quarta-feira , 20 novembro , 2024

Nine | Há 14 anos, Rob Marshall tentava criar um novo ‘Chicago’

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Federico Fellini é um dos homens mais conhecidos dentro da indústria do entretenimento, e sua carreira é sem sombra de dúvida uma das mais passíveis a serem analisadas por pontos de vista únicos e por perspectivas que façam jus à sua filmografia. Não é nenhuma surpresa, pois, que um dramaturgo visionário, conhecido por ser pisado por artistas conterrâneos e nunca ter se consagrado como um pioneiro, por assim dizer, tenha abraçado sua vida e se baseado em um dos projetos mais autobiográficos do cineasta, 8 ½’ , para criar um escopo novo, agradável e extremamente envolvente: e foi em meados da década de 1990 que Maury Yeston conseguiu finalmente entregar um pouco de sua personalidade e de sua alma no musical da Broadway Nine, que viria a se tornar um dos maiores sucessos dessa complexa amálgama criativa. E também é certo que, assim como a maioria das produções teatrais, que tal linguagem seria transposta para as telonas. 

Em 2002, Rob Marshall, conhecido nome dentro do meio nova-iorquino por seus incríveis projetos como teatrólogo e coreógrafo, ganhou seu estrelado na indústria hollywoodiana com a obra Chicago, vencedor de seis estatuetas do Oscar e um dos longas-metragens mais memoráveis dos últimos anos. Seu sucesso emergiu principalmente por sua incrível montagem, pautada em uma perspectiva subjetiva e que parte de uma protagonista em crescente crise de identidade. Era quase óbvio imaginar que Marshall também seria chamado para encabeçar a adaptação de Nine, cujo escopo cênico é basicamente o mesmo – e esse novo projeto, ainda que tenha vingado, não passa de uma tentativa descarada e fracassada de cópia. 



Assim como em 8 ½’, o musical traz como personagem principal um cineasta italiano chamado Guido Contini (Daniel Day-Lewis). Ele está prestes a delinear seu novo projeto, mas enfrenta uma crise de meia-idade que se estende para o ambiente de trabalho. Em outras palavras, o egocêntrico artista não consegue se concentrar para entregar uma nova obra-prima, enfrentando obstáculos inesperados e tentando buscar inspiração nos lugares mais incomuns – como em seu primeiro despertar sexual, sua amante, sua musa, sua mulher e sua mãe. E é através dessa jornada tour-de-force de amadurecimento que Marshall começa a explorar sua capacidade narrativa, tendo todas as peças mais uma vez entregues de bandeja e, infelizmente, não sabendo como trabalhá-las de modo satisfatório. 

As várias personificações das mulheres que marcaram sua vida funcionam como musas inspiradoras, cada qual conversando com uma faceta de sua personalidade, mas não sendo orquestrado com exímia proeza ao longo de seus 120 minutos. Temos um elenco de ponta de linha completamente desperdiçado em meio a uma narrativa que não tem identidade e que deixa transparecer seus erros pela falta de um estilo conciso e endossado. É claro que, em se tratando de uma história que parte da perspectiva de Guido, engessar a trama é um dos maiores equívocos que se pode cometer – e infelizmente é isso o que o roteiro assinado por Michael Tolkin e Anthony Minghella faz: não temos um equilíbrio entre as personagens coadjuvantes, e seus arcos são tão superficiais que não causam qualquer comoção em relação ao público. 

Cada uma das canções é uma ode a Guido. Claro, ele é uma figura que não preza pelo outro e que definitivamente não tem um pingo de empatia nem mesmo por sua mulher Luisa (Marion Cotillard) – mas de que adianta construí-lo desse modo se cada uma das coadjuvantes insiste em ressaltar sua imodéstia? Talvez essa tenha sido a ideia principal de Marshall, e sinto dizer que ela não encontra a luz do dia, a não ser pelos cenários muito bem construídos e que, eventualmente, são a única parte realmente agradável do musical. Nem mesmo as coreografias abrem margens para catarse, visto que mais funcionam como rendições pedantes e decadentes, seguindo ironicamente a jornada de Guido. 

