Obra de Frank Miller mudou o jogo para o personagem e para a DC Comics
Era a década de 60 e elaborar uma nova história para o Batman era muito sobre ponderar como ela poderia ser apropriada para audiências mais jovens. Devido às restrições impostas pelas regras da então Comic Code Authority sobre o teor das histórias, muitos autores das grandes editoras simplesmente optaram por entregar histórias que carregavam diversos elementos de comédia, lições de moral e um descolamento notável da realidade.
Sob o rótulo de que quadrinhos eram um passatempo exclusivamente infantil (o que até aquele período não era uma mentira pois a indústria nasceu para esse público) a vontade de dialogar por meio daquelas histórias e personagens sobre os problemas que o mundo enfrentava foi, em mais de uma ocasião, soterrada em prol de evitar problemas com o governo. A questão toda é que a geração que leu a primeira Action Comics ou a Detective Comics #27 tinha crescido e sentia que a indústria também precisava mudar.
Para os títulos focados no Batman, em específico, esse período foi uma época de desconstrução da imagem originalmente concebida por Bill Finger e Bob Kane na década de 40, que muito era identificada com as antigas histórias pulp e com os folhetins policiais. Influenciada pela série de TV estrelada por Adam West e pela censura do já mencionado órgão público, a DC Comics priorizou a escolha por histórias que focassem bastante na dupla dinâmica (pois assim seria mais fácil atrair o público jovem do que tendo uma aventura solo do Batman) e na suavização da violência tão inerente ao personagem.
Essa instrução editorial mudou quando Julius Schwartz se tornou editor na DC e com isso estabeleceu maior liberdade para a equipe criativa. Dessa forma novos personagens surgiram no panteão do Homem Morcego com a principal sendo a Batgirl (Barbara Gordon) na Detective Comics #359 em 1967. Junto a reformulação de Schwartz veio o escritor Dennis O’Neil, que até então era um freelancer da antiga Charlton Comics, cuja ambição era chacoalhar o mercado editorial.
Isso levaria à histórica edição Green LanternGreen Arrow Vol #5 de 1983, no qual se estabeleceu um intenso debate sobre a epidemia de drogas na sociedade quando a dupla heroica do título descobre que o ajudante do Arqueiro Verde, Ricardito, está viciado. No entanto, antes disso, O’Neil deixou outra marca na DC, essa de fato seria lembrada nos anos seguintes quando avaliado seu trabalho na empresa: o resgate do Batman.
Numa inesquecível parceria com o ilustrador Neil Adams, o trabalho de O’Neil resgatou parcialmente o clima original das histórias do Batman, voltando a priorizar sua personalidade detetivesca e a violência de inimigos como o Coringa (este também totalmente reformulado após Batman #251 de 1973). Sob sua direção novos vilões surgiriam como Ra’s al Ghul, sua filha Talia e outros antigos seriam resgatados como o já mencionado palhaço príncipe do crime e o Duas-Caras.
A nova abordagem mais madura consciente de O’Neil induziu o jovem autor Frank Miller a se juntar à DC Comics em 1983. Ambos já se conheciam desde os tempos de Marvel Comics, quando Miller assumiu as revistas do Demolidor em 1979 e O’Neil era editor da empresa. A abordagem sombria conferida pelo autor para as histórias do vigilante de Hell’s Kitchen atraíram a atenção do editor, e do público também. Seu primeiro trabalho de fato para a DC foi a minissérie de seis edições Ronin entre 1983 e 1984.
Seu conceito na indústria apenas cresceria no decorrer da década de 80, principalmente no ano de 1986. O autor recebe uma proposta do DC Comics para compor uma minissérie em quatro edições para o Batman que estivesse fora da continuidade vigente do personagem até então, ou seja uma trama em um universo paralelo. Depois de reescrever o roteiro pelo menos quatro vezes, Miller chegou a uma trama central.
