Produto de uma época em que os filmes com super-heróis ainda não eram essa febre de hoje, Homem-Aranha 2 (2004) chegou aos cinemas há 16 anos com a difícil missão de superar seu antecessor, um verdadeiro fenômeno de crítica e bilheteria do começo dos anos 2000. Para isso, a Sony trouxe de volta todo o elenco principal, manteve Sam Raimi na direção e adicionou o “exótico” Alfred Molina para viver um dos vilões clássicos do panteão do Aranha: o Doutor Octopus.
E como o primeiro filme foi um sucesso absoluto, Raimi provou aos executivos que era mais do que capaz de fazer uma aventura do herói e conquistou mais liberdade para ousar ao abordar um assunto delicado e ainda não trabalhado naquela época: e se o Amigão da Vizinhança abandonasse o traje vermelho e azul e voltasse para o anonimato? A combinação de todos esses fatores nos brindou com uma obra-prima do gênero, tanto que Homem-Aranha 2 é considerado por muitos como um dos melhores filmes com super-heróis da história.
Se ele é ou não um dos melhores vai de cada um, mas algo que é inegável é seu papel de referência na Cultura Pop. Estruturalmente perfeito, o roteiro é uma verdadeira aula de como construir e desconstruir personagens na tela grande. A começar pelo protagonista, Peter Parker (Tobey Maguire), que começa vivenciando as glórias de ser um herói junto as intempéries de ser um herói. Essa dualidade de valer mais a pena ser o Peter ou o Aranha é marca registrada dos quadrinhos e foi adaptada de forma magistral. Enquanto sua vida mascarada ia de vento em popa, sua vida pessoal sofria com atrasos, problemas com prazos na faculdade, um chefe abusivo e as infames contas para serem pagas.
Além disso, o amor de sua vida coleciona uma série de decepções junto ao atrapalhado Peter Parker – mas vive momentos intensos com sua outra “pessoa”, o Homem-Aranha. Raimi deixa claro no primeiro ato o quanto é exaustiva a vida de herói e como ela exige absurdos do homem debaixo da máscara. E vários momentos escancaram isso, como quando o Dr. Octavius diz que Peter é conhecido por ser “brilhante, mas preguiçoso”. É uma cena impactante que diferencia o abismo entre a imagem do Aranha e a de Parker.
Junto a esses dramas cotidianos, Harry Osborn (James Franco), seu melhor amigo, o coloca entre a cruz e a espada ao descontar em Peter a dor do Luto. Harry atribui ao Homem-Aranha a culpa pela morte do pai, e Peter, o próprio Homem-Aranha, vê a situação se tornando cada vez mais insustentável e não sabe como agir. Ter um assassinato nas costas não faz bem para ninguém, ainda mais quando a imprensa, representada pelo Clarim Diário de J.J. Jameson (J.K. Simmons), joga a opinião pública contra ele. Diante dessa pressão e do sentimento de nunca ser suficiente para Nova York, Peter começa a questionar seu papel de herói na sociedade.
Desanimado e emocionalmente desestabilizado pelos problemas pessoais, como perder seu amor, não conseguir ajudar financeiramente a tia e ir mal na faculdade, o jovem vê seus poderes começarem a falhar. É uma virada espetacular no conceito do herói nos cinemas, porque a tendência dos filmes de herói é abordarem os poderes como a grande guinada na vida dos protagonistas. Steve Rogers, por exemplo, deixou de ser o franzino zoado para se tornar o símbolo máximo de sua nação; Peter Quill era um fracassado antes de se consolidar como o Senhor das Estrelas. Clark Kent deixa de ser um jornalista recluso para assumir a forma da Esperança… enfim, não faltam exemplos dos efeitos positivos que os trajes causam nas pessoas.
Eis que Sam Raimi inverte os papéis. A influência do Homem-Aranha na vida de Peter vai para segundo plano, colocando a influência de Peter Parker na vida do Homem-Aranha como protagonista. É espetacular!
Podendo escolher entre voltar ao anonimato e se dedicar aos problemas comuns, Peter abandona suas responsabilidades de herói e, numa cena emblemática, diz ao seu Tio Ben que não será mais o herói. A maneira como esse diálogo é conduzido consolida o Tio Ben como O Mentor do garoto, mesmo morto. Seu legado de responsabilidade transcende a própria morte e (Cliff Robertson) segue influenciando o comportamento e a moral do sobrinho. E é justamente numa terra sem Homem-Aranha que surge o Doutor Octopus. Após perder sua esposa na exibição de seu projeto, Otto perde o controle e passa a agir por influência dos tentáculos mecânicos.
