terça-feira , 5 novembro , 2024

‘O Nascimento de uma Nação’ completa 5 anos – De Promessa do Oscar à Enorme Polêmica

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Há cinco anos, subverter o clássico maldito O Nascimento de uma Nação (1915), de D.W. Griffith, abordando o ponto de vista dos escravos, parecia ser uma excelente ideia à prova de erros. E aí a vida mostrou que continua a interferir, e muito, na arte. Vamos por partes (muitas) e comecemos (bem) do início. Você certamente já ouviu falar no termo revisionismo histórico. É um movimento que se mostra cada vez mais em voga nestes tempos de muito engajamento político, de representatividade racial e empoderamento feminino. Ele diz respeito sobre olharmos para o passado com os olhos de hoje. E embora os mais radicais sejam adeptos da eliminação por completo de qualquer rastro que tenha causado dor no passado, muitos acreditam que a característica mais notável do revisionismo seja o aprendizado, o estudo; perceber o quanto evoluímos como sociedade e o quanto éramos primitivos – identificar o erro, frisá-lo, mas jamais apaga-lo. Até porque a história jamais deixará de ter existido, não importa quantos livros e filmes sejam banidos, ou quantas estátuas sejam derrubadas.

E sim, este é o movimento que derruba estátuas de figuras “heroicas” para uma época arcaica que não se encaixa mais em nossos tempos igualitários. Muitos desses “heróis” eram, por exemplo, defensores da escravidão humana. Por outro lado, filmes como E o Vento Levou (1939) vêm sendo constantemente boicotados. Neste caso, por trazer como “protagonistas sofredores” ricos donos de plantação no Sul dos EUA em meio ao “drama” da Guerra da Secessão, que devastou o país. Sim, a guerra é horrível, mas basta dizer que nossos “heróis” aqui, representados pelo filme, estavam do lado errado da causa, lutando para manter escravos. Ou seja…

Tecnicamente, E o Vento Levou é uma obra impecável e quebrou muitas barreiras para o cinema, se tornando revolucionário para o período. Este foi um dos primeiros filmes a verdadeiramente carregar o título de épico do cinema, com suas imponentes 4 horas de exibição E o Vento Levou é sinônimo de sofisticação. A forma é ótima, mas e a mensagem, o conteúdo? A solução encontrada pela HBO Max, que o carrega em seu acervo, foi incluir uma mensagem antes do filme começar adereçando sua desconexão com o tempo presente, sendo retrato de uma época específica. O mesmo ocorre com inúmeras produções da querida Disney, algumas inclusive animações para as crianças, hoje consideradas racistas (o caso mais notório sendo um filme chamado A Canção do Sul, 1946, onde pouco se salva). É neste “pacote” que se enquadra outro verdadeiro clássico da sétima arte, este remetendo diretamente à criação do cinema: O Nascimento de uma Nação, de 1915.

Tendo em vista que o cinema nasceu em 1895, pouco tempo depois termos uma produção do nível técnico de O Nascimento de uma Nação impressiona. Tanto que o filme e seu criador (roteirista e diretor) D.W. Griffith são material de estudo obrigatório em universidades de cinema e cursos pelo mundo. E isso jamais será apagado. Griffith é definitivamente um dos grandes nomes da sétima arte, importante para tudo o que temos hoje em matéria de audiovisual e entretenimento. O problema? O mais alarmante é a carta de amor à organização conhecida como KKK (Ku Klux Klan), formada por supremacistas brancos. O filme de Griffith os enaltece como salvadores valentes do Sul pós-guerra, responsáveis pela reestruturação daquela parte do país, lutando contra os “selvagens e imorais” nortistas e escravos libertos. Deu para sentir o drama, né? Já na época sendo considerado um filme racista, Griffith tratou de lançar seu trabalho seguinte, o filme Intolerância (1916), onde decidia se defender mostrando o outro lado da moeda, o sofrimento imposto pelo preconceito.

