Adaptação de 1920 foi uma das primeiras representações da clássica história no cinema
Poucas histórias possuem tamanho poder de atração quanto o famoso conto O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde) escrito por Robert Louis Stevenson em 1886. Ou são transpostas tão facilmente para o cinema tendo sido criadas anos antes da sétima arte em si. Não à toa, em 1920, o famoso ator do cinema mudo John Barrymore (avô da atriz Drew Barrymore) entregou sua própria interpretação da famosa dualidade do Dr. Henry Jekyll.
À época de seu lançamento o filme recebeu avaliações positivas, tendo sido ressaltado o trabalho do ator principal e a condução eficaz, mesmo que não tenha sido alçado ao posto de filme referência do período (lembrando que no mesmo ano a Alemanha produzia O Gabinete do Dr. Caligari). Isso, no entanto, não foi a principal conquista da obra, mas sim trazer uma das primeiras adaptações do livro a ter um ator bastante conhecido no papel principal ou mostrar o quão facilmente adaptável é essa história.
O cenário é de 1886, a famosa Inglaterra vitoriana em seu auge com a expansão industrial e o avanço da ciência. Enquanto isso, do outro lado do espelho, o crescimento desregulado da população urbana levou a um aumento da pobreza e da prática de crimes. Essa dualidade da identidade tanto inglesa quanto europeia de uma maneira geral foi também uma causa para a maior ansiedade do período.
No artigo científico Reputation and Social Perfection: The Social Creation of Mr. Hyde de Valerie Mack para a Universidade Wesleyana, de Illinois, é dito que o romance em questão serve como uma forma de crítica à postura da época. “O código social ignorava e até evitava características naturais e essenciais das personalidades das pessoas, mesmo que eles não fossem perigosos ou violentos. Por causa disso, aspectos indesejáveis dessas personalidades ficaram suprimidos e afetaram os locais da sociedade em que viviam”.
Não à toa os cenários e personagens presentes na obra de Stevenson representam algum extremo daquela sociedade. Por exemplo, os locais onde Sr. Hyde comete seus crimes tendem a ser mais humildes enquanto que, ao sentir que o efeito da poção irá acabar, ele foge para a luxuosa casa de sua contraparte, Dr. Jekyll. O próprio personagem pelo qual o leitor é inserido na história, o advogado Utterson, é apresentado como uma figura ambígua no sentido de que ele, por sua profissão, integra a alta roda da sociedade, mas ao mesmo tempo se compadece pelas vítimas de Hyde.
Outro fator que também facilitou em muito para a imortalidade da obra foram suas características como romance policial que em nada envelheceram nos últimos séculos. Há um assassino, um “detetive” (no caso o sr. Utterson), um suspeito e uma reviravolta final; nada de diferente do que se encontra em uma obra da Agatha Christie ou James Patterson. Além desses fatores há o plus da ambientação. A cidade de Londres, no decorrer do livro, se vê representada pelo mesmo tema de dualidade que basicamente está presente em cada canto.
Essa visão é corroborada no texto Gothic Elements in ‘The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde’, de Charlotte Barrett. Segundo a autora, a cidade representa o mesmo tipo de divisão que atormenta o protagonista. “O tema de dualidade é simbolizado no decorrer do texto. A cidade de Londres é dividida em duas. O lado onde Dr. Jekyll, Sr. Utterson e seus conterrâneos vivem e trabalham é representado como uma área rica, inteligente e educada… em contraste, outro lado de Londres é representado pelo distrito do Soho, uma área suja da cidade que apresenta um playground ativista, aonde o comportamento imoral é esperado e muito menos noticiado.”
O Médico e o Monstro se tornou uma história atemporal pelo tema que trabalha, no caso a dualidade do ser humano; do seu potencial para a civilidade e para a selvageria. Seu romance também incentivou o surgimento de toda uma nova gama de pesquisas psicológicas sobre transtornos de personalidade. Ao mesmo tempo, sua característica de entretenimento enquanto uma história de mistério lhe protegeu do envelhecimento de modo que todas as gerações possam apreciar os crimes do sr. Hyde (ou a tragédia do Dr. Jekyll) como se fosse uma obra atual.