-la para as mãos da filha Brianna, interpretada pela carismática e hilária June Diane Raphael). Vê-las encontrar um meio-termo para se aturarem é incansável, e as histórias episódicas funcionam tão bem em si mesmas que fica difícil não querer devorar a série o mais rápido possível.

Kauffman e Morris também encontram um modo de fazerem valer as subtramas: temos, por exemplo, a relação conturbada entre um dos filhos de Frankie, Coyote (Ethan Embry), e a queridinha de Grace, Mallory (Brooklyn Decker). Ainda que se perca alguns episódios para frente, quase sendo varrida para debaixo do tapete, essa pequena fatia microcósmica serve como respaldo para o plano geral. Decker, em especial, dando às caras quatro anos depois de seu último projeto com Esposa de Mentirinha, mostra-se muito competente ao abraçar a irreverência de fazer parte de toda aquela conturbação, fugindo dos estereótipos da dona de casa e construindo relações duradouras com o público.

O ápice da série é, sem dúvida, sua leveza. Nada é forçado: os diálogos propositalmente autoexplicativos se mesclam com metáforas impensáveis, os movimentos de câmera seguem um padrão de sitcom, passando pelo reality show e retornando para a zona de conforto de outras fórmulas hollywoodianas ao mesmo tempo em que se esquiva do clichê excessivo, as atuações movem-se com uma fluidez incrível. Em outras palavras, tal obra não é pedante e não preza por uma bruta crítica social, conseguindo passar sua mensagem sem se valer de ideologias compulsórias que obviamente são mais bem exploradas por dramas intencionais.

Fonda e Tomlin provam que ainda estão com tudo. Apenas a presença das duas é capaz de nos manter vidrados na tela o tempo que for necessário – e a organicidade que cultivam em Grace e Frankie’ é algo a ser levado até para fora do cosmos da série, expandindo essa característica única para quem se importasse em ouvir. E digo já com antecedência: o show, felizmente, apenas melhora.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Nos últimos anos, a Netflix tornou-se uma plataforma de criação expansiva, e mesmo que tenha se rendido às ruínas de alguns produtos bem medíocres, criou obras-primas da televisão contemporânea como Unbreakable Kimmy Schmidt’ e The Good Place’, invadindo territórios considerados tabus e repaginando-os com uma perspectiva única. E foi com o mesmo intuito que Martha Kauffman (trazendo sua grande experiência de volta à tona) e Howard J. Morris arquitetaram um cotidiano às avessas de duas famílias aparentemente perfeitas, mas cujas conturbações insurgiram numa época um tanto complicada, e a ele deram o nome de Grace e Frankie’. A trama, que poderia facilmente mergulhar em algo insosso, na verdade tornou-se uma das maiores surpresas de 2015 – e estendeu-se por sete incríveis temporadas.

É claro que trabalhar dentro de uma equipe clássica como essa não seria fácil: as protagonistas, que emprestam nome para o título do show, são interpretadas apenas por dois dos maiores nomes de sua geração, Jane Fonda e Lily Tomlin nas respectivas personas. Não é nem preciso dizer que ambas as atrizes criam uma química inexplicável que supera todas as expectativas nas telinhas, abrindo espaço para suas habilidades performáticas e cultivando margens para versáteis rendições. Seja na presença da tragicomédia ou de subvertentes como coming-of-age ou tour-de-force, as duas sempre fazem algo de parte maior e, mantendo esses fortes laços intercambiáveis, conseguem trazer todos os outros personagens para um mesmo nível de desenvolvimento e delineação.

Mas nos voltemos à história principal: Grace e Frankie são duas mulheres da terceira idade muito bem resolvidas vivendo uma longe da outra, ainda que seus maridos trabalhem juntos na mesma firma de advocacia. Entretanto, tudo isso muda quando, durante um almoço planejado de última hora, Robert (Martin Sheen) e Sol (Sam Waterston) revelam às duas que estão tendo um caso há mais de vinte anos e que só agora resolveram assumir quem realmente são e começar um novo capítulo – afinal, nunca é tarde para amar, não é mesmo? Todo esse escopo seria hilário, se não fosse trágico; claro, colocar um casal de idade avançada em uma subtrama LGBT é sempre bem-vinda, e os roteiristas encontram um modo muito leve e nem um pouco ofensivo de tratar isso ao mostrar a perspectiva de cada um dos afetados, sem se deixar levar por uma entrega parcial.

Ainda que não chegue aos pés de Fonda e Tomlin, os dois atores, também veteranos da indústria do entretenimento, carregam consigo uma fofura inigualável que deixa quase impossível odiá-los por mentirem e traírem suas esposas sem ao menos lhes dar alguma satisfação. Eventualmente, a construção arquetípica dos personagens também revela falhas ao mesmo tempo em que permite nos conectarmos em diversos âmbitos com cada um deles – e a presença excessiva de personas secundárias é ofuscada pelo tratamento minucioso que a série em si recebe.

Grace e Frankie passam a viver juntas na casa de praia que foi adquirida pelos dois, alfinetando-se o tempo todo pelos estilos totalmente opostos de vida que levavam antes de entrarem num círculo compulsório de convivência: enquanto esta sempre optou por uma vida hippie, em contato com entidades místicas, a quebra de padrões estéticos e o apreço pela arte moderna – ela até mesmo dá aulas de pintura para ex-detentos como modo de reabilitá-los -, aquela mergulhara em pura ostentação, mostrando sua superioridade até mesmo para com os filhos (ora, ela até mesmo era CEO de uma empresa de produtos de beleza antes de passá-la para as mãos da filha Brianna, interpretada pela carismática e hilária June Diane Raphael). Vê-las encontrar um meio-termo para se aturarem é incansável, e as histórias episódicas funcionam tão bem em si mesmas que fica difícil não querer devorar a série o mais rápido possível.

Kauffman e Morris também encontram um modo de fazerem valer as subtramas: temos, por exemplo, a relação conturbada entre um dos filhos de Frankie, Coyote (Ethan Embry), e a queridinha de Grace, Mallory (Brooklyn Decker). Ainda que se perca alguns episódios para frente, quase sendo varrida para debaixo do tapete, essa pequena fatia microcósmica serve como respaldo para o plano geral. Decker, em especial, dando às caras quatro anos depois de seu último projeto com Esposa de Mentirinha, mostra-se muito competente ao abraçar a irreverência de fazer parte de toda aquela conturbação, fugindo dos estereótipos da dona de casa e construindo relações duradouras com o público.

O ápice da série é, sem dúvida, sua leveza. Nada é forçado: os diálogos propositalmente autoexplicativos se mesclam com metáforas impensáveis, os movimentos de câmera seguem um padrão de sitcom, passando pelo reality show e retornando para a zona de conforto de outras fórmulas hollywoodianas ao mesmo tempo em que se esquiva do clichê excessivo, as atuações movem-se com uma fluidez incrível. Em outras palavras, tal obra não é pedante e não preza por uma bruta crítica social, conseguindo passar sua mensagem sem se valer de ideologias compulsórias que obviamente são mais bem exploradas por dramas intencionais.

Fonda e Tomlin provam que ainda estão com tudo. Apenas a presença das duas é capaz de nos manter vidrados na tela o tempo que for necessário – e a organicidade que cultivam em Grace e Frankie’ é algo a ser levado até para fora do cosmos da série, expandindo essa característica única para quem se importasse em ouvir. E digo já com antecedência: o show, felizmente, apenas melhora.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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