Corta para 2016. Mais de 100 anos depois. Outro mundo, outra mentalidade. Uma melhor. Evoluímos muito. No cinema, tivemos então a recente vitória no Oscar do visceral 12 Anos de Escravidão (2014), do diretor Steve McQueen, que mostra sem papas na língua o horror da escravidão e o que a população afrodescendente passou em termos de abuso físico e psicológico. Fortíssimo e com cenas duras de assistir, o filme se tornou um sucesso tanto de crítica quanto de público. Dois anos depois, um filme de temática similar, também baseado em uma história real, prometia fazer ainda mais barulho, contendo ainda mais fervor em sua narrativa. Se por um lado 12 Anos de Escravidão focava no sofrimento passivo de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), homem livre sequestrado e escravizado, este novo projeto sobre a escravidão teria uma abordagem mais incisiva sobre Nat Turner, escravo que lideraria uma rebelião contra os brancos opressores e escravistas, combatendo o mal com atitude e força.

Diretor, produtor, roteirista e protagonista, Nate Parker é o homem por trás de ‘O Nascimento de uma Nação’.

A cereja no topo do bolo de tal projeto, escrito, dirigido, produzido (bancado do próprio bolso) e protagonizado pelo então promissor jovem artista negro Nate Parker, então com 36 anos, foi intitular seu filme como O Nascimento de uma Nação. A proposta aqui se tornava maior do que ser um filme sobre a revolução de um escravo contra seus opressores, maior do que ser o retrato de uma parcela da história manchada de sangue dos EUA, tornava-se metalinguisticamente importante para a sétima arte por “reescrever” o clássico racista de Griffith sob a visão do empoderamento racial. Isso sem ser necessariamente uma refilmagem.

A ideia de ouro de Parker realizou uma das melhores estreias de todos os tempos do Festival de Sundance, em janeiro de 2016, sendo imediatamente aclamado e reverenciado pela imprensa, gerando falatórios instantâneos de Oscar. Isso, impulsionado pelo movimento OscarSoWhite, onde no mesmo ano a escolha dos indicados ao Oscar deixava muito a desejar em questão de diversidade racial (com os indicados nas principais categorias sendo todos brancos). O fato levou diversos artistas negros, como Will Smith, a boicotarem a premiação daquele ano. Neste contexto, O Nascimento de uma Nação (2016) surgia como um farol de esperança representativo. O hype em relação ao longa era tanto que a Fox Searchlight (braço do cinema de arte da agora extinta 20th Century Fox) comprou os direitos de distribuição mundial da obra pelo valor de US$17.5 milhões – um recorde no mercado de vendas do Festival de Sundance.

Um dos cartazes do fervoroso ‘O Nascimento de uma Nação’ (2016).

Tudo parecia certo para O Nascimento de uma Nação se tornar um dos filmes mais prestigiados dos últimos anos. Mas a esta altura você deve estar se perguntando por que nunca ouviu falar do filme. Ou o motivo de seu sumiço, tendo vindo e ido de forma apressada. É aqui que voltaremos ao início do texto, e sobre a vida atropelar a arte. Existem aqueles que defendem a separação da arte e do artista. Porém, é sempre necessário avaliar cada caso separadamente. Acontece que em relação ao homem por trás do novo O Nascimento de uma Nação, Nate Parker, após todos os holofotes terem se voltado para ele, uma mancha gravíssima de seu passado ressurgiu à tona. Na década de 1990, enquanto era um estudante na Universidade Penn State, na Pennsylvania, Nate Parker e o amigo Jean McGianni Celestin (que divide o crédito como roteirista de O Nascimento de uma Nação) foram presos pelo estupro de uma jovem colega universitária de 18 anos.

O caso foi a julgamento no início da década de 2000, e em corte, Parker, que saía com a jovem na época, foi inocentado das acusações. Celestin foi condenado, mas pegou uma pena leve de seis meses. Após comoção e novas apelações, a corte aumentou a pena para dois a quatro anos. Enquanto servia, no entanto, uma nova apelação garantiu a anulação da condenação. Relatos da vítima na época afirmavam que Parker e Celestin aliciaram amigos para a perseguirem e assediarem. Por serem da equipe de luta da tradicional instituição, os amigos contavam com muitos apoiadores e foram “acobertados” pela reitoria. Entre outras coisas, Parker e Celestin se resguardaram sob acusações de racismo. Ambos são negros e a vítima era branca.

