Mostra SP | Sean Baker é um diretor para se prestar atenção

Se você ainda não é fã de Sean Baker, prepare-se para ouvir este nome com bastante frequência nos próximos meses. Isso porque seu mais novo filme, Anora, venceu a Palma de Ouro e começou a ter sessões esporádicas no Brasil. Na Mostra SP, por exemplo, há sessões nos dias 19, 21, 25 e 29 de outubro, todas com ingressos disputadíssimos, o que indica o sucesso exponencial do diretor.

Porém, em uma estratégia um tanto quanto questionável, a Universal Pictures decidiu adiar a estreia do filme, que estava programada para 31 de outubro de 2024, para 23 de janeiro de 2025. A decisão pegou muitos de surpresa, e apesar de parecer sem sentido, se apoia justamente na fé da distribuidora de que o longa conseguirá algumas indicações ao Oscar. Não por acaso, a nova data de estreia coincide com a divulgação dos indicados ao prêmio, que serão revelados em 17 de janeiro. Ou seja, é uma estratégia para tentar surfar na onda da premiação e atrair diferentes públicos no Brasil. Se foi uma tática inteligente ou não, só o tempo dirá. Afinal, o hype orgânico que o filme está gerando certamente não é de se jogar fora. No entanto, é possível que esse atraso sirva também justamente para prolongar a ‘vida’ de Anora e Sean Baker na boca do povo.

Grupo de jovens em festa descontraída.

O filme acompanha a história de Anora (Mikey Madison), uma garota de programa do Brooklyn que é descendente de russos e, por isso, arranha no idioma. Sua vida muda quando ela atende Vanya (Mark Eidelstein), um playboy russo de passagem que acaba se apaixonando pela menina e a contrata para ser sua namorada por uma semana. Vivendo uma vida sem limites, a dupla se apaixona e consolida um casamento em Las Vegas. O problema é que o rapaz é filho de um oligarca russo, e a notícia de que o herdeiro da fortuna teria se casado com uma stripper começa a percorrer os noticiários do país. Então, os pais decidem por um fim nisso e colocam seus capangas para resolverem as ações do menino mimado, colocando Anora em uma aventura extremamente incômoda, engraçada e absurda para encontrar o marido, que foge na primeira oportunidade, e tentar anular o casamento contra sua vontade.

O filme brinca com a trama de Uma Linda Mulher, mas trata a situação com o mínimo de glamour possível. É tudo tão absurdo que o público fica dividido quanto a quem torcer nas situações, com exceção da Anora, a grande vítima disso tudo. É um filmaço que traz Sean Baker no auge de seu equilíbrio estilístico. É talvez seu filme visualmente menos saturado, apostando mais nas cores sóbrias do inverno e nos neons das boates e da vida noturna. E fica nítido esse contraste de iluminação de acordo com as fases e expectativas que Anora enfrenta ao longo da trama. Enquanto levava sua vida sofrida, mas dentro do ‘normal’, a menina era exposta a luzes fortes, quentes e diversos neons. Depois de perceber a furada em que se meteu, o mundo perde muita cor e abraça o frio como elemento narrativo.

Duas pessoas em frente a mural colorido, ao ar livre.

É curioso ver esse estilo em um filme de Sean Baker. Na última década, o diretor se destacou por projetos bastante diferentes, sempre focados em personagens socialmente quebradas e excluídas, mas marcados por uma fotografia quente e supersaturada. Ele se destacou em filmes independentes, sendo Tangerina (2015) o primeiro a furar a bolha ao trazer uma execução bastante inesperada.

Na época, o filme repercutiu por ter sido gravado inteiramente com três iPhones 5S, abrindo mão das caras e pesadas câmeras profissionais. E o resultado foi visualmente espetacular. Baker aproveitou dessa repercussão para contar uma trama ‘natalina’, por assim dizer, sobre Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez), uma prostituta transsexual que passou um mês na cadeia e, ao sair, descobriu que seu namorado/ cafetão a trocou por uma mulher cisgênero. Revoltada, Sin-Dee chama sua melhor amiga e parte em busca dos dois para conseguir se vingar na véspera de natal, o que claramente termina em uma série de confusões e críticas sociais afiadíssimas, abordadas de maneira orgânica. E essa talvez seja a principal característica do diretor. Ele sabe retratar essas personagens quebradas de forma bem-humorada e respeitosa, mas sem ‘passar pano’ para elas.

Homem e menina em corredor de motel.

Ele sabe que a sociedade é falha e enxerga beleza em certa parte dessa degradação social, mostrando que até mesmo no fundo do poço é possível ter bons momentos, mesmo que eles geralmente sejam engolidos pela sequência desesperadora de desgraças impostas a essas pessoas.

E isso leva a Projeto Flórida (2017), longa que rendeu uma indicação de Willem Dafoe ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, e revelou a pequena Brooklynn Prince ao mundo. O filme é ambientado na parte menos glamourosa de Orlando, dando foco aos motéis de beira de estrada e às pequenas sociedades que existem nesse microcosmo. Enquanto de um lado da rua há todo o luxo dos parques temáticos e de viajantes do mundo inteiro que juntam pequenas fortunas para irem nos brinquedos e tirarem fotos com adolescentes vestidos de personagens, do outro lado da estrada existe uma série de crianças em situação extremamente precária, vivendo em motéis com suas famílias e cometendo pequenos delitos ao longo do dia para se divertirem. Em meio a eles, existem os donos de lojas e das próprias hospedarias, que lidam com os mais diferentes tipos de pessoas e situações, jogando luz nesse cenário caótico de Orlando.

Mãe e filha brincando com carrinho de compras.

A trama é contada pela ótica infantil de Moonee (Prince), uma menina sapeca e desbocada de apenas seis anos, que passa o dia aprontando por Orlando em meio a outras crianças socialmente desamparadas. Ela é filha de Halley (Bria Vinaite), uma jovem abandonada pelos pais que sobrevive de empregos pontuais e golpes que aplica em turistas, mas que foi apadrinhada pelo gerente do motel em que vivem, Bobby (Dafoe). A vida de Bobby é um completo caos, porque ele precisa gerir o motel enquanto serve de mentor e acoberta as cagadas que Moonee e Halley se enfiam. Ele acredita que elas possam mudar de vida e faz de tudo para que a jovem não se perca no mundo da prostituição, um fantasma que assombra a mãe tatuada ao longo de toda a trama. Porém, para Moonee, todos esses perrengues são normais. Essa é a única vida que ela conheceu em sua existência.

O longa é cercado por essa inocência infantil em meio a uma série de situações extremamente pesadas e degradantes, fazendo desse, talvez, o filme mais repleto de humanidade da carreira de Sean Baker. Ele consegue pegar esses dois estereótipos da sociedade – a mãe solteira/ adolescente ‘perdida’ e a criança encapetada e mal educada – e faz o público olhar para essas duas personagens de forma empática e solidária. E aí que entra o diferencial do diretor, o lance de não ‘passar pano’. Ele entende os erros da dupla e força o público ao limite. O espectador entende os dramas, mas não deixa de se revoltar com as oportunidades perdidas e a insistência nos erros. Tudo isso com uma fotografia espetacular. Diferentemente de Tangerina, Projeto Flórida é gravado em filme 35 mm, dando ao longa um aspecto visual de conto de fadas quebrado.

Duas pessoas conversando no balcão de loja.

Após o sucesso de Projeto Flórida, o diretor entrou em um hiato que talvez tenha atrapalhado sua ‘explosão’ após o sucesso do longa de 2017. Mas seu retorno foi triunfal com Red Rocket. O longa segue no mundo do excluídos, mas em um contexto ainda mais pesado: as eleições presidenciais dos EUA de 2016. O filme acompanha Mike Saber (Simon Rex), um ex-ator pornô que fica velho para a Indústria, fica na miséria e decide retornar ao Texas, onde largou uma esposa na que também teve seus dias no pornô, mas foi relegada a uma vida cheia de frustrações e dificuldades quando perdeu sua serventia para os filmes.

Mike é um pária. Sem-teto, ele não tem nada mais que as lembranças dos dias de glória e a necessidade de sobreviver. Após convencer a esposa a aceitá-lo de volta na casa, ele procura emprego, mas não é contratado para nada por seu passado no entretenimento adulto. Então, ele começa a vender drogas para conseguir dinheiro, só que conforme a grana entra, Saber perde a humildade da miséria e volta a ser o grande babaca que abandonou aquela vida antes.

Pessoas olhando por cerca em quintal.

Red Rocket talvez seja o mais marginalizado dessa fase mais popular de Baker, mas é genial. Ele brinca o tempo inteiro com a ascensão do Trumpismo no Texas, enquanto retrata a vida miserável que as pessoas na região vivem. Todos estão muito prejudicados, a situação é literalmente de miséria e eles depositam esperança em um candidato cujo bordão é resgatar o orgulho e os dias bons de um país repleto de desigualdades sociais. E quem mais apoia o candidato é justamente Mike, um grande vigarista que entende esse cenário de desgraça em que todos se encontram e tenta se aproveitar disso para engambelar gente simples e boa que busca apenas sobreviver.

O protagonista é um tipo de empresário das vacas magras, adotando a tal da filosofia do tubarão para mordiscar qualquer oportunidade de se dar bem, mesmo que isso signifique destruir a vida de quem ele prometeu amar. É um caso muito curioso de filme, porque o protagonista é desprezível, mas as situações são conduzidas de forma cômica, então você meio que não consegue tirar os olhos da tela porque quer saber até onde aquele absurdo vai. E assim como os outros projetos de Baker, não há ‘passada de pano’ para os atos do protagonista. Só que ele joga tão sujo e faz umas cagadas tão tenebrosas que se não fosse o carisma de Rex, astro da franquia Todo Mundo Em Pânico, talvez fosse difícil de comprar a história. O trabalho de fotografia também aposta em cores vibrantes e quentes, que fazem os personagens parecerem sujos e suados o tempo inteiro, intensificando a imagem de miséria e ansiedade, com exceção do núcleo que envolve a jovem Morango (Suzanna Son), que se torna a grande esperança e potencial próxima vítima de Mike, o destruidor de vidas. Inclusive, há uma metáfora muito interessante sobre o protagonista e seu maior motivo de orgulho: o prêmio de melhor sexo oral da indústria. As personagens se questionam o tempo inteiro o motivo dele ter ganho o tal prêmio se quem realmente fez o ‘trabalho sujo’ foram as atrizes em cena. Assim como em toda sua carreira, Mike colhe os frutos do trabalho alheio, enquanto se faz presente meramente como um agenciador. No fim, ele fica com a fama e as pessoas ao seu redor sofrem as consequências. É um filmaço extremamente subestimado.

Mulher em pose artística e vestido vermelho.

E todos esses sucessos recentes levam a Anora, que parece reunir o que há de melhor desses três filmes que definitivamente elevaram o nome de Sean Baker a uma prateleira mais alta de Hollywood. Se você ainda não ouviu falar dele, é bem provável que até o ano que vem escute falar do sucesso de Anora e se interesse pela carreira do diretor. Há projetos anteriores a Tangerina, como Uma Estranha Amizade (2012), que conta a inusitada amizade entre uma jovem que sonhava em ser atriz – mas só conseguiu vaga em filmes pornográficos – e uma viúva depressiva de 85 anos, que também reflete todo o estilo do diretor, mas esses são mais difíceis de encontrar para assistir.

Fato é que Sean Baker desponta como um dos nomes mais interessantes do cinema atual e certamente merece algumas horinhas de sua atenção.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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