terça-feira , 3 dezembro , 2024

Opinião | ‘A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata’ é uma das gemas menos conhecidas da Netflix

É impressionante a fascinação de storytellers pelo antigo. Histórias ambientadas no polêmico cenário bélico da primeira metade do século XX não apenas conseguem abrir margens para as mais encantadoras tramas envolvendo heróis e heroínas, paixões proibidas e sequências de ação de tirar o fôlego, mas também mostram o número de diferentes perspectivas a serem tratadas em relação àquela época. É claro que algumas produções acabam caindo nas generalizações de sempre, como O Zoológico de Varsóvia’ ou A Menina que Roubava Livros; outros inclinam-se para a comédia satírica proposital, como Caçadores de Obras-Primas; e há aqueles feitos para chocar e misturar ficção com realidade de formas lúdicas e intensas – e aqui não posso deixar de citar Império do Sol’ e A Lista de Schindler.

Mas e quando tenta-se unir múltiplas vertentes narrativas em um único cosmos? É muito fácil também cair nas saídas formulaicas quando se cria um mundo próprio, ambientado numa ilha outrora paradisíaca até a chegada do inimigo – no entanto, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata propõe sair da caixinha ao trazer um elenco interessante, uma trama que fuja de qualquer coisa que já tenhamos visto e algumas viradas surpreendentes, ainda que com falhas evidentes. E assistir a uma obra desse gênero é refrescante e apaziguador, principalmente considerando o controverso catálogo da Netflix – consagrando-se como algo que serve tanto para os apaixonados por comida, por eventos históricos e por romances ao melhor estilo Romeu e Julieta.



À época de lançamento do longa, Lily James havia mergulhado em uma boa fase de sua vida, fazendo escolhas aceitáveis que a colocaram em voga: com Cinderela’ vindo três anos atrás e com a estreia da sequência de Mamma Mia!’, a atriz provou sua versatilidade e resolveu abraçar um personagem um tanto quanto confortável, no qual conseguiria criar uma química interessante ao lado de seus colegas e mostrar mais uma vez certas habilidades cênicas. E é justamente por isso que o papel da escritora Juliet Ashton, cuja consternação com o período que sucedeu a II Guerra a impede de se sentir satisfeita com a publicação de seus romances – e é claro que o fato de sua primeira obra não ter sido um sucesso também contribui para a melancolia. Mesmo assim, ela tenta se encontrar em meio ao luxo londrino, tendo como parceiro o futuro noivo Mark (Glen Powell).

Eventualmente – claro, funcionando como o compulsório deus ex machina de um romance como esse -, Juliet passa a se corresponder com Dawsey Adams (Michiel Huisman), que porventura encontra um dos exemplares da coleção da autora em uma das únicas livrarias restantes na Ilha de Guernsey e pede para que ela encontre outros volumes “raros”, por assim dizer. E, como podemos imaginar, ela se encanta pelo redator misterioso e pelo hilário clube do livro que fundam no impulso de se esconderem da ocupação germânica em sua casa – nome emprestado ao título da obra. Logo, a romancista resolveu viajar para Guernsey em uma visita surpresa ao grupo, conhecendo alguns dos personagens mais adoráveis que já vi.

Como dito, o longa carrega consigo erros bem visíveis: o primeiro ato, ainda que compreensível de ser mais monótono por querer contrastar o antes e o depois dos efeitos da guerra, move-se em um vagaroso início de coming-of-age que pode ou não envolver os espectadores. É mais provável que o público sinta afabilidade pela presença carismática de James e por seu apaixonante sotaque britânico que pela história em si – afinal, as coisas só ganham uma guinada considerável quando Juliet chega à famigerada ilha. Na verdade, a atmosfera começa realmente a ganhar forma e a mudar quando a primeira carta chega ao seu pequeno apartamento e o som da máquina de escrever volta a encher os corredores.

