Sitcom britânica se tornou não só um sucesso por si mesma mas também por representar a evolução do processo televisivo
Poucos seriados, principalmente as comédias denominadas como sitcoms, tem a capacidade de se sustentar na memória coletiva por mais de uma geração. No caso em particular das séries de comédia, o desafio é ainda maior devido a limitação que tal gênero impõe sobre o produto final dependendo da abordagem que lhe é conferida pelos produtores. Melhor dizendo, confiar que o sucesso de uma sitcom será garantido unicamente por apresentar momentos engraçados é um risco sempre presente.
Não à toa, muitos seriados norte-americanos que tiveram seus momentos de glória entre as décadas de 70 e 80, hoje em dia encontram-se praticamente esquecidos (isso é, quando não possuem a sorte de serem reprisados ou ganharem um remake). Isso porque seus produtores não compreenderam que, ao passo que a televisão como entretenimento amadureceu, a exigência do público também amadureceu à igual velocidade, não se contentando mais com programas que estavam fechados unicamente em seus nichos; nesse caso uma série de comédia que unicamente apostava em humor pelo humor e se esquecia de trabalhar os elementos humanos a que dispunha (transitando assim para um terreno próximo ao drama).
Partindo então para o outro lado do Atlântico, a história da televisão na Inglaterra remonta aos anos 20, quando em 1926 ocorreu a primeira demonstração pública do funcionamento de tal aparelho. O primeiro programa cômico a aparecer em telinhas britânicas, porém, só veio em 1946 com o seriado Pinwright’s Progress, exibido no canal BBC One logo após o mesmo retomar as atividades no cenário pós Segunda Guerra Mundial.
O sucesso estrondoso da primeira sitcom, ou também conhecida como britcom, abriu caminho para o modelo de condução que a maior parte dos seriados de comédias inglesas adotaram posteriormente. No artigo de 2016, publicado no Guardian, sob o título The Five Stages of British Gags: silliness, repression, anger, innuendo, fear o jornalista James Graham aponta para um elemento criado por Pinwright’s Progress e que foi essencial para Mr. Bean.
“Não vamos nos esquecer que a sitcom, que nesses dias soa como uma invenção americana, foi uma invenção britânica – tendo sido Pinwright’s Progress o primeiro… Isso começou uma longa tradição, de que grandes gargalhadas podem vir de arquétipos reconhecíveis junto à ansiedades da Grã-Bretanha: humilhação social e dano à reputação…”.
As décadas seguintes marcaram, portanto, uma expansão de aparelhos televisivos dentro de lares ingleses junto a maiores ofertas nas grades de programação. Essa expansão da grade variou tanto entre momentos históricos como a coroação da rainha Elizabeth em meados dos anos 50 quanto a exibição de britcoms que se tornaram referências como Fawlty Towers e Monty Python (curiosamente ambos os shows tiveram o ator John Cleese como parte do elenco).
Foi por volta de 1979 que o personagem Mr. Bean, criado e interpretado por Rowan Atkinson, debutava em um festival em Edimburgo. Na época, o jovem ator estava a concluir seu mestrado em engenharia elétrica na universidade de Oxford. Nesse período seu personagem ainda não possuía um nome mas, em 1987, já fazia as primeiras pontas em programas de TV.
Um deles, por curiosidade, foi a britcom de humor negro histórico intitulada Blackadder. Desenvolvida pela dupla Rowan Atkinson e Richard Curtis em 1983, a série seguia as desventuras de Edmund Blackadder através de momentos históricos chave. O programa viveu até 1989, quando no ano seguinte a dupla partiria para desenvolver Mr. Bean.
Por volta de 1990 o canal britânico ITV exibiu a primeira temporada do mais novo produto elaborado por Atkinson e Curtis, este conhecido como Mr. Bean. A proposta do novo programa se baseava em resgatar um estilo cômico muito mais físico do que falado, algo remanescente do cinema mudo de Charles Chaplin e Jacques Tati. Raramente o protagonista iria falar e, quando o fizesse, seriam frases curtas, geralmente bastante ininteligíveis. Uma escolha de caminho ousada porém perigosa, visto que a maior parte das britcoms da época passavam por uma fase de abraçar um humor mais ácido que necessitava de diálogos dinâmicos e inteligentes para ocorrer.
Mr. Bean seguiu a direção oposta e abraçou a ideia de brincar com um protagonista que, nas palavras do próprio Atkinson, “era uma criança no corpo de um adulto”. Com isso estabelecido desde o primeiro momento, a série não correu o risco de perder a audiência ao mostrar cenas inerentemente ligadas a personagens infantis sendo representadas na pele do próprio Bean. Fazer um teste de maneira atrapalhada (carregando um boneco da Pantera Cor de Rosa e de um policial para verificar o relógio), perceber que não está sozinho na praia e portanto inventar formas insanas de colocar o traje de banho ou, o mais icônico de todos, sua relação com o famoso ursinho de pelúcia Teddy.
Sem desviar da fala dita anteriormente por James Graham sobre regras estabelecidas para o humor britânico acerca de medos comuns dessa sociedade, o Mr. Bean constantemente se coloca em situações cômicas e, porque não, humilhantes para sua imagem pública. Ou seriam se o personagem fosse construído com a mentalidade de um adulto, o que não é o caso. Mr. Bean acaba sendo então um produto que, acidentalmente ou não, caçoa dos arquétipos sociais britânicos que Graham havia definido e que construíram ao longo de décadas o gênero britcom.
Fato é que o sucesso da série entre janeiro de 1990 e dezembro 1995 se traduz pelos números de audiência, em especial no episódio “Mr. Bean: Trouble With Mr. Bean”. Segundo o IMDB este episódio registrou, em 1992, o pico de audiência da série com 18,74 milhões de telespectadores. Tamanha foi a boa recepção do público inglês que não tardou para que emissoras estrangeiras se interessassem por comprar os direitos de transmissão. Com isso o seriado foi transmitido para mais de 245 países, dentre eles o Brasil.
A série ainda gerou duas adaptações para o cinema, sