J.J. Abrams sempre soube como criar uma grande expectativa acerca de suas obras – e ainda que tenha atuado apenas como produtor, ‘Cloverfield’ talvez seja a compilação mais efervescente dos últimos anos. Após o grande sucesso da primeira iteração, ele resolveu mergulhar ainda mais fundo em um universo repleto de possibilidades e de subtramas bem interessantes, trabalhando às escondidas e lançando sem qualquer premeditação a sequência ‘Rua Cloverfield, 10’, um dos maiores sucessos de 2016 e que abriu margem para um cosmos próprio e cujo enfoque seria numa ficção científica diferente das demais, prezando muito mais pelo terror do pesadelo psicológica que pelos convencionalismos do gênero. O anúncio do terceiro longa-metragem emergiu com aceitação quase unânime por parte dos fãs – e mais uma vez Abrams repetiu efeito surpresa ao lançá-lo pela plataforma Netflix sem mais nem menos. O principal problema, porém, é que a nova continuação definitivamente não faz jus àquilo que promete.
Se o primeiro e o segundo filmes já se conectavam por estarem ambientados em uma mesma cronologia, ‘O Paradoxo Cloverfield’ procura explicar o inexplicável ao nos levar ao momento em que as monstruosas criaturas que destruíram Nova York e São Francisco pisaram no solo da Terra, mostrando que tudo foi, assim como diversas narrativas que se inclinam para a vertente em questão, fruto da ambição desmedida do ser humano e suas irremediáveis consequências. O pano de fundo da nova história é um tanto quanto caótico, encontrando um espaço digno de ser endossada perante uma crise de energia que coloca o mundo inteiro à beira de uma iminente III Guerra Mundial; logo, cabe à aliança de diversos cientistas descobrir uma fonte de alimentação renovável e que não pode mais ser encontrada na natureza, mas sim no espaço.
Após um breve e interessante prólogo, que nos transporta da Terra para a Estação Espacial Cloverfield de forma muito bem construída, percebemos que as coisas não são tão fáceis quanto se imagina. Julius Onah substitui Dan Trachtenberg na cadeira de direção e, se há uma coisa que ele consegue fazer, é deixar um gostinho de quero mais desde os primeiros minutos. Apesar da falta de identidade atmosférica na maior parte do filme, não se pode negar que o primeiro ato é carregado com uma ambiência tensa e angustiante, reafirmada tanto pela quase inexistência de diálogos e pela montagem alternada entre planos fechados e gerais entre a tripulação da espaçonave e o acelerador de partículas intitulado Shepard e que tem como principal intuito fornecer essa nova fonte de matéria-prima para o mundo.
Assim como a obra predecessora, que trazia as crises internas de Michelle (Mary Elizabeth Winstead) acerca de suas escolhas e sua estabilidade obrigatória, temos também a presença comovente de Gugu Mbatha-Raw como a chefe de operações Hamilton, que aceitou esse novo trabalho para conseguir superar um doloroso trauma, ainda que tenha deixado seu marido a milhares de quilômetros de distância. Entretanto, o que outrora era visto como uma pausa da dura realidade que enfrentavam e a possibilidade de encontrar um novo significado para sua vida, torna-se um pesadelo, primeiro pela longevidade do projeto – que já ultrapassa dois anos – e segundo por negligências que os personagens insistem em enxergar.
O roteiro assinado por Oren Uziel e Doug Jung tenta desvencilhar-se das barreiras formulaicas, mas acaba caindo em sua própria tentação e impõe limites que simplesmente não deveriam existir. A passagem do ato inicial para o seguinte é interessante e utiliza-se de um foreshadowing óbvio e funcional ao mesmo tempo. Através de uma transmissão jornalística sobre o outro lado dessa busca pelo funcionamento integral do Shepard, incluindo o que uma teoria da conspiração que empresta seu nome ao título do filme, que diz que cada vez que a série de testes é feita em relação ao acelerador, as chances de causar uma ruptura no espaço-tempo e afetar a organicidade das multi-dimensões aumenta exponencialmente. A equipe certamente não dá ouvidos a essas hipóteses sem fundamento e é apenas lógico que caiam exatamente no que renegavam: após o último teste, a nave acaba ressurgindo em uma outra realidade – mas esse não é o maior fator de risco, e sim o fato de que essa dobra do multiverso está tentando reclamar pela ordem que foi alterada.