Hoje, o filme guarda ainda mais polêmica. Armie Hammer (à direita) é acusado de abuso e até canibalismo.

A vítima, devido a constantes hostilizações, como ter sua foto publicada por todo o campus da universidade por “defensores” de Parker e Celestin, largou os ensinos na instituição e após todo esse embrolho que viria a se arrastar por mais de uma década, terminou por tirar a própria vida em 2012 – após tentativas prévias de suicídio e um longo abalo psicológico que a veria internada numa instituição psiquiátrica. Prontamente, os amigos e familiares da vítima cuidaram para que o caso ressurgisse na mídia quando o nome de Parker, quatro anos depois, decolava para o topo do mundo. A irmã da vítima, Sharon Loeffer, chegou a escrever um artigo importante para a Variety em setembro de 2016, chamado Nate Parker’s ‘Birth of a Nation’ Exploits My Sister All Over Again – ou ‘O Nascimento de uma Nação’ de Nate Parker Explora a Minha Irmã Tudo de Novo.

Como colunista convidada, Loeffer cita que Parker e Celestin usam um estupro como ponto de partida para a narrativa de O Nascimento de uma Nação. Na trama, Esther (Gabrielle Union) é estuprada, e se torna o motivo do início da rebelião de Nat Turner, a figura história vivida por Parker no filme. Loeffer afirma que não existe registro histórico desta motivação ou sequer da existência da companheira de Turner, sendo o ímpeto retratado no longa meramente ficcional e romanceado. Loeffer chama atenção para o fato de Parker e Celestin terem friamente incluído um estupro como ponto de partida e colocarem Turner (e por consequência Parker) como o companheiro da vítima atrás de justiça. Loeffer escreveu: “… eles inventaram a cena do estupro. Isso é ficção. Eu acho arrepiante e perverso que Parker e Celestin tenham colocado um estupro fictício como centro de seu filme, e que Parker se retrate como herói se vingando deste estupro”.

Cartazes modificados com os dizeres “estuprador?” foram espalhados por Los Angeles na época.

A atriz Gabrielle Union, que no filme interpreta a esposa estuprada de Turner, também lançou uma nota pública de repúdio ao comportamento de seus realizadores. Union foi vítima de estupro na vida real aos 19 anos, antes de se tornar atriz. Segundo ela, os fatos vieram ao seu conhecimento após ter participado do filme. Union disse abertamente que, embora a história de Turner seja importantíssima, entendia perfeitamente o boicote de quem assim o quisesse por motivo do envolvimento de Parker e Celestin na produção.

Enquanto divulgava O Nascimento de uma Nação, Nate Parker continuou pregando sua inocência no caso e se recusando a pedir desculpas publicamente pelo ocorrido. Ele reconhecia muitas vezes o erro, mas frisava sua inocência perante julgamento. Além disso, declarava O Nascimento de uma Nação como uma obra coletiva, adereçando os demais envolvidos. Porém, como produtor, roteirista, diretor e protagonista, fica difícil desassociar a figura de Nate Parker de O Nascimento de uma Nação (2016).

A atriz Gabrielle Union foi vítima de estupro na vida real e disse entender o boicote ao filme.

Apesar de inicialmente demonstrar imenso potencial de sucesso, o boicote ao longa surtiu efeito. O Nascimento de uma Nação se tornou um fracasso comercial, ao estrear debaixo de toda a polêmica envolvendo seus realizadores. O fracasso do filme em circuito pelos EUA causou a Fox cancelar sua estreia em países como o Japão, Suíça, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Áustria e alguns países da América Latina (no Brasil recebeu um lançamento restrito e passou batido).

