O estilo de Adam Elliot é inconfundível. O australiano é mestre do Claymation, uma vertente do Stop Motion que trabalha com personagens de massa de modelar, e sabe como usar essa técnica para intensificar as narrativas trágicas de suas protagonistas. Seus filmes geralmente se baseiam em tons de cinza, preto e marrom, que remontam não apenas a argila utilizada em alguns cenários, como também ao estado de espírito depressivo e deslocado de seus personagens.
Ele ganhou o Oscar em 2004, com o curta Harvie Krumpet, mas foi mesmo com Mary e Max – Uma Amizade Diferente que ele se destacou. Seu estilo aposta em personagens problemáticos, que vivem alheios aos padrões sociais e parecem não se encaixar nem mesmo dentre os excluídos. Ainda assim, eles seguem seus dias se questionando o por quê de tantas desgraças, eventualmente conseguindo momentos de alegria. Em Memórias de um Caracol*, ele não foge desse padrão, mas talvez tenha chegado a sua obra mais palatável e identificável de todas sem perder sua essência reflexiva.
Não é segredo pra ninguém que a sociedade vive um momento assustador. Parece que as pressões estéticas e psicológicas chegaram a níveis irreversíveis, fazendo com que o simples fato de existir seja motivo para crises intermináveis de ansiedade e casos graves de depressão pelo mundo. Todos estão se comparando aos outros o tempo inteiro e a felicidade verdadeira parece impossível de ser alcançada.
Partindo desse conceito, o filme conta a história de Grace Pudel, uma menininha excluída cujos únicos amigos são seu irmão gêmeo e os caracóis que ela coleciona em uma jarra de vidro. Sua vida é marcada por perdas inestimáveis e tragédias pelas quais criança nenhuma deveria passar. Ainda assim, ela encontra conforto e fascínio nas trapalhadas do irmão, que é apaixonado por fogo e sonha em ser artista de rua em Paris, e na complexidade dos cascos dos caracóis.
Acompanhamos sua trajetória desde a infância até a vida adulta, quando ela se torna uma mulher acima do peso, frustrada e acumuladora. Presa aos traumas do passado, ela se recusa a se ver como uma pessoa interessante e digna de amor ou amizade das pessoas. De certa forma, ela encontra conforto em uma idosa também distante dos padrões sociais. Chamada Pinky, a velhinha definitivamente aprontou na juventude e viu na jovem Grace uma lesminha eternamente presa a sua concha. Tão complexada com a própria aparência e com tanto medo do mundo que passou anos de sua vida sem se permitindo viver.
É angustiante e instigante acompanhar os dilemas e furadas em que Grace se enfia. E o mais curioso é como a direção faz questão de retratar tudo ao redor dela da forma mais feia possível e ainda assim retratar as situações de maneira bela. Um dos grandes méritos desse filme, senão o maior deles, é justamente encontrar beleza, mesmo que momentaneamente, em cenários horríveis.
Por mais que os personagens sejam propositalmente feinhos, a construção de suas respectivas personalidades são tão bem feitas e apostam tanto na identificação, que não demora nem dois minutos para simpatizar com seus formatos e expressões tristes, passando ao público a vontade de pegá-los no colo para dizer que vai ficar tudo bem. E a jornada de Grace é tão brutalmente simplória, jogando a pobrezinha na vala até mesmo em momentos que parecem que sua vida vai entrar nos eixos, que a identificação se torna imediata. A vida real não tem pena das pessoas. Se coisas ruins tiverem de acontecer, elas vão. E é isso. O mesmo se dá no filme.
No entanto, conforme o público se solidariza com a Grace, surge uma breve revolta sobre os papéis a que ela se submete. E quando ela vai percebendo as problemáticas de suas ações, nos momentos em que parece tarde demais para mudar e buscar uma nova vida, pequenos raios de esperança surgem. É nesse realismo assustador que a direção abre mão brevemente de seu humor politicamente incorreto e crueldade para permitir que Grace – e o público – sonhe com dias melhores.
No fim das contas, por mais cru e triste que seja a história, a grande reflexão desse projeto, além de encontrar pequenos focos de beleza no fundo do poço, é que nunca é tarde demais para se lembrar quem você realmente é, ressaltando que o passado é importante, mas que é o futuro que nos guia.
Em meio a personagens feinhos e um mundo triste, frio e desolador, Memórias de um Caracol é um dos filmes mais lindos e sinceros do ano. Se você se afogou de chorar com Divertida Mente 2, talvez não esteja pronto para o buraco em que esse filme vai te jogar antes de mostrar que, cara, viver vale muito a pena, mesmo que você tenha um passado de arrependimentos. Porque, no fim do dia, só quem sabe da sua vida e índole é você mesmo. E é a essa pessoa que você deve satisfações. Por mais que o mundo te veja como um caracol, nojento e desprezível, não são eles que te definem e você é, sim, uma pessoa digna de amar e ser amada.
Apesar de ainda não haver uma data de estreia para Memórias de um Caracol no Brasil, quem estiver em São Paulo terá uma chance para ver nas telonas. A Mostra SP fará uma última sessão às 15h da próxima terça-feira (5), no CineSesc.
*Filme assistido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.