Lançado em 1837 pelo escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, o conto A Pequena Sereia se tornou uma das obras mais celebradas do meio dos contos de fadas clássicos. A história se consagrou como uma das obras mais eficazes de falar com as crianças, justamente por misturar perfeitamente a fantasia dos contos imaginativos, ao mesmo tempo que lidava com uma protagonista bem novinha e deslumbrada, de fácil identificação para a molecada. Com o passar dos anos, a obra foi adaptada para peças teatrais, balés, especial para rádio, TV e, claro, explodiu ao redor do mundo com a releitura lançada pela Disney em 1989.
No entanto, mesmo se tratando de um conto infantil, a versão original era bem mais sombria do que a versão da Disney, já que ele segue a tendência dos contos de fadas da época, que serviam também como histórias educativas para prevenir a molecada de fazer besteira. Quer forma melhor de educar uma criança do que um leve terror psicológico dizendo que se ele aprontar, poderá até morrer? A molecada se amarrava lá nos 1800. E isso é bem comum se tratando de Hans Christian Andersen. Outro conto famosíssimo dele é A Rainha da Neve, que serviu de base para outro fenômeno da Disney ao ser adaptado como Frozen: Uma Aventura Congelante (2014), que também modificou bastante a história original.
Nessa época, era bem comum que as princesas e protagonistas passassem por situações bizarríssimas, geralmente morrendo ou se complicando no final. Por exemplo, no Chapeuzinho Vermelho original, o Lobo Mau mata a Vovozinha, cozinha seu corpo e coloca seu sangue em uma jarra, fazendo a menina se empanturrar da própria avó. Em A Branca de Neve, a jovem tortura a Bruxa Má, fazendo com que ela dance eternamente em brasa ardente usando sapatos de ferro. Falando em sapatos, no conto original da Cinderela, as irmãs feias estão desesperadas pela riqueza do príncipe, então mutilam os próprios pés para tentar adequá-los ao sapatinho de vidro.
A Bela Adormecida conta a história de uma jovem que espeta o dedo no tear e cai em sono profundo. Então, um príncipe a encontra desacordada, abusa sexualmente dela, que engravida e passa a gestação inteira dormindo, até que seus gêmeos nascem e, famintos, chupam o dedo da moça e acabam tirando a agulha do dedo da mãe. De volta à vida e mãe de gêmeos, a coitada vai atrás do príncipe abusador e descobre que ele seguiu a vida e casou-se com outra. A outra ficou revoltada com a situação e, pasme, decidiu mandar matar e cozinhar os bebês da coitada. Só que não dá certo, então ela opta por empurrar a Bela Adormecida numa fogueira gigante. O príncipe abusador descobre tudo e corre para empurrar a própria esposa na fogueira. Viúvo, ele vai atrás da Bela Adormecida e casa com ela.
Por mais que também tenha uma série de crueldade em sua trama, o conto A Pequena Sereia é bem mais poético do que “educativo”, e traz um certo drama mais bonito que esses citados anteriormente. Isso porque a trama se passa no mar nórdico, em que uma jovem e esmirrada sereia, a caçula de seis irmãs, sonha em crescer para poder fazer seu ritual de maioridade. Na história, ao completar 15 anos, todas as sereias ganham a oportunidade de explorar a superfície em uma aventura única. Assim, quando elas retornam para o fundo do mar, contam as histórias do que viram e viveram. Só que a história mostra que não há rivalidade entre as criaturas da superfície e as marinhas. Na verdade, por serem mundos tão distintos, há uma certa indiferença entre eles. Menos para a pequena sereia, que se encanta com as histórias das irmãs e se fascina por essa vida fora d’água.