As coisas ficam ainda mais bizarras quando, sem qualquer explicação ou premeditação, o diretor opta por colocar as sequências subjetivas e em flashback em preto-e-branco, talvez para realizar uma separação mais palpável para o público. Todavia, ao fazer isso, ele duvida da capacidade de abstração temporal e narrativa da audiência, transformando sua obra em uma mistura desnecessária de ambiguidades e saídas autoexplicativas – e mais: ele não permanece nisso o tempo todo. As cenas de Cotillard, por exemplo, permanecem na policromia e entram em conflito com, por exemplo, a mesclada entrega de Kate Hudson como a editora-chefe da revista Vogue, Stephanie, em um agradável vaudeville intitulado Cinema Italiano. Mas nada, sem dúvida, é tão estranho quanto a sequência Be Italian, protagonizada pela misteriosa prostituta Saraghina (Fergie): nem mesmo a história ou a dança são interessantes, e a brusca montagem definitivamente não ajuda a apagar os problemas fílmicos. 

Uma das poucas personalidades a conseguir salvar-se desse desastre musical é Judi Dench no papel da figurinista e diretora de arte Lilli, uma das musas inspiradoras de Guido e que se torna sua principal confidente e apoiadora, mesmo nos momentos mais difíceis. Ela constantemente o defende de todos os erros que comete e tenta conciliar seu trabalho com sua vida pessoal, ainda que isso represente um constante desgasto físico e emocional do diretor; apesar dessas complicações aparentemente intransponíveis, ela ainda permanece o mais calma possível e retorna para ampará-lo após ser totalmente abandonado pela própria egolatria. E esses valores entram também em conflito com o mascarado interesse tanto da atriz Claudia (Nicole Kidman) quanto pela crescente loucura da amante Carla (Penélope Cruz), as quais têm o seu momento de protagonismo que logo cedem ao clichê e à monotonia. 

É quase impossível não traçar paralelos com a obra predecessora de Marshall. Enquanto Chicago funciona em todas as medidas e consegue trabalhar com maestria os conceitos de intimismo narrativo e de subjetividade cênica, principalmente ao criar pequenos blocos de grande importância para cada personagem, Nine parece uma versão inacabada e incompleta: até mesmo o trabalho com a câmera se assemelha às gravações de um making-off em vez do filme em si, talvez encontrando um espaço dentro do amadorismo cinematográfico. 

Se a ideia era honrar Fellini com tal obra, Marshall definitivamente elevou as expectativas de todo mundo e caiu em seu próprio veneno ao não encontrar os ingredientes necessários para concretizar uma ideia interessante e que, infelizmente, jazeu morta dentro de uma utopia musical. O resultado é tão insosso que é capaz do imortal diretor ter se revirado na tumba – e não, não estou exagerando. 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 2002, Rob Marshall, conhecido nome dentro do meio nova-iorquino por seus incríveis projetos como teatrólogo e coreógrafo, ganhou seu estrelado na indústria hollywoodiana com a obra Chicago, vencedor de seis estatuetas do Oscar e um dos longas-metragens mais memoráveis dos últimos anos. Seu sucesso emergiu principalmente por sua incrível montagem, pautada em uma perspectiva subjetiva e que parte de uma protagonista em crescente crise de identidade. Era quase óbvio imaginar que Marshall também seria chamado para encabeçar a adaptação de Nine, cujo escopo cênico é basicamente o mesmo – e esse novo projeto, ainda que tenha vingado, não passa de uma tentativa descarada e fracassada de cópia. 

Assim como em 8 ½’, o musical traz como personagem principal um cineasta italiano chamado Guido Contini (Daniel Day-Lewis). Ele está prestes a delinear seu novo projeto, mas enfrenta uma crise de meia-idade que se estende para o ambiente de trabalho. Em outras palavras, o egocêntrico artista não consegue se concentrar para entregar uma nova obra-prima, enfrentando obstáculos inesperados e tentando buscar inspiração nos lugares mais incomuns – como em seu primeiro despertar sexual, sua amante, sua musa, sua mulher e sua mãe. E é através dessa jornada tour-de-force de amadurecimento que Marshall começa a explorar sua capacidade narrativa, tendo todas as peças mais uma vez entregues de bandeja e, infelizmente, não sabendo como trabalhá-las de modo satisfatório. 