É deliciosamente irônico como o vilão nasce debaixo do nariz de Peter. A persona do Octavius é transformada de ídolo a vilão de maneira crível e natural. É um personagem que conversa diretamente com Peter, visto que ambos são homens da ciência, cheio de sonhos e perspectivas. Quando essa realidade é retirada de Otto, ele age de maneira irresponsável, focado exclusivamente em concluir seu projeto. Sem se importar com as vidas que podem ser perdidas no caminho e nem como seu projeto pode agir de forma negativa na vida dos outros, ele comete crimes simplesmente porque pode.
Peter chegou a agir com irresponsabilidade ao adquirir seus poderes, e isso terminou com a morte de seu Tio. O Doutor Octopus é uma projeção do que o garoto poderia se tornar caso ignorasse o peso da responsabilidade de ter os poderes que tem.
Enquanto Octopus segue estruturando seus planos, Peter sente os benefícios de não ter mais uma vida dupla. Tudo fica absurdamente mais fácil, mas a que preço? A criminalidade em Nova York atinge níveis altíssimos e o povo clama por um herói. Até mesmo J. J. Jameson se rende e admite que errou ao julgar o Teioso como criminoso todo esse tempo.
Então, de maneira emocionante, Raimi coloca Peter para resolver seus conflitos pessoais e traz a Tia May (Rosemary Harris) para um dos discursos mais bonitos da história dos filmes baseados em HQs: “Acredito que há um herói dentro de todos nós. Que nos mantém íntegros. Que nos dá força. Nos enobrece. E, por fim, nos deixa morrer com dignidade. Mesmo que, às vezes, seja preciso ser firme e desistir daquilo que mais queremos. Até dos nossos sonhos”. Meu amigo, isso é de arrepiar! É uma frase que causa tanto impacto, de uma força tão grande… face a esse choque de realidade, o menino vira homem e abraça sua realidade de herói. Não importa que isso signifique viver com dificuldades financeiras ou seguir sem o amor de sua vida. Ele tem um dom único e deve usá-los para o bem, afinal “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.
É aí que ele entende seu papel como herói e que, apesar da influência que sua vida pessoal faz na vida de uniforme, ser o Homem-Aranha é o que ele deve fazer. Não por ser legal, não por ser divertido, mas por ser seu dever. Seu maior dom é sua maior maldição. É uma dualidade fantástica e muito bem explorada pela direção. Então Octopus sequestra Mary Jane e Peter, abraçando sua persona de Homem-Aranha, volta a ativa. Começa um combate visualmente fantástico, que culmina em um dos momentos mais impressionantes do cinema dos anos 2000: uma sequência de luta que é interrompida quando Peter precisa parar o trem com as próprias mãos.
Você consegue perceber que ele está pronto para se sacrificar pela vida dos passageiros, mesmo que isso signifique para ele perder Mary Jane. É neste momento que Nova York o reconhece como herói e abraça o Homem-Aranha como seu maior patrimônio. Desmascarado, mas moralmente amparado pelos passageiros, Peter consegue salvá-los e se põe pronto para a batalha. Levado até Harry, o Aranha é desmascarado pelo melhor amigo. Ao descobrir que Harry deu o trídio para Octopus, Peter se solta das correntes e dá uma lição dolorosa no amigo: “temos problemas e desavenças, mas há algo mais importante que nós em jogo”. E assim ele se vai, deixando Harry sem reação, rumo ao seu desfecho em Homem-Aranha 3 (2007).
No confronto final, Homem-Aranha e Doutor Octopus chegam a se enfrentar fisicamente, mas é com o diálogo que Peter vence a derradeira batalha. Ele se enxerga no vilão e usa de sua humildade para tentar fazê-lo ver que ele era uma boa pessoa. Se Harvey Dent, quatro anos depois, viria a dizer que: “Ou você morre como herói, ou vive o bastante para se tornar o vilão”, Peter Parker se recusou a deixar o mal vencer e acreditou até o fim que a bondade dentro de nós é capaz de agir quando se age com consciência. Nesse ato heroico de empatia, Peter consegue que Otto recobre o controle e faça a escolha de não morrer como vilão.
É quase poético como herói e vilão dialogam diretamente com a personalidade de Peter Parker ao longo do filme. Com o conflito resolvido, Mary Jane larga seu relacionamento e, quase como uma recompensa do destino, a coloca na vida do menino outra vez. E assim termina o filme: um herói ciente de quem é rumo ao dever inerente a sua persona.
Há 16 anos, Sam Raimi definia o conceito de heroísmo do Homem-Aranha nos cinemas com muita simplicidade e honestidade. E por mais que a abordagem mais atual, cuja franquia é estrelada por Tom Holland, seja muito divertida e fiel a megalomania dos quadrinhos, ela ainda não conseguiu atingir o nível de profundidade da trilogia original. Eu acredito que isso possa mudar no terceiro filme, visto que Homem Aranha: Longe de Casa começa a inserir alguns conceitos mais densos, mas duvido que tenhamos uma obra do herói tão bem executada quanto o memorável Homem-Aranha 2.