Quando chega sua vez, a pequena sereia sobe para a superfície e vê um navio comemorar com fogos de artifícios, até sofrer um naufrágio. A jovem vê o príncipe se afogando e decide ajudá-lo. Ela leva o rapaz até a praia e deixa seu corpo na areia, até que surge uma moça e o ajuda. A pequena sereia sente algo diferente pelo rapaz e se apaixona por ele, que sequer sabe de sua existência. De volta ao fundo do mar, ela consulta sua querida avozinha sobre quais as diferenças entre os seres humanos e as sereias. E aí que entra a parte filosófica da parada. A avó diz que apesar das sereias viverem até os 300 anos, sua jornada acaba quando elas morrem e viram bolhas no mar, enquanto os humanos têm uma vida mais curta, mas por terem almas, começam uma jornada eterna no céu quando morrem. Apaixonada pelo príncipe e fascinada por isso, a pequena sereia busca a Bruxa do Mar por um acordo para se tornar humana, conquistar o príncipe se ganhar uma alma eterna, tal qual a das pessoas da superfície.
O problema é que o acordo aqui é bem mais cruel que o dos filmes, já que a Bruxa pede sua voz em troca, então corta a língua da garota fora. Além disso, a transformação de sua cauda em pernas é praticamente uma cirurgia plástica clandestina, em que a cauda é cortada no meio e costurada, causando uma dor equivalente a “mil adagas atravessando o corpo”, chegando a sangrar, torturando a menina. Porém, diz a Bruxa que quando se recuperar totalmente, a menina teria pernas capazes de dançar mais que qualquer ser humano, mesmo que sinta como se estivesse pisando sobre facas. E apesar do trato não ter um prazo para acontecer, é acordado que ela não apenas deva conseguir um beijo do príncipe, mas deve se casar com ele. Caso não conclua o casamento, a pequena sereia teria sua morte antecipada, virando bolhas na madrugada da noite de núpcias do amado.
Em terra firme, a sereia muda encontra o príncipe, que se encanta com a beleza da jovem. Para complicar mais a situação da garota, ele fica doidinho vendo-a dançar. Então, mesmo que cause uma dor insuportável, ela passa um bom tempo dançando para ele. Eis que bate o choque de realidade, quando o Rei diz ao príncipe que arrumou um casamento para ele com a princesa do reino vizinho. Ele, então, conta para a sereia que não pode se casar com essa tal princesa, porque seu coração bate pela menina que o encontrou na praia. Sim, ele acredita que ela o salvou do afogamento e ficou perdidamente apaixonado pela mulher. E como a sereia não tinha mais língua, ela sequer pôde explicar que era ela a responsável por seu salvamento.
Para piorar a situação da sereiazinha, o príncipe acaba descobrindo que a tal princesa arranjada era a mesma menina da praia. Ou seja, ele desiste da ideia de negar o matrimônio e consuma o casamento com a moça. A sereia fica desolada, não só por perder seu grande amor, mas porque sabe que sua jornada chegou ao fim. Preparando-se para a morte, ela recebe uma visita das irmãs na noite de núpcias do príncipe. Elas fecharam um acordo com a Bruxa do Mar para salvar a vida da caçula. Elas trocaram seus belos cabelos por uma adaga de prata, que anularia o acordo da Pequena Sereia, caso ela assassinasse o príncipe com a arma e deixasse o sangue dele cair sob seus pés.
A sereia até cogita cometer o ato, mas ao vê-lo dormir pacificamente com a esposa, ela desiste de esfaqueá-lo e corre para o mar. Na água, ela aceita seu destino e vira um amontoado de bolhas. No entanto, em vez de morrer, ela consegue sentir o calor vindo do sol e acaba sendo acolhida pelo ar em forma de espírito. Sua busca extrema por uma alma eterna comoveu os outros espíritos, que a aceitaram como um deles, conquistando seu desejo mais profundo.
Com o passar dos anos, a história se consolidou como uma das mais queridas da Europa, e virou um símbolo da Dinamarca. Tanto que foi homenageada com uma estátua nas águas de Copenhague, na Dinamarca, que foi inaugurada em 1913 e segue como um grande ponto turístico até hoje. A estátua fez tanto sucesso que o país passou a presentear outros com réplicas menores dela. Uma delas, inclusive, foi dada ao Brasil e está exposta em Brasília, em frente ao prédio principal do Comando da Marinha.
E aí, qual sua versão favorita da história da pequena sereia? Diga nos comentários!
A Pequena Sereia (1989) e o live-action, que completou um ano de sua estreia, estão disponíveis no Disney+.