No mesmo ano de 2016, Parker se envolveria em novas polêmicas com declarações homofóbicas dizendo que jamais interpretaria um gay no cinema, entre outra coisas. Há cinco anos, ainda não existia a cultura do cancelamento que temos hoje, mesmo assim Nate Parker foi colocado “na geladeira” por três anos até lançar de forma muito tímida o filme independente American Skin (2019), sem qualquer ressonância. De promissor figura representativa, Nate Parker se tornou uma persona non grata. Mas aos poucos o diretor vem ensaiando um retorno, e já tem quatro projetos engatilhados, incluindo a série Baselines (esperando a estreia) e o longa Solitary (em fase de pós-produção). Estariam Hollywood e os EUA prontos para recebe-lo de volta?

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E sim, este é o movimento que derruba estátuas de figuras “heroicas” para uma época arcaica que não se encaixa mais em nossos tempos igualitários. Muitos desses “heróis” eram, por exemplo, defensores da escravidão humana. Por outro lado, filmes como E o Vento Levou (1939) vêm sendo constantemente boicotados. Neste caso, por trazer como “protagonistas sofredores” ricos donos de plantação no Sul dos EUA em meio ao “drama” da Guerra da Secessão, que devastou o país. Sim, a guerra é horrível, mas basta dizer que nossos “heróis” aqui, representados pelo filme, estavam do lado errado da causa, lutando para manter escravos. Ou seja…

Tecnicamente, E o Vento Levou é uma obra impecável e quebrou muitas barreiras para o cinema, se tornando revolucionário para o período. Este foi um dos primeiros filmes a verdadeiramente carregar o título de épico do cinema, com suas imponentes 4 horas de exibição E o Vento Levou é sinônimo de sofisticação. A forma é ótima, mas e a mensagem, o conteúdo? A solução encontrada pela HBO Max, que o carrega em seu acervo, foi incluir uma mensagem antes do filme começar adereçando sua desconexão com o tempo presente, sendo retrato de uma época específica. O mesmo ocorre com inúmeras produções da querida Disney, algumas inclusive animações para as crianças, hoje consideradas racistas (o caso mais notório sendo um filme chamado A Canção do Sul, 1946, onde pouco se salva). É neste “pacote” que se enquadra outro verdadeiro clássico da sétima arte, este remetendo diretamente à criação do cinema: O Nascimento de uma Nação, de 1915.

Tendo em vista que o cinema nasceu em 1895, pouco tempo depois termos uma produção do nível técnico de O Nascimento de uma Nação impressiona. Tanto que o filme e seu criador (roteirista e diretor) D.W. Griffith são material de estudo obrigatório em universidades de cinema e cursos pelo mundo. E isso jamais será apagado. Griffith é definitivamente um dos grandes nomes da sétima arte, importante para tudo o que temos hoje em matéria de audiovisual e entretenimento. O problema? O mais alarmante é a carta de amor à organização conhecida como KKK (Ku Klux Klan), formada por supremacistas brancos. O filme de Griffith os enaltece como salvadores valentes do Sul pós-guerra, responsáveis pela reestruturação daquela parte do país, lutando contra os “selvagens e imorais” nortistas e escravos libertos. Deu para sentir o drama, né? Já na época sendo considerado um filme racista, Griffith tratou de lançar seu trabalho seguinte, o filme Intolerância (1916), onde decidia se defender mostrando o outro lado da moeda, o sofrimento imposto pelo preconceito.

Corta para 2016. Mais de 100 anos depois. Outro mundo, outra mentalidade. Uma melhor. Evoluímos muito. No cinema, tivemos então a recente vitória no Oscar do visceral 12 Anos de Escravidão (2014), do diretor Steve McQueen, que mostra sem papas na língua o horror da escravidão e o que a população afrodescendente passou em termos de abuso físico e psicológico. Fortíssimo e com cenas duras de assistir, o filme se tornou um sucesso tanto de crítica quanto de público. Dois anos depois, um filme de temática similar, também baseado em uma história real, prometia fazer ainda mais barulho, contendo ainda mais fervor em sua narrativa. Se por um lado 12 Anos de Escravidão focava no sofrimento passivo de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), homem livre sequestrado e escravizado, este novo projeto sobre a escravidão teria uma abordagem mais incisiva sobre Nat Turner, escravo que lideraria uma rebelião contra os brancos opressores e escravistas, combatendo o mal com atitude e força.