Mais que um romance, ‘A Sociedade Literária’ é uma crítica aos governos nazifascistas, mesmo mascarada. A resistência representada pelas figuras de Isola (Katherine Parkinson) e Eben Ramsey (Tom Courtenay) reflete os traumas daquele período, mas nenhum deles chega aos pés da representatividade catártica de Elizabeth McKenna (Jessica Brown Findlay). Ela ousou quebrar os padrões da época e enxergar a bondade até mesmo nos tachados de inimigos, envolvendo-se com um dos soldados do exército alemão e provando que nem todos estavam ali por seguirem a mesma ideologia; conforme a narrativa se segue, abrindo margens para um paralelismo interessante que não é tratado com a importância merecida, Juliet embarca em um mistério muito maior do que esperava, cavando fundo nos eventos de Guernsey e compreendendo que o mundo que pensava existir na verdade tem cicatrizes dolorosas.

Mike Newell faz um trabalho interessante com a condução cênica, resgatando elementos de uma de suas obras anteriores mais famosas – Harry Potter e o Cálice de Fogo. Seja pela preferência de uma fotografia mais escura e expressiva ou pelos ângulos distorcidos – a presença dos planos holandeses é mais do que necessária nessa produção -, as marcas registradas de seu trabalho fílmico estão em todos os lugares e também conseguem fugir dos parâmetros esperados, ainda que falte um pouco de polimento em certas sequências. De qualquer forma, os enquadramentos mais fechados em diálogos de descoberta e amadurecimento refletem a intimidade entre os personagens e permite a criação de laços interpessoais.

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é uma boa pedida para os amantes de histórias românticas e clássicas. Claro, não espere algo que chegue ao nível de Casablanca’, mas há certas inclinações inegáveis e até mesmo modernizadas que entregam uma obra interessante e satisfatória.

Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

Siga-nos!

2,000,000FãsCurtir
372,000SeguidoresSeguir
1,620,000SeguidoresSeguir
195,000SeguidoresSeguir
162,000InscritosInscrever

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

MATÉRIAS

CRÍTICAS

Opinião | ‘A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata’ é uma das gemas menos conhecidas da Netflix

É impressionante a fascinação de storytellers pelo antigo. Histórias ambientadas no polêmico cenário bélico da primeira metade do século XX não apenas conseguem abrir margens para as mais encantadoras tramas envolvendo heróis e heroínas, paixões proibidas e sequências de ação de tirar o fôlego, mas também mostram o número de diferentes perspectivas a serem tratadas em relação àquela época. É claro que algumas produções acabam caindo nas generalizações de sempre, como O Zoológico de Varsóvia’ ou A Menina que Roubava Livros; outros inclinam-se para a comédia satírica proposital, como Caçadores de Obras-Primas; e há aqueles feitos para chocar e misturar ficção com realidade de formas lúdicas e intensas – e aqui não posso deixar de citar Império do Sol’ e A Lista de Schindler.

Mas e quando tenta-se unir múltiplas vertentes narrativas em um único cosmos? É muito fácil também cair nas saídas formulaicas quando se cria um mundo próprio, ambientado numa ilha outrora paradisíaca até a chegada do inimigo – no entanto, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata propõe sair da caixinha ao trazer um elenco interessante, uma trama que fuja de qualquer coisa que já tenhamos visto e algumas viradas surpreendentes, ainda que com falhas evidentes. E assistir a uma obra desse gênero é refrescante e apaziguador, principalmente considerando o controverso catálogo da Netflix – consagrando-se como algo que serve tanto para os apaixonados por comida, por eventos históricos e por romances ao melhor estilo Romeu e Julieta.

