O cinema não possui a alcunha de sétima arte por qualquer motivo: afinal, é ele quem conflui todas as outras expressões artísticas em um mesmo lugar, seja nos enquadramentos e nas fotografias (emulando a própria pintura), seja no uso da música como potencializador narrativo.
E, desde a consagração do cinema como “arte” no sentido factual do termo, inúmeros títulos carregam o lendário título de revolucionários, por terem modelado diversas “regras” ou “formulações” a serem seguidas por cineastas, auxiliando-os inclusive a desmistificar convencionalismos em prol de impulsões que caem no gosto dos espectadores e dos especialistas.
Pensando nisso, tivemos a árdua tarefa de eleger os dez melhores longas-metragens da década (até agora).
Confira abaixo as nossas escolhas:
10. RIVAIS (2024)
“A imersão promovida por Luca Guadagnino em ‘Rivais’ não se restringe apenas à condução magistral do projeto, e sim a ramificações que incluem uma montagem frenética e pautada em um ritmo aplaudível (cortesia das habilidosas mãos de Marco Costa), e de uma trilha sonora que oscila entre orquestrações dissonantes e um apreço significativo pela nostálgica originalidade do techno-house (assinada por Atticus Ross e Trent Reznor, frequentes colaboradores do diretor). É notável como o mínimo deslize poderia transformar todo esse escopo em um festival camp cansativo, mas o time criativo sabe como caminhar por ensejos tortuosos – guiados pelo didático e provocante roteiro de Justin Kuritzkes, que nos oferece uma nova visão de um cosmos explorado ad nauseam pela sétima arte” – Thiago Nolla
9. MINARI (2020)
“É esse movimento cíclico que dá todas as bases para a narrativa principal. Diferente do que poderíamos imaginar, o enredo foge das dramatizações novelescas e deixem que as expressões comedidas dos atores e atrizes comandem cada uma das reviravoltas, desde a estagnação socioeconômica da família, passando pelas crises internas de cada persona e culminando numa limpeza espiritual que transcende os conceitos mundanos do que entendemos como ‘fé’. Guiado pela cândida trilha sonora de Emile Mosseri, que arquiteta as faixas mais honestas dos últimos anos, e acompanhado da fotografia quase documentária de Lachlan Milne, o filme carrega uma profundidade alegórica muito maior do que imaginamos” – Thiago Nolla
8. PINÓQUIO (2023)
“As investidas artísticas dialogam com o enredo das formas mais variadas: cada sequência é pensada com detalhismo apaixonante, desde os galhos das árvores às protuberâncias do monstro marinho que engole os protagonistas. As cores transitam entre o naturalismo de um escopo amalfitano, paradisíaco, ao pessimismo convulsionado da guerra, manchada por vermelho, laranja e pela sóbria neutralidade do marrom; a trilha sonora, assinada por Alexandre Desplat e uma forte concorrente ao Oscar, aposta em elementos fantasiosos, mas fundindo teatralidade com realismo em uma explosão sentimental que nos arrepia do começo ao fim. O único obstáculo enfrentado pelo filme é a paixão repentina de explicar as coisas que acontecem, movido a uma precisão que, por vezes, se torna cansativa (em outras palavras, seria mais divertido que fôssemos levássemos a pensar sobre os temas tratados do que engoli-los já mastigados)” – Thiago Nolla
7. ATAQUE DOS CÃES (2021)
“Um enigmático relato de época, o drama ainda explora a realidade da mulher em tempos remotos. Sempre uma estranha dentro da sua própria vida, a personagem é ignorada e vê o sonho de um futuro estável ao lado de um carinhoso homem se transformar em um depressivo pesadelo. E mesmo sendo parte do ambiente ao qual fora trazida, nossa protagonista vive em um estado eterno de solidão, sempre contrastada com o desconfortável e enigmático antagonista que faz jogos mentais, à medida em que parece pelejar para saber quem verdadeiramente é” – Rafaela Gomes
6. TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (2022)
O longa ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’, estrelado por Michelle Yeoh, é uma amálgama de inúmeras incursões narrativas. Entretanto, um dos aspectos que mais nos chama a atenção é como a presença da fantasia é uma das forças-motrizes da produção (um dos motivos pelo qual levou o Oscar de Melhor Filme para casa). Na trama, uma ruptura interdimensional bagunça a realidade e uma inesperada heroína precisa usar seus novos poderes para lutar contra os perigos bizarros do multiverso.
