Um coming of age atemporal
Existem certas séries que ficam no nosso imaginário ao longo dos anos, por mais que a gente só lembre de pequenos flashes delas, do estilo de determinado personagem e de um ou outro diálogo marcante. My So-Called Life, exibida no Brasil com o péssimo título de Minha Vida de Cão, foi uma dessas para mim: passei anos lembrando de uma época da minha infância em que Claire Danes exibia belíssimos cabelos vermelhos em uma história de adolescentes, colégio e amores platônicos – tanto que decidi rever aos 20 anos para finalmente entender porque o seriado tinha me marcado tanto quando eu era criança.
Na época, 2011, eu logo entendi que eu só lembrava de pequenos detalhes do programa porque ele não era mesmo voltado para uma criança da minha idade quando passou na televisão pela primeira vez. Eu certamente só tinha ficado encantada com o estilo da protagonista e o universo de colégio para ter uma recordação tão forte dele, mas era impossível ter entendido o que a história queria de fato passar quando eu só tinha 5 anos. É que indo muito além de outros programas do gênero que só sabiam trazer clichês e mais clichês, My So-Called Life, exibida entre 1994 e 1995, era uma série à frente de seu tempo, onde assuntos como homossexualidade, liberdade sexual da mulher e outros tabus para a década eram mencionados abertamente pelos personagens profundos e muito bem construídos. Assim, aos 20, pude finalmente absorver toda aquela mensagem e aí sim, entender todos os dilemas de Angela Chase e virar fã de verdade.
Mas, em um desses dias de ócio em que nos pegamos relembrando séries/filmes que marcaram nossa vida, pensei: como seria rever a série oito anos depois e já bem distante de todo aquele universo adolescente que eu tanto me identificava? Meu medo era de que o roteiro perdesse a qualidade da qual eu me lembrava por não dialogar mais diretamente com a minha faixa etária – ou então acontecesse aquele típico caso em que só gostamos de algo pelo valor afetivo e nostálgico. Só que, para minha surpresa, rever os 19 episódios aos 28 anos só me fez gostar ainda mais de tudo e lamentar por um programa tão bom ter chegado ao fim de forma abrupta, sem um final para chamar de “nosso” (por mais que a season finale nos permita imaginar uma resolução aqui e outra ali). E ainda que exale os anos 90 nas vestimentas dos personagens e na trilha sonora (o que só me faz amar ainda mais por ser apaixonada por essa década), Minha Vida de Cão pode ser considerada uma série atemporal por, desde aquela época, abordar temas que fazem parte da juventude de hoje. E tudo isso sem medo de colocar o dedo na ferida, com personagens que geram identificação, e contando tanto com um diálogo consistente quanto com a expressão dos atores para passar a mensagem que deseja. Ponto para a criadora Winnie Holzman, que também é a autora do aclamado musical Wicked.
Colégio sem clichês: personagens que ultrapassam estereótipos
“A escola é um campo de batalha para o seu coração” (Episódio Piloto)
Quando se fala em séries adolescentes com o colégio como pano de fundo, muita gente que passou dessa fase já torce o nariz por imaginar que a história trará aqueles personagens clichês de sempre: a patricinha, uma nerd desajeitada, um atleta bonitão e por aí vai. Nos anos 80, filmes como Clube dos Cinco, de John Hughes, já conseguiram desconstruir esses estereótipos apresentando protagonistas profundos e que vão além do que a imagem que carregam deixa transparecer – e seguindo essa mesma linha, My So-Called Life nos apresenta heróis e anti-heróis (ou todos sendo os dois ao mesmo tempo, na verdade) que ficam longe de fórmulas feitas e poderiam ser qualquer um de nós.
Sim, Jordan Catalano (Jared Letto) pode parecer o típico bad boy galã à primeira vista, assim como Brian Krakow (Devon Gummersall) lembra os garotos nerds que são incapazes de magoar alguém. Mas, em alguns episódios, os papéis podem se inverter e o primeiro ter uma atitude fofa (como no icônico episódio em que ele finalmente assume Angela e anda de mãos dadas com ela pela primeira vez no corredor do colégio) enquanto o segundo magoa os sentimentos de uma simpática Adelia que só queria ser chamada para o baile pelo garoto por quem era apaixonada (quem não quis socar Brian nessa cena? Eu certamente sim). Do mesmo modo, a ex-melhor amiga de Angela Chase, Sharon (Devon Odessa), surpreende quem esperava que seu jeito doce a impedisse de ter uma vida sexual ativa antes do casamento e sem ser perdidamente apaixonada pelo garoto em questão. Já Rayanne Graff (A.J.Langer), que poderia ser considerada uma popular sem pudores, mostra um lado menos autoconfiante quando fica claro que o medo da solidão e a falta do pai são suas maiores fraquezas.