A história se passaria alguns anos no futuro, onde o Batman já está idoso e aposentado mas muito longe de estar em paz consigo mesmo. O segundo Robin (Jason Todd) havia morrido, o primeiro (Dick Grayson) cortou laços com ele, Gordon estava em vias de se aposentar e a situação social de Gotham deteriorava mais e mais a cada dia, ao passo que as maiores ameaças não eram mais seus antigos inimigos excêntricos mas uma nova gangue intitulada Mutantes, estes dotados de uma selvageria inimaginável.
O quadrinista também queria conferir um papel especial para a mídia ao longo do desenvolvimento da trama. Em uma nota escrita por ele em 2006 e publicada na edição definitiva da obra, ele traz um pouco sobre a mídia como ferramenta narrativa. “O Cavaleiro das Trevas é, obviamente, uma história do Batman. Em grande parte, procurei usar a escalada da criminalidade ao meu redor para retratar um mundo que precisava de um gênio obsessivo, hercúleo e razoavelmente maníaco para pôr as coisas em ordem…Eu não guardei meu veneno mais poderoso para o Coringa ou Duas-Caras, mas para as insípidas e apelativas figuras da mídia que cobriam de forma tão pobre os conflitos daquela época.”
O tom satírico é, realmente, essencial para se entender a construção do mundo presente na minissérie. Constantemente ocorrem cortes na narrativa focada em Bruce Wayne para mostrar as opiniões proferidas por jornalistas, psiquiatras e até o então presidente Ronald Reagan. O autor faz jus ao mencionado “veneno” e “cobertura pobre” mencionados na nota e sempre faz questão de representar as figuras que aparecem na televisão como propositalmente mau intencionadas ou totalmente ignorantes à pauta a qual elas estão noticiando.
A violência social, também mencionada por ele na nota, é outro elemento presente como ferramenta narrativa. Majoritariamente praticada pela já mencionada gangue Mutante para mostrar que o ambiente de Gotham havia se degradado a um ponto sem volta, utilizada pelo próprio Batman como um recurso necessário para lidar com esse novo inimigo e pelo Coringa para chamar a atenção de seu nêmesis uma última vez. Curiosamente o Superman, que aqui atua como um agente do governo mandado para matar o Batman, é o único dos grandes personagens a evitar o apelo à violência e quando o faz ele se mantém controlado.
Ao final do seu período de publicação, O Retorno do Cavaleiro das Trevas havia enterrado de vez no passado quaisquer regras de que o Batman era um personagem que deveria viver a par do que acontecia no mundo. As velhas regras sobre suavizar com comédia ou da necessidade de ter o Robin em todas as histórias foram descartadas. O Coringa não era mais um palhaço comediante com planos leves, o Superman não era mais o escoteiro da verdade e justiça e o Batman não era mais Adam West.
A recepção positiva da Grafic Novel foi imediata e diretamente responsável por uma nova onda estilística na indústria dos quadrinhos. Seu tom de história violento e com bases fincadas em assuntos reais levaria à explosão de quadrinhos exagerados nos anos 90 (principalmente aquelas feitas pelo Rob Liefeld), que de toda forma tentaram em vão copiar a mesma mensagem passada pelas obras de Miller ou Moore anos antes.
O Retorno do Cavaleiro das Trevas ainda teve duas sequências. Uma lançada em 2001 se passando algum tempo após o fim da história original e outra em 2015, dando sequência ao segundo capítulo. Mesmo tendo a participação do autor, ambas as continuações tiveram ou uma recepção mista (2015) ou foram completamente repelidas por público e crítica (2001).
Majoritariamente a fonte das reprovações giram em torno das decisões criativas de Miller em seguir “forçando” continuações de uma história que já tinha início, meio e fim; além, principalmente, dos traços do autor (que também atua como ilustrador das histórias) cuja estética é facilmente incompreensível e até grotesca. Mesmo assim, o personagem Batman nunca mais foi o mesmo após a minissérie de 1986; nem ele, nem a indústria e, correndo em paralelo mas não diretamente relacionado com os quadrinhos, o mundo.