5. NOMADLAND (2020)
“É impressionante como nenhum dos aspectos do longa falha em entregar exatamente aquilo que promete: a dicotomia entre a aurora e o ocaso é transferida inclusive à minimalista trilha sonora de Ludovico Einaudi e a uma sóbria e trágica fotografia de Joshua James Richards. Mesmo assim, com todas essas infusões que vão para além de um mero estudo de caso, é bem provável que ‘Nomadland’ não caia no gosto de todos – mas que merece ser visualizado como a densa análise antropológica e sociológica que realmente é” – Thiago Nolla
4. DUNA: PARTE II (2024)
“Os arranjos imagéticos merecem ser mencionados, postando-se como pequenas joias artísticas talhadas em ouro. É notável como o cineasta, aliando-se às habilidosas mãos de Graig Fraser, preza pela fotografia e pelos enquadramentos como organismos vivos e que fazem parte inextricável da narrativa, impedindo que a imagem e a história sejam desassociadas. Há uma predileção infindável pelo contraste entre o incômodo e desolador deserto de Arrakis para a claustrofobia encarcerada de Giedi Primo, cujas paletas de cores são parte de espectros opostos que convergem para diferentes arquiteturas de melancolia e desespero. Percebe-se que, assim como o romance de Herbert, a adaptação exalta, ironicamente, a pequenez do homem frente à imensidão do universo – e de que modo a corrosão da alma é reflexo direto da ganância desmedida” – Thiago Nolla
3. ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023)
Brilhante, tenso e magicamente misturando inúmeros gêneros em um mesmo lugar, ‘Anatomia de uma Queda’ não pode ser elogiado o suficiente pelo magnífico produto que presenteou aos cinéfilos. O longa-metragem, dirigido por Justine Triet em sua melhor entrada no cenário do entretenimento até hoje, traz Sandra Hüller como uma escritora que tenta provar sua inocência frente a morte do marido, guiando-nos em uma potente narrativa que diluí o limite entre verdade e mentira de forma assustadora e bela, ao mesmo tempo. Não é surpresa que a obra tenha sido selecionada para a nossa lista.
2. DRIVE MY CAR (2021)
“O que se deve fazer da vida e do amor? Buscando por perguntas sobre a existência e entregando respostas em forma de diálogos e situações do cotidiano, […] ‘Drive my Car’ flerta com a metalinguagem em sua narrativa de pausas e longos diálogos, principalmente quando colocamos o sujeito sob a ótica de estarmos presenciando uma adaptação de um famoso conto do mais famoso médico e escritor que rompeu as barreiras do drama no universo teatral, Anton Tchekhov. Um trabalho fabuloso de Ryûsuke Hamaguchi, um cineasta que sempre precisamos estar de olho” – Raphael Camacho
1. POBRES CRIATURAS (2023)
Além de apresentar uma perspectiva totalmente original à história eternizada por Mary Shelley e recriada por Alasdair Gray em seu romance, ‘Pobres Criaturas’ mergulha em uma reflexão sobre a imutabilidade da condição humana dentro de um contexto de época, prezando por uma atemporalidade que em nenhum momento soa anacrônica, mas que fornece os elementos necessários para criar um elo entre passado, presente e futuro – um retrato que, ao mesmo tempo, é otimista e pessimista, infundido em uma celebração surrealista das pulsões do indivíduo.