Jordan Peele é um dos diretores mais respeitados da atualidade – e, pouco depois de ter causado um grande impacto com ‘Corra!’, que inclusive conquistou o Oscar de Melhor Roteiro Original e foi considerado um dos melhores filmes da década passada, o cineasta retornou às telonas com o aclamado ‘Nós’, que completa cinco anos de lançamento em 2024. Mantendo-se fiel às potentes temáticas sociais exploradas em seu filme anterior, a produção consagrou-se como uma das entradas mais memoráveis de sua carreira, trazendo explanações sobre a própria funcionalidade do mundo através de uma impecável história de suspense e terror.
Estrelado por Lupita Nyong’o em um papel divisor de águas para sua feroz versatilidade artística, a trama acompanha Adelaide, uma mulher que, quase três décadas depois de ter passado por um trauma inescapável após ter encontrado seu döppelganger em uma Casa de Espelhos, volta à casa de férias de seus pais com o marido e os filhos – apenas para descobrir que o pesadelo do qual tentara escapar todos aqueles anos atrás não acabou. Após chegar lá, ela descobre que existe uma espécie de mundo subterrâneo que serve como reflexo da superfície de uma forma extremamente grotesca e distorcida. Mas as coisas mudam de uma hora para outra quando os habitantes desse submundo, que são os döppelgangers de cada ser humano no planeta, resolvem sair de seu confinamento eterno e realizar uma matança generalizada para tomarem o lugar de seus “superiores”, por assim dizer.
Enquanto ‘Corra!’ colocou Peele no centro dos holofotes e o catapultou ao estrelato no cenário mainstream, ‘Nós’ se configura, ao menos por enquanto, como sua magnum opus. Apesar de se valer de certas fórmulas dos filmes de suspense psicológico, incluindo reviravoltas de tirar o fôlego e que adornam com ainda mais beleza o ato de encerramento do longa-metragem, o resultado é impressionante do começo ao fim pelas subtramas que acompanham o “andar da carruagem”. Para além da performance irretocável de Nyong’o como Adelaide e como seu duplo, Red – que com certeza deveria ter-lhe rendido uma indicação ao Oscar -, e de um elenco que conta com Winston Duke, Shahadi Wright Joseph, Elisabeth Moss, Evan Alex e outros, a condução crítica promovida pelo diretor é on point em cada uma de suas camadas.
A obra nutre de inúmeras incursões que nos levam a refletir sobre o funcionamento da sociedade. A primeira delas envolve a questão do outro. Diversos filósofos e sociólogos já exploraram a questão dos döppelgangers e de que modo é possível compreender essa imagem como uma extensão de nós mesmos. Todavia, se tomarmos outra perspectiva para analisar as inflexões promovidas por Peele, é possível que o próprio título aponta para a arbitrariedade do coletivo, em que o “nós” de um lugar não é o “nós” do outro; em outras palavras a divisão incisiva entre o mundo subterrâneo e o da superfície é o que explica a revolta dos Atrelados (Tethered, no original) e uma reação, a priori, inexplicável.
Dentro disso, não há nada que indique as pessoas desses dois cosmos pertençam a seus respectivos lugares, aumentando a tensão que escala exponencialmente – e a troca entre Adelaide e Red, que é-nos explicada nos momentos finais do enredo, demonstra essa supracitada arbitrariedade dos corpos em um determinado espaço: um só não ocupa o lugar do outro porque ocupa o seu próprio. Além disso, há o choque físico das realidades que explode através das características dos Atrelados, cuja simbologia aponta para um espaço social determinado a certos grupos – e que já se repetiu incontáveis vezes na história.
Peele também explora as ramificações do fascismo por meio de sutilezas que apenas alguém com sua genialidade poderia fazer. Intrínseco à ideologia neoliberalista, o fascismo se aproveita da máxima do “bode expiatório” para garantir sua existência. Há a necessidade de colocar a culpa em algum grupo específico para que o medo permaneça e seja utilizado como ferramenta de controle em massa – como aconteceu, por exemplo, com os negros e com os judeus à época da II Guerra Mundial e da ascensão de Adolf Hitler como símbolo máximo da perpetuação supremacista. Entende-se o oferecimento de um objeto para ódio que a população sente, transferindo a verdadeira culpa e culminando em apenas um desfecho: a violência contra aqueles que são o suposto problema.
O ódio se une à outra questão importante delineada pela narrativa – a falsa sensação de felicidade. O neoliberalismo, em si, promete a felicidade para quem se esforça, mas o que se deve fazer quando isso não acontece? Afinal, quando não encontramos essa plenitude individualista prometida por esse sistema que, claramente, é falho, voltamos nossa atenção àqueles que gozam desses frutos (um termo conhecido como juissance ou prazer, no português). E, conforme percebemos que esse gozo pode ser inalcançável, o “bode expiatória” retorna e o prazer é transferido para a causa de sofrimento em outrem como forma de reparação; quando não podemos mais provocá-lo, vende-se a ideia de que existe censura e a perda de um direito que não deveria nem ao menos existir.
É aí que a vilanesca apresentação de Red e dos Atrelados é examinada sob uma nova ótica: assim como os membros da superfície são vítimas desse sistema completamente degenerado, os döppelgangers se veem privados desse direito à felicidade e são levados a acreditar que os verdadeiros culpados são aqueles que vivem livremente e não estão fadados às amarras que os acorrentam. Por fim, lembram-se da tesoura que os “outros” usam? Pois bem, é possível encará-la como a materialização sólida de uma separação entre o que Adelaide e seus semelhantes possuem e a que Red e seus asseclas foram negados desde o momento em que passaram a ser.