As várias personificações das mulheres que marcaram sua vida funcionam como musas inspiradoras, cada qual conversando com uma faceta de sua personalidade, mas não sendo orquestrado com exímia proeza ao longo de seus 120 minutos. Temos um elenco de ponta de linha completamente desperdiçado em meio a uma narrativa que não tem identidade e que deixa transparecer seus erros pela falta de um estilo conciso e endossado. É claro que, em se tratando de uma história que parte da perspectiva de Guido, engessar a trama é um dos maiores equívocos que se pode cometer – e infelizmente é isso o que o roteiro assinado por Michael Tolkin e Anthony Minghella faz: não temos um equilíbrio entre as personagens coadjuvantes, e seus arcos são tão superficiais que não causam qualquer comoção em relação ao público. 

Cada uma das canções é uma ode a Guido. Claro, ele é uma figura que não preza pelo outro e que definitivamente não tem um pingo de empatia nem mesmo por sua mulher Luisa (Marion Cotillard) – mas de que adianta construí-lo desse modo se cada uma das coadjuvantes insiste em ressaltar sua imodéstia? Talvez essa tenha sido a ideia principal de Marshall, e sinto dizer que ela não encontra a luz do dia, a não ser pelos cenários muito bem construídos e que, eventualmente, são a única parte realmente agradável do musical. Nem mesmo as coreografias abrem margens para catarse, visto que mais funcionam como rendições pedantes e decadentes, seguindo ironicamente a jornada de Guido. 

As coisas ficam ainda mais bizarras quando, sem qualquer explicação ou premeditação, o diretor opta por colocar as sequências subjetivas e em flashback em preto-e-branco, talvez para realizar uma separação mais palpável para o público. Todavia, ao fazer isso, ele duvida da capacidade de abstração temporal e narrativa da audiência, transformando sua obra em uma mistura desnecessária de ambiguidades e saídas autoexplicativas – e mais: ele não permanece nisso o tempo todo. As cenas de Cotillard, por exemplo, permanecem na policromia e entram em conflito com, por exemplo, a mesclada entrega de Kate Hudson como a editora-chefe da revista Vogue, Stephanie, em um agradável vaudeville intitulado Cinema Italiano. Mas nada, sem dúvida, é tão estranho quanto a sequência Be Italian, protagonizada pela misteriosa prostituta Saraghina (Fergie): nem mesmo a história ou a dança são interessantes, e a brusca montagem definitivamente não ajuda a apagar os problemas fílmicos. 

Uma das poucas personalidades a conseguir salvar-se desse desastre musical é Judi Dench no papel da figurinista e diretora de arte Lilli, uma das musas inspiradoras de Guido e que se torna sua principal confidente e apoiadora, mesmo nos momentos mais difíceis. Ela constantemente o defende de todos os erros que comete e tenta conciliar seu trabalho com sua vida pessoal, ainda que isso represente um constante desgasto físico e emocional do diretor; apesar dessas complicações aparentemente intransponíveis, ela ainda permanece o mais calma possível e retorna para ampará-lo após ser totalmente abandonado pela própria egolatria. E esses valores entram também em conflito com o mascarado interesse tanto da atriz Claudia (Nicole Kidman) quanto pela crescente loucura da amante Carla (Penélope Cruz), as quais têm o seu momento de protagonismo que logo cedem ao clichê e à monotonia. 

É quase impossível não traçar paralelos com a obra predecessora de Marshall. Enquanto Chicago funciona em todas as medidas e consegue trabalhar com maestria os conceitos de intimismo narrativo e de subjetividade cênica, principalmente ao criar pequenos blocos de grande importância para cada personagem, Nine parece uma versão inacabada e incompleta: até mesmo o trabalho com a câmera se assemelha às gravações de um making-off em vez do filme em si, talvez encontrando um espaço dentro do amadorismo cinematográfico. 

Se a ideia era honrar Fellini com tal obra, Marshall definitivamente elevou as expectativas de todo mundo e caiu em seu próprio veneno ao não encontrar os ingredientes necessários para concretizar uma ideia interessante e que, infelizmente, jazeu morta dentro de uma utopia musical. O resultado é tão insosso que é capaz do imortal diretor ter se revirado na tumba – e não, não estou exagerando. 

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