Madonna, Jodie Foster e um elenco de peso presente na sátira de suspense do renomado diretor
Um assassino conhecido como “O Estrangulador” espreita à noite, colecionando inúmeras vítimas no melhor estilo Jack, O Estripador. Uma noite escura, repleta de neblina é onde a trama se desenrola. Os habitantes da então pacata cidadezinha resolvem sair em vigília caçando o criminoso com as próprias mãos. Todos estes elementos constituem Neblina e Sombras, o vigésimo primeiro filme escrito e dirigido pelo autoral Woody Allen. O longa completa 30 anos de lançamento em 2021 e abaixo iremos relembra-lo com você, seja você fã de Allen ou de suspense e terror.
Woody Allen há muito tempo é considerado uma figura polêmica, desde que traiu a então esposa Mia Farrow com sua filha adotiva Soon-Yi, caso que data do início dos anos 1990, época em que este longa foi lançado. Allen e Soon-Yi permanecem juntos até hoje, num relacionamento que para todos os efeitos deu certo – apesar da dor que causou em especial à então companheira traída Farrow. O nome do cineasta voltou recentemente aos holofotes e para seu azar bem na época da caça às bruxas moderno, conhecido como “cancelamento”. Novas acusações mais graves levaram o nome do cineasta direto para a lama, e jovens atores da nova geração, como Timothée Chalamet e Selena Gomez devolveram seus salários demonstrando arrependimento de terem trabalhado com ele e estrelado Um Dia de Chuva em Nova York (2019) – filme que igualmente sofreu embargo em seu lançamento. O diretor tem enfrentado dificuldade para financiar seus novos projetos, e seu contrato com a Amazon parece ter sido quebrado.
Voltando trinta anos no passado, as coisas eram muito diferentes para Woody Allen. Em 1991, o cineasta era um dos nomes mais quentes do cinema norte-americano. Isso porque nesta época, o diretor já havia entregue os celebrados e premiados Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan (1979) e A Rosa Púrpura do Cairo (1985). No início dos anos 80, Woody Allen começava uma tendência que viria a ser quebrada somente em 2018, a de lançar um filme por ano durante pelo menos três décadas.
Em 1991, era a vez do artista homenagear um estilo específico de cinema, demonstrando ser um grande cinéfilo. De forma única em sua carreira, Allen surgia com sua própria versão dos filmes do expressionismo alemão, de ídolos como F.W. Murnau (Nosferatu), Fritz Lang (M, O Vampiro de Dusseldorf) e Georg Wilhelm Pabst (A Caixa de Pandora). Para tal, Allen cria um filme inteiramente em preto e branco, com uma fotografia e direção de arte que emulam o estilo, se mostrando um ponto fora da curva em sua filmografia. A atmosfera é o grande diferencial de Neblina e Sombras se formos comparar ao corpo de trabalho dos demais projetos do cineasta. Não por menos, o longa foi o maior orçamento recebido por Allen para um longa seu até então, algo em torno de US$19 milhões.
Bancado pela extinta Orion Pictures – que ensaia um retorno ao mercado atualmente, a única exigência do estúdio foi a de que Woody Allen deveria protagonizar o longa igualmente, desta forma tornando a obra mais vendável e com maior possibilidade de se tornar rentável. Dito e feito, na trama, escrita pelo próprio, ele interpreta Kleinman, o típico personagem de Woody Allen de qualquer filme seu: ou seja, paranoico, medroso e altamente satírico. O protagonista, um burocrata cuja maior preocupação é bajular o chefe em busca de uma promoção no trabalho, é inserido no meio de um thriller tipicamente visto no cinema noir. Quando encontramos Kleinman ele está dormindo confortavelmente em seu quarto, sendo subitamente acordado por uma turba, um grupo de colegas, todos homens de seu vilarejo, para que se junte a eles na caçada a um assassino. Fato que o assusta mais do que qualquer outra coisa.