À época de lançamento do longa, Lily James havia mergulhado em uma boa fase de sua vida, fazendo escolhas aceitáveis que a colocaram em voga: com Cinderela’ vindo três anos atrás e com a estreia da sequência de Mamma Mia!’, a atriz provou sua versatilidade e resolveu abraçar um personagem um tanto quanto confortável, no qual conseguiria criar uma química interessante ao lado de seus colegas e mostrar mais uma vez certas habilidades cênicas. E é justamente por isso que o papel da escritora Juliet Ashton, cuja consternação com o período que sucedeu a II Guerra a impede de se sentir satisfeita com a publicação de seus romances – e é claro que o fato de sua primeira obra não ter sido um sucesso também contribui para a melancolia. Mesmo assim, ela tenta se encontrar em meio ao luxo londrino, tendo como parceiro o futuro noivo Mark (Glen Powell).

Eventualmente – claro, funcionando como o compulsório deus ex machina de um romance como esse -, Juliet passa a se corresponder com Dawsey Adams (Michiel Huisman), que porventura encontra um dos exemplares da coleção da autora em uma das únicas livrarias restantes na Ilha de Guernsey e pede para que ela encontre outros volumes “raros”, por assim dizer. E, como podemos imaginar, ela se encanta pelo redator misterioso e pelo hilário clube do livro que fundam no impulso de se esconderem da ocupação germânica em sua casa – nome emprestado ao título da obra. Logo, a romancista resolveu viajar para Guernsey em uma visita surpresa ao grupo, conhecendo alguns dos personagens mais adoráveis que já vi.

Como dito, o longa carrega consigo erros bem visíveis: o primeiro ato, ainda que compreensível de ser mais monótono por querer contrastar o antes e o depois dos efeitos da guerra, move-se em um vagaroso início de coming-of-age que pode ou não envolver os espectadores. É mais provável que o público sinta afabilidade pela presença carismática de James e por seu apaixonante sotaque britânico que pela história em si – afinal, as coisas só ganham uma guinada considerável quando Juliet chega à famigerada ilha. Na verdade, a atmosfera começa realmente a ganhar forma e a mudar quando a primeira carta chega ao seu pequeno apartamento e o som da máquina de escrever volta a encher os corredores.

Mais que um romance, ‘A Sociedade Literária’ é uma crítica aos governos nazifascistas, mesmo mascarada. A resistência representada pelas figuras de Isola (Katherine Parkinson) e Eben Ramsey (Tom Courtenay) reflete os traumas daquele período, mas nenhum deles chega aos pés da representatividade catártica de Elizabeth McKenna (Jessica Brown Findlay). Ela ousou quebrar os padrões da época e enxergar a bondade até mesmo nos tachados de inimigos, envolvendo-se com um dos soldados do exército alemão e provando que nem todos estavam ali por seguirem a mesma ideologia; conforme a narrativa se segue, abrindo margens para um paralelismo interessante que não é tratado com a importância merecida, Juliet embarca em um mistério muito maior do que esperava, cavando fundo nos eventos de Guernsey e compreendendo que o mundo que pensava existir na verdade tem cicatrizes dolorosas.

Mike Newell faz um trabalho interessante com a condução cênica, resgatando elementos de uma de suas obras anteriores mais famosas – Harry Potter e o Cálice de Fogo. Seja pela preferência de uma fotografia mais escura e expressiva ou pelos ângulos distorcidos – a presença dos planos holandeses é mais do que necessária nessa produção -, as marcas registradas de seu trabalho fílmico estão em todos os lugares e também conseguem fugir dos parâmetros esperados, ainda que falte um pouco de polimento em certas sequências. De qualquer forma, os enquadramentos mais fechados em diálogos de descoberta e amadurecimento refletem a intimidade entre os personagens e permite a criação de laços interpessoais.

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é uma boa pedida para os amantes de histórias românticas e clássicas. Claro, não espere algo que chegue ao nível de Casablanca’, mas há certas inclinações inegáveis e até mesmo modernizadas que entregam uma obra interessante e satisfatória.

Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

Siga-nos!

2,000,000FãsCurtir
372,000SeguidoresSeguir
1,620,000SeguidoresSeguir
195,000SeguidoresSeguir
162,000InscritosInscrever

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

MATÉRIAS

CRÍTICAS