Até mesmo a personagem de Claire Danes, que vive o máximo clichê de ser apaixonada pelo bonitão do colégio enquanto um vizinho/amigo de infância a ama de verdade, sai dos moldes ao não se apresentar como uma protagonista sem defeitos. Já no piloto, ela mostra que está longe da perfeição quando rompe com sua melhor amiga de anos sem mais nem menos apenas para andar com outras pessoas – Rayanne e Rickie – e se descobrir. O cabelo tingido de vermelho é o responsável por marcar essa transição, mas as transformações e camadas de Angela Chase vão muito além dos fios tingidos.
Talvez, tenha sido justamente essa quebra de expectativas que tenha causado o cancelamento precoce da série lá em 1995 por conta da baixa audiência. Mas, nem perto de ser uma série datada, My So-Called Life até hoje é lembrada como referência para séries adolescentes bem construídas, já que um de seus fortes é ter personagens que não se limitam à dualidade de bem/mal – nem dentro do pátio do colégio e muito menos na vida.
Feminismo/sororidade entre mulheres
“Por que as garotas precisam fazer as outras chorarem?”
(Episódio 5: The Zit)
“Mas eu acho que tem um monte de razões para odiá-la sem precisar falar da vida sexual dela”
(Episódio 7: Why Jordan Can’t Read)
Hoje em dia, com o discurso feminista cada vez mais forte, é até esperado que os filmes e séries considerem essa temática na hora de construir a história e a personalidade dos personagens. No entanto, nos anos 90, ver um programa adolescente que abordava conceitos do movimento através dos diálogos entre as personagens era um achado – e o seriado também fez isso muito bem.
Até mesmo a dupla que foi feita para ser inimiga, Sharon e Rayanne, teve um bonito arco de amizade não-assumida. Confesso que gostava muito mais das duas juntas que qualquer uma delas com Angela, já que a química em cena entre as jovens atrizes era incrível, e o jeito muito diferente de ambas só tornava essa parceria ainda mais interessante de se assistir.
Um dos melhores momentos, que inclusive traz o viés feminista de liberdade sexual, é quando Sharon se sente culpada por estar transando com seu ex sem amá-lo e Rayanne explica que ela pode, sim, se permitir sentir prazer sem que a paixão esteja atrelada ao ato sexual em si. A personagem de A.J. Lange, inclusive, é uma boa representante desta temática com seu espírito livre nos relacionamentos (a ponto de até esquecer o nome de com quem sai, como os garotos do colégio também faziam sem que fossem julgados por isso).
Essa liberdade sexual de Rayanne Graff só é questionada no seriado quando rompe um dos conceitos mais importantes do feminismo: o de sororidade entre mulheres. Se você já assistiu à série, certamente já sabe do que estou falando; mas, para evitar spoiler para quem ainda não viu e pretende fazer esse favor a si mesmo, vou ignorar o fato do programa já ter mais de 20 anos e não falar nada além disso para não estragar a experiência ao assistir a história (de nada!).
Outro episódio que pode ser destacado é o 12º, intitulado de Self-Steem. Nele, de um modo sutil, o programa fala sobre a falta de amor próprio que algumas garotas acabam tendo quando decidem se entregar a alguns relacionamentos amorosos – da professora interessada no novo professor do colégio à aluna CDF que finge ter tirado nota baixa só para estudar com o garoto que gosta e não ferir seu ego. Tendo como foco Angela Chase e outras personagens secundárias, a série mostra como às vezes nos anulamos para agradar/conquistar o outro.
E para finalmente fechar os exemplos, como não falar do 5º episódio? Nele, a partir de uma simples espinha da protagonista, a série questiona os padrões de beleza e, através de Patty (a excelente Bess Armstrong), a mãe de Angela, também fala sobre como é mais difícil para a mulher lidar com a fase do envelhecimento. No fim, com uma bela mensagem através da narração em off da protagonista, deixa claro que cada uma é linda a seu modo, seja na infância, na juventude ou já ficando mais velha e com linhas de expressão bem marcadas. We go, girls!