Diretor, produtor, roteirista e protagonista, Nate Parker é o homem por trás de ‘O Nascimento de uma Nação’.

A cereja no topo do bolo de tal projeto, escrito, dirigido, produzido (bancado do próprio bolso) e protagonizado pelo então promissor jovem artista negro Nate Parker, então com 36 anos, foi intitular seu filme como O Nascimento de uma Nação. A proposta aqui se tornava maior do que ser um filme sobre a revolução de um escravo contra seus opressores, maior do que ser o retrato de uma parcela da história manchada de sangue dos EUA, tornava-se metalinguisticamente importante para a sétima arte por “reescrever” o clássico racista de Griffith sob a visão do empoderamento racial. Isso sem ser necessariamente uma refilmagem.

A ideia de ouro de Parker realizou uma das melhores estreias de todos os tempos do Festival de Sundance, em janeiro de 2016, sendo imediatamente aclamado e reverenciado pela imprensa, gerando falatórios instantâneos de Oscar. Isso, impulsionado pelo movimento OscarSoWhite, onde no mesmo ano a escolha dos indicados ao Oscar deixava muito a desejar em questão de diversidade racial (com os indicados nas principais categorias sendo todos brancos). O fato levou diversos artistas negros, como Will Smith, a boicotarem a premiação daquele ano. Neste contexto, O Nascimento de uma Nação (2016) surgia como um farol de esperança representativo. O hype em relação ao longa era tanto que a Fox Searchlight (braço do cinema de arte da agora extinta 20th Century Fox) comprou os direitos de distribuição mundial da obra pelo valor de US$17.5 milhões – um recorde no mercado de vendas do Festival de Sundance.

Um dos cartazes do fervoroso ‘O Nascimento de uma Nação’ (2016).

Tudo parecia certo para O Nascimento de uma Nação se tornar um dos filmes mais prestigiados dos últimos anos. Mas a esta altura você deve estar se perguntando por que nunca ouviu falar do filme. Ou o motivo de seu sumiço, tendo vindo e ido de forma apressada. É aqui que voltaremos ao início do texto, e sobre a vida atropelar a arte. Existem aqueles que defendem a separação da arte e do artista. Porém, é sempre necessário avaliar cada caso separadamente. Acontece que em relação ao homem por trás do novo O Nascimento de uma Nação, Nate Parker, após todos os holofotes terem se voltado para ele, uma mancha gravíssima de seu passado ressurgiu à tona. Na década de 1990, enquanto era um estudante na Universidade Penn State, na Pennsylvania, Nate Parker e o amigo Jean McGianni Celestin (que divide o crédito como roteirista de O Nascimento de uma Nação) foram presos pelo estupro de uma jovem colega universitária de 18 anos.

O caso foi a julgamento no início da década de 2000, e em corte, Parker, que saía com a jovem na época, foi inocentado das acusações. Celestin foi condenado, mas pegou uma pena leve de seis meses. Após comoção e novas apelações, a corte aumentou a pena para dois a quatro anos. Enquanto servia, no entanto, uma nova apelação garantiu a anulação da condenação. Relatos da vítima na época afirmavam que Parker e Celestin aliciaram amigos para a perseguirem e assediarem. Por serem da equipe de luta da tradicional instituição, os amigos contavam com muitos apoiadores e foram “acobertados” pela reitoria. Entre outras coisas, Parker e Celestin se resguardaram sob acusações de racismo. Ambos são negros e a vítima era branca.

Hoje, o filme guarda ainda mais polêmica. Armie Hammer (à direita) é acusado de abuso e até canibalismo.