É preciso dizer que na pequena cidade onde o protagonista reside, um maníaco tem atacado à noite, tornando as ruas não mais tão seguras. A polícia de nada consegue fazer e não tem exibido muito avanço na captura do psicopata. Assim, a população assustada decide partir para a justiça pessoal. No período de uma longa noite é onde a trama irá se desenrolar, com outros núcleos de personagens paralelos vivendo subtramas, algumas inclusive desconectadas da do protagonista, e talvez esse elemento seja a ponta frouxa de Neblina e Sombras, porém, não muito diferente da “escola” do cinema de Woody Allen.
Desde que iniciou seu relacionamento com Mia Farrow, a atriz se tornou a musa do cineasta, status que perdurou por uma década. Aqui, em seu penúltimo trabalho juntos, Farrow vive a protagonista feminina Irmy, mulher humilde e sofrida que trabalha no circo como engolidora de espadas. Seu sonho é se tornar mãe, porém ela não vê grandes chances disso acontecer em seu relacionamento com o companheiro, vivido por John Malkovich, o palhaço do circo com grandes ambições. Na verdade, o sujeito está de caso com a trapezista, que também é casada com o homem forte do espetáculo. Ela é interpretada por ninguém menos que a material girl Madonna, numa participação especial que ocorre logo no começo. Desiludida ao pegar o companheiro com “a boca na botija”, Irmy abandona sua comunidade de artistas mambembes e parte sem rumo, se tornando forte candidata à próxima vítima do maníaco.
Ao invés do assassino, ela encontra uma “mulher da vida” na esquina, papel da veterana Lily Tomlin, que a leva até seu bordel para que tenha abrigo e comida. No local estão figuras como duas então recentes vencedoras do Oscar de melhor atriz: Kathy Bates, que havia vencido no ano de lançamento de Neblina e Sombras por Louca Obsessão, e Jodie Foster, vencedora de 1989 por Acusados (e que viria a vencer por O Silêncio dos Inocentes na temporada seguinte). Além de marcar primeiros trabalhos de gente como William H. Macy, John C. Reilly e Peter Dinklage.
O filme ainda guarda espaço para um jovem John Cusack no papel de um universitário com ideias libertárias que se apaixona por Irmy; e o veterano Donald Pleasence, o eterno Dr. Loomis da franquia de terror Halloween, que aqui interpreta um médico legista. Vê-lo falando sobre o mal contido no assassino e sua busca por compreender melhor o comportamento do psicopata chegam, mesmo que de forma não intencional, como grandes homenagens ao clássico slasher de John Carpenter. O fato só contribui para a mística tenebrosa deste “filme de terror” de Woody Allen.
Para criar o visual do vilarejo em estilo europeu, que nunca é citado por nome, embora todos ao habitantes falem inglês, o diretor de arte Santo Loquasto, usual colaborador de Woody Allen desde A Era do Rádio (1987), confeccionou toda a arquitetura em estúdio, no Kaufman-Astoria, ainda mantendo o recorde como o maior cenário já construído em Nova York. Os detalhes de cada set, cada locação, são impecáveis e apenas adicionam à atmosfera do longa. Para o padrão de Woody Allen, essa era sua superprodução.
Exibido fora de competição no prestigiado Festival de Berlim de 1992, Neblina e Sombras mostrou a ressonância de Woody Allen em território europeu. Porém, em sua terra natal nos EUA, o filme recebeu pouco amor de críticos e público em seu lançamento – com até mesmo os fãs do cineasta dando de ombros para a homenagem do diretor aos clássicos filmes de terror dos primórdios da sétima arte. Fora isso, em sua vida pessoal, Allen enfrentaria sua maior provação na última parceria completa com a então esposa Mia Farrow. No ano seguinte, enquanto filmavam Maridos e Esposas (1992), a atriz descobriria a traição do marido. Décadas mais tarde, seu calvário estaria completo e digno de Kleinman perdido numa noite escura.