Em 2016, Guillermo del Toro marcava sua primeira colaboração ao lado de um dos maiores serviços de streaming do mundo, a Netflix. O diretor, conhecido por seu requintado gosto técnico e suas obras artisticamente perfeitas, como ‘O Labirinto do Fauno’ e ‘Hellboy II – O Exército Dourado’, teria um território vasto para explorar, visto que se lançaria no mundo das animações em uma construção um tanto quanto convencional, mas com bastante potencial para mergulhar de cabeça em uma narrativa interessante, comovente e voltada para quaisquer públicos. E foi de sua paixão pelas fabulescas e impossíveis aventuras que nasceu ‘Caçadores de Trolls’, uma jornada no melhor estilo heroico que focava na transformação do jovem Jim Lake Jr. (Anton Yelchin) em um guerreiro humano presenteado com a graça dos poderes de Merlin.
Apenas dois anos depois, com uma aclamação gigantesca pelos espectadores e pela crítica, Del Toro anunciou que iria expandir seu cosmos com dois derivados, uma centrada em alienígenas e outra em feiticeiros – e com a última temporada da série original, já marcou a primeira fusão entre os dois mundos. ‘Os 3 Lá Embaixo’, cuja história gira em torno de três extraterrestres exilados de sua terra natal que encontram conforto na Terra até conseguirem rearranjar suas vidas e recuperarem o que lhes foi tirado. E diferente das fórmulas presentes em ‘Trolls’, as quais funcionam em sua completude, o pano de fundo aqui é mais profundo, não abrindo mão de certos preciosismos que apenas contribuem para aumentar a complexidade de seus próprios personagens e seus arcos. É claro, talvez o spin-off não encontre, por ora, a mesma originalidade nostálgica de sua predecessora, mas é uma ótima entrada para a misteriosa cidade de Arcadia.
A narrativa parte do mesmo preceito que o show anterior: o encontro entre dois mundos diferentes, mas agora separados por anos-luz de distância. Aqui, a futura rainha Aja Tarron (Tatiana Maslany) renega sua condição como membro da família real, preferindo muito mais a vida livre de uma simples plebeia. Seu irmão, Krel (Diego Luna), apesar de mais complacente com o destino, também se vê dividido entre o que quer e o que é o certo a se fazer para a continuidade de paz de seu planeta, Akiridian-5, logo agora que dois clãs inimigos haviam se unido em matrimônio e gerado os primeiros descendentes dessa história trégua. Entretanto, as coisas não ficam em paz por muito tempo, visto que pouco depois as tropas comandadas pelo General Morando (Alon Aboutboul) invadem o Palácio, “assassinando” o rei e a rainha e tomando controle, logo após um módulo de fuga com os príncipes e um dos soldados mais fiéis aos Tarron entrar em modo de escape para a Terra.
O início dessa mais nova aventura é um tanto quanto sem ritmo e pode incomodar aqueles que se deparam com esse universo único. Enquanto Jim Lake Jr. lidou gradativamente com sua condição como guerreiro, Aja e Krel, auxiliados por Varvatos Vex (Nick Offerman), se viram separados dos pais, agora reduzidos aos núcleos, espécie de coração de cada um dos habitantes de Akiridian-5 que os mantém vivos mesmo sem uma forma física, em um território diferente, onde os costumes primitivos em nada se equiparam à monarquia da qual faziam parte há pouco tempo. Entretanto, Del Toro, apesar de sua habilidade incrível para recuperar as rédeas e fazer o que for necessário para nos chocar e fugir do esperado, se perde nos primeiros passos e arquiteta algo histérico demais, forçando alguns acontecimentos em prol de algo maior.
Felizmente, as coisas vão se estabilizando e encontram seu caminho. Além dos subplots antológicos, iniciados e finalizados dentro de um mesmo capítulo, a trama principal segue sem pressa e, inacreditavelmente, tem início, meio e fim em treze episódios de apenas vinte minutos cada. O showrunner, ao lado de uma competente equipe criativa, faz bom uso das animações, mantendo-se no saudosismo do início dos anos 2000 ao mesmo tempo que utiliza bem diversos elementos da contemporaneidade para mostrar que a perspectiva que deseja entregar não é nada com o que já conhecemos. A adição de personas também se mescla com rostos bastante familiares, como Ivan (Cole Sand) e Steve (Steve Yuen), que tinham ganhado certo prestígio na série predecessora e agora são condecorados com um protagonismo merecido. Steve, por exemplo, se vê num enlace romântico com Aja que em nenhum momento é desperdiçado – pelo contrário: os hilários momentos entre os dois se mesclam com cenas de luta e uma resolução incrivelmente prática, por mais que seja irreal.
Se aprendemos algo no passado, é que Del Toro tem uma habilidade narrativa gigante, não pensando duas vezes em sacrificar o que for preciso para o que bem quiser. Aqui, o sacrifício vem na credibilidade e no caráter de certos personagens, transformando, por exemplo, a figura paternal de Varvatos na de um traidor, movido pelo ódio e agora buscando redenção ao cuidar dos herdeiros do trono. Além disso, a orquestra, regendo conforme a música, traz temas interessantes de aceitação, ditadura e misericórdia, por essa mesma razão insurgindo como uma produção mais profunda e, numa probabilidade ínfima, não conversando com a mesma potência com o público mais jovem.
‘Os 3 Lá Embaixo’, mesmo não tendo explorado seu imenso potencial ao extremo na temporada de estreia, é uma ótima adição ao antológico cosmos de Arcadia e à própria filmografia do diretor. Com um elenco de ponta, que traz inclusive Glenn Close em participações especiais, e tramas emocionantes, este é apenas o princípio de um ótimo spin-off que reflete a criatividade ímpar de um dos realizadores mais incríveis da atualidade.