A vítima, devido a constantes hostilizações, como ter sua foto publicada por todo o campus da universidade por “defensores” de Parker e Celestin, largou os ensinos na instituição e após todo esse embrolho que viria a se arrastar por mais de uma década, terminou por tirar a própria vida em 2012 – após tentativas prévias de suicídio e um longo abalo psicológico que a veria internada numa instituição psiquiátrica. Prontamente, os amigos e familiares da vítima cuidaram para que o caso ressurgisse na mídia quando o nome de Parker, quatro anos depois, decolava para o topo do mundo. A irmã da vítima, Sharon Loeffer, chegou a escrever um artigo importante para a Variety em setembro de 2016, chamado Nate Parker’s ‘Birth of a Nation’ Exploits My Sister All Over Again – ou ‘O Nascimento de uma Nação’ de Nate Parker Explora a Minha Irmã Tudo de Novo.

Como colunista convidada, Loeffer cita que Parker e Celestin usam um estupro como ponto de partida para a narrativa de O Nascimento de uma Nação. Na trama, Esther (Gabrielle Union) é estuprada, e se torna o motivo do início da rebelião de Nat Turner, a figura história vivida por Parker no filme. Loeffer afirma que não existe registro histórico desta motivação ou sequer da existência da companheira de Turner, sendo o ímpeto retratado no longa meramente ficcional e romanceado. Loeffer chama atenção para o fato de Parker e Celestin terem friamente incluído um estupro como ponto de partida e colocarem Turner (e por consequência Parker) como o companheiro da vítima atrás de justiça. Loeffer escreveu: “… eles inventaram a cena do estupro. Isso é ficção. Eu acho arrepiante e perverso que Parker e Celestin tenham colocado um estupro fictício como centro de seu filme, e que Parker se retrate como herói se vingando deste estupro”.

Cartazes modificados com os dizeres “estuprador?” foram espalhados por Los Angeles na época.

A atriz Gabrielle Union, que no filme interpreta a esposa estuprada de Turner, também lançou uma nota pública de repúdio ao comportamento de seus realizadores. Union foi vítima de estupro na vida real aos 19 anos, antes de se tornar atriz. Segundo ela, os fatos vieram ao seu conhecimento após ter participado do filme. Union disse abertamente que, embora a história de Turner seja importantíssima, entendia perfeitamente o boicote de quem assim o quisesse por motivo do envolvimento de Parker e Celestin na produção.

Enquanto divulgava O Nascimento de uma Nação, Nate Parker continuou pregando sua inocência no caso e se recusando a pedir desculpas publicamente pelo ocorrido. Ele reconhecia muitas vezes o erro, mas frisava sua inocência perante julgamento. Além disso, declarava O Nascimento de uma Nação como uma obra coletiva, adereçando os demais envolvidos. Porém, como produtor, roteirista, diretor e protagonista, fica difícil desassociar a figura de Nate Parker de O Nascimento de uma Nação (2016).

A atriz Gabrielle Union foi vítima de estupro na vida real e disse entender o boicote ao filme.

Apesar de inicialmente demonstrar imenso potencial de sucesso, o boicote ao longa surtiu efeito. O Nascimento de uma Nação se tornou um fracasso comercial, ao estrear debaixo de toda a polêmica envolvendo seus realizadores. O fracasso do filme em circuito pelos EUA causou a Fox cancelar sua estreia em países como o Japão, Suíça, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Áustria e alguns países da América Latina (no Brasil recebeu um lançamento restrito e passou batido).

No mesmo ano de 2016, Parker se envolveria em novas polêmicas com declarações homofóbicas dizendo que jamais interpretaria um gay no cinema, entre outra coisas. Há cinco anos, ainda não existia a cultura do cancelamento que temos hoje, mesmo assim Nate Parker foi colocado “na geladeira” por três anos até lançar de forma muito tímida o filme independente American Skin (2019), sem qualquer ressonância. De promissor figura representativa, Nate Parker se tornou uma persona non grata. Mas aos poucos o diretor vem ensaiando um retorno, e já tem quatro projetos engatilhados, incluindo a série Baselines (esperando a estreia) e o longa Solitary (em fase de pós-produção). Estariam Hollywood e os EUA prontos para recebe-lo de volta?

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