Relatos Selvagens?
Ao longo dos últimos anos a produção documental tem se mostrado cada vez mais em voga e fazendo o possível para ir além dos limites que a simples adjetivação “popular” poderia ir. É algo mais que a popularização de um gênero, sobretudo no Brasil, renegado em muitas vezes a funções educacionais de objetivo burocrático. A televisão sempre exibiu diversos documentários, claro, alguns canais mais que outros e em geral de forma segmentada. Por exemplo, os já tão batidos documentários da Discovery Channel, em seus moldes praticamente imutáveis, ou os recém famosos GNT. Docs. Estes começaram timidamente comprando obras da BBC – em suma, num primeiro momento sobre celebridades, canais públicos como a extinta TVE (atualmente substituída pela TV Brasil) ou canais à cabo voltados à cultura, como o próprio canal Cultura e o Canal Brasil.
Contudo, o que se vê sendo mesclado e produzido com alguma agilidade atualmente é um modelo que não pretende se vender como, exclusivamente, nenhum dos anteriores destacados e sim como um híbrido, em um formato que em muito, inclusive pensando em questões culturais, é mais associável ao televisivo do que a sala de cinema. O motivo mais forte para essa tendência está na duração dessas obras, pois culturalmente e comercialmente não há força que mobilize a exibição de episódios ou a totalidade desses projetos que chegam a atingir a duração de 7 horas.
O vencedor do Oscar de melhor documentário de 2017, OJ: Made in America , é um interessante caso para se pensar, pois o filme foi produzido para a televisão visando dois aspectos de seu objeto: a carreira de muito sucesso enquanto esportista – foi exibido pelo canal de esportes ESPN- e a celebridade controversa e criminosa. A soma desses elementos atraía para o documentário um público que não necessariamente tivesse apresso pelo gênero, mas seu resultado final vai muito além de sua pegada “apelativa”. O que a obra conseguiu foi criar uma elaborada análise sobre como o contexto americano tende a abrir margens para casos como o de OJ onde vemos diversas questões em suas expressões mais complexas como o racismo e a violência doméstica se misturarem em uma tábua de tragédias.
Recentemente a Netflix lançou em sua plataforma o documentário Wild Wild Country, que se propõe a contar a trajetória, do início ao fim da comunidade formada por seguidores do líder espiritual Bhagwan Shree Rajneesh– atualmente conhecido como Osho – no Oregon, Estados Unidos. Até aí a série soa somente um mero registro de um grupo em uma época especialmente interessada, fim dos anos 70 começo dos 80, em uma busca transcendental do ser. Contudo, Wild Wild Country é muito mais do que isso.
O polêmico seriado se configura em moldes bastante simples de seu gênero, não há uma inovação em nenhum quesito estético do documentário, sendo possível apontar que a história permitia muito mais ousadia de seus realizadores, a dupla de irmãos diretores Chapman e MacLain Way. Porém, o burocrático trabalho de direção não consegue ofuscar a riqueza da história apresentada.
Aqui é preciso voltarmos para a análise de OJ: Made in America para ressaltar que nele também eram vistos alguns recursos bem menos recorrentes da montagem e edição realizados para os filmes exibidos em cinemas, mas o que era visto muito comumente na televisão. Trilha bastante marcada, entrevistas longas em um único espaço físico e animações que funcionam para ilustrar o que o entrevistado narra. Não são os mais inventivos ou até mesmo os mais valorosos recursos narrativos e permitem que haja uma espécie de formatação, porém, essa não encerra – como antigamente fazia – com as forças internas a narrativa.
Em Wild Wild Country conhecemos a história do grupo de sannyasin, discípulos de Bhagwan Rajneesh em sua empreitada, mais que ousada, de construir para si uma cidade. A encarregada de encontrar esse lugar é conhecida como Ma Anand Sheela, ou somente Sheela como ouvimos diversas vezes no documentário, e em uma pacata cidade de Oregon vê o potencial e o espaço que precisava para tornar realidade tal sociedade utópica, pregadora da paz e amor.
Que um grupo de pessoas queiram se unir para criar uma sociedade baseada no amor, no meio do nada, soa bonito -e muito ingênuo- e nesse momento a obra frisa que a região escolhida não foi nem um pouco acolhedora de seus hippies tardios. Pessoas sisudas e tradicionalistas são entrevistadas falando sobre o horror que era o amor livre dos habitantes recentes da cidade. Chegamos a ter pena dos discípulos de Bhagwan. Mas logo somos surpreendidos pela força de produção e agilidade deles para colocarem sua sociedade alternativa de pé, à pleno vapor, sem amadorismos ou cara de aspecto mambembe.
Então vemos os idosos da cidade perderem seus espaços. Os nomes das ruas mudam para nomes indianos, os seguidores de Bhagwan se multiplicam, conseguem eleger pessoas na política da cidade, realizam grandes eventos. A coisa vai se desenhando como uma batalha entre os tradicionais radicais e o grupo zen, também radical. O radicalismo zen fica por conta de Sheela, que à frente dessa imensa empreitada, começa a dar entrevistas onde oscila entre o ácido e o raivoso.
Sheela se destaca pela força imensurável que lhe é atribuída perante essa guerra declarada que tem como objetivo expulsar os discípulos de Osho. Sheela ganha traços cada vez mais fortes e seu espaço chega a equivaler, quiçá até sobressair, o próprio Osho. Suas atitudes levaram inclusive a sua prisão, e de longe se trata da personagem mais complexa ali exposta. Mas o que Sheela e a história da construção da cidade têm de controversas, o documentário tem de inaptidão para explorar esse elemento.
A falta de pontos de divergência dentre os entrevistados que fizeram parte do rancho zen, chamado de Rajneeshpuram, é uma lacuna grave para o projeto, que fica menos interessante quando toda sua perspectiva é exposta como um dualismo entre os moradores do imenso rancho e os resistentes da pequena cidade em Oregon. Sheela se torna o centro completo de uma história que é muito mais complexa e ampla do que seu “mandato” em Rajneeshpuram.
A falta de membros, presentes na época de existência de Rajneeshouram – que se deu entre 1980 e 1985 – se posicionando contrários, mesmo que fosse de uma perspectiva atual da questão, é uma falta que só aconteceu na própria obra. Em sites voltados para seguidores ou ex-seguidores de Osho é possível ler comentários sobre a série que dizem: “Como toda a cobertura da mídia, essa série parece pulular sobre a água como uma pedra, tocando apenas nos eventos mais controversos…”, escreve a ex-sannyasin Roshani Shay no site Oshonews.com. “Quem assistir à série pode aprender como não se comportar.” Ou ainda “Nem sempre você vê um sannyasin confessando tentativa de homicídio na TV. Fiquei pensando que os responsáveis pela série sobre o Rancho realmente enlouqueceram, da pior maneira possível”, afirma um observador chamado “Lokesh”, postando no site Sannyas News.
Wild Wild Country poderia ser muito mais e abarcar a controvérsia como conceito, mas prefere deixar a história ser simplificada. Felizmente se trata de uma história inquietante e forte que consegue se sobressair mesmo quando seus realizadores deixam a desejar. É possível que ainda vejamos muitos outros frutos que tenham a grande potência do que ocorre em Wild Wild Country como ponto de partida.