À medida que a história se desenrola, percebe-se que o filme mantém relações com ‘O Enigma do Horizonte’, terror espacial dirigido por Paul W.S. Anderson em 1997. A trama gira em torno do retorno da nave Horizonte, que perdeu-se no universo por sete anos e ressurgiu sem mais nem menos, levando um time de cientistas a investigar o que realmente aconteceu. Os paralelos na verdade se mantêm em um nível promissório, visto que em ambas as obras a nave parece ter vida própria e moldar a realidade conforme deseja, colocando tudo em seu devido lugar ainda que isso coloque os protagonistas em uma luta pela sobrevivência. Mas se essa premissa não funcionou naquela época, não espere que a mesma perspectiva seja tratada de outra forma aqui: ainda que interessante durante o arco que envolve o rude Volkov (Aksel Hennie), tudo entra em um âmbito de pura bizarrice cinematográfica.
É risível e ridículo a forma como as cenas de tensões recebem seu tratamento aqui. Diferentemente da sutileza construtiva de Rua Cloverfield, 10 e até mesmo da estética em found footage de ‘Cloverfield – Monstro’, Onah não ousa – então espere sim os planos fechados em momentos de epifania científica e a câmera na mão com os ângulos distorcidos e o excesso de planos holandeses em sequências de ação e de luta. O problema é que nada disso se torna fluido e quase nenhuma parte tem uma explicação válida – ora, Elizabeth Debicki faz uma entrada surpreendente como Jensen apenas para ser desperdiçada e tratada como uma vilã maniqueísta e sem qualquer objetivo aparente. Aliás, é difícil realmente enxergar algum dos personagens sem cair nos estereótipos do gênero (nem mesmo as referências a ‘Alien, O Oitavo Passageiro’ conseguem resgatar um pouco de brilho).
Os problemas de lógica são diversos na narrativa que insiste em transitar em diversos pontos de vista. Infelizmente, o mais interessante deles, centralizado na Terra, nunca chega a ganhar a atenção merecida. Então ficamos confinados a uma jornada tediosa na qual os roteiristas apresentam bizarrices que não conseguem trazer um tom de horror espacial para a fita. Há momentos que até mesmo a comédia entra em jogo, desperdiçando uma boa ideia. Apesar de apresentar esse lado ridículo e fora de tom, ao mesmo tempo investem em dramas fabricados com personagens superficiais e desinteressantes. Como é uma tarefa árdua simpatizar com algum dos tripulantes (muitíssimo burros, aliás), quase toda a narrativa entra em colapso, pois não existe interesse em ver como a história termina. E pior, quando termina, consegue evocar memórias recentes de outra ficção científica muito melhor realizada: ‘Vida’.
Ao menos a trilha sonora permanece no mesmo padrão tétrico, visto que Bear McCreary retorna como responsável pelo escopo sonoro. A utilização de um frenesi acústico, pautado pela entrada de um piano elétrico e por violinos dissonantes é um dos poucos pontos altos do filme e também contribui para todo o potencial desperdiçado e presunçoso que as iterações anteriores não traziam para a tela. A tentativa de se entregar a um drama intimista é tão grande que nem ele nem mesmo consegue se encaixar na cronologia da franquia – o aparato tecnológico definitivamente não conversa com a época retratada.
‘O Paradoxo Cloverfield’ é um fracasso total. Além de se afastar completamente da envolvente atmosfera criado por seus irmãos, essa é realmente uma obra-prima de como não continuar uma franquia de sucesso; ao menos ‘O Enigma do Horizonte’ não se leva a sério e nem tenta ser uma coisa que não é.