Mãe e filha: um relacionamento nada Lorelai e Rory Gilmore
“Às vezes, eu não consigo olhar para a minha mãe sem desejar esfaqueá-la repetidas vezes”
(Episódio Piloto)
Quem já viu Gilmore Girls, a série de Amy-Sherman Palladino, que também marcou uma geração, sabe que o bom relacionamento entre mãe e filha é um dos principais pontos fortes da história. Lorelai e Rory Gilmore, interpretadas respectivamente por Lauren Graham e Alexis Bledel, mostravam em todos os episódios como uma era a melhor amiga da outra, e como não existia nenhum assunto tabu entre ambas – por mais que, como em toda amizade, também se desentendessem às vezes. Mas, se você espera ver uma relação parecida com essa em My So-Called Life, já fica o aviso: Angela e Patty Chase nada tem a ver com as “garotas Gilmore”, e as discussões entre as duas são constantes ao longo da temporada.
Com isso, a série consegue mostrar de uma forma muito natural o distanciamento dos filhos com a chegada da adolescência. Ainda que existam exceções, é muito comum que a puberdade – época em que os hormônios estão à flor da pele e a personalidade começa a ser moldada – acabe criando uma certa barreira no núcleo familiar, principalmente quando fica claro que os pais não são tão perfeitos assim (como no momento em que Angela descobre que seu pai, vivido pelo ator Tom Irwin, estava quebrando a promessa de fidelidade do casamento flertando com outra mulher).
No entanto, apesar de todos os atritos, é para eles – principalmente para a mãe – que Angela recorre quando algo dá errado e precisa de alguém responsável ao lado ou apenas de um ombro amigo (quem nunca?). Sabe a famosa frase de O Mágico de Oz, “There is no place like home”? Então. Ela define perfeitamente o relacionamento de amor/ódio entre a personagem de Claire Danes e sua família protetora – e o mérito da série é mostrar essa “montanha-russa” de sentimentos de maneira muito realista.
Homossexualidade como um dos temas principais quando ainda era tabu
“Ninguém deveria odiar quem realmente é”
(Episódio 12 – Self-Steem)
Ver personagens LGBT em filmes e séries não é mais novidade hoje em dia, ainda mais quando a representatividade de minorias tem ganhado cada vez mais força no mundo do cinema. Mas, nos anos 90, não era tão fácil assim trazer este assunto à tona – e, quando acontecia, era muito comum que a representação viesse carregada de estereótipos ou apenas funcionasse como um alívio cômico na história.
Em Minha Vida de Cão, no entanto, isso não acontece: o personagem gay, Rickie Vazquéz (Wilson Cruz), não está no enredo apenas para ser o melhor amigo da protagonista e muito menos como o responsável pelas risadas da série. Ele tem seu próprio arco dramático – inclusive, um dos mais importantes do programa – e fala o tempo todo sobre a dificuldade de se encontrar e se adequar em um mundo heteronormativo. E o assunto é tratado de uma forma tão responsável e correta que a trama pode ser assistida nos dias de hoje sem a necessidade de retoques nos diálogos para que se encaixe de uma maneira melhor no discurso atual. Alguém ainda tem dúvidas de que o seriado era mesmo à frente do seu tempo?
Trilha sonora e o estilo dos anos 90
“Well, hang on
Don’t let yourself go, ‘cause everybody cries
And everybody hurts, sometimes…”
(R.E.M – Everybody Hurts)
Revisitar My So-Called Life também é uma boa oportunidade de rever os anos 90. Seja pelo look dos personagens – com a pegada grunge, cheia de xadrez e sobreposições, que bombava na época – ou pela trilha sonora (que conta com nomes como R.E.M, The Cranberries e Buffalo Tom) é quase como se transportar para a década pela qual muita gente é apaixonada.
Assim, além da necessidade de imaginar um final por conta própria, difícil é terminar o programa sem sentir vontade de viver novamente – ou pela primeira vez, dependendo da sua idade – aqueles tempos em que os personagens estavam. O bom é que sempre há a chance de ver tudo de novo (como eu fiz pela terceira vez) e colocar hinos da série – como Late At Night, I Wanna Be Sedated e Everybody Hurts – para tocar nos fones incessantemente. É o que tenho feito antes de decidir começar minha 4ª maratona daqui a alguns anos – e provavelmente ver todos essas qualidades atemporais novamente e alguns detalhes que só a experiência de vida vai me mostrar. Não é qualquer programa que consegue fazer isso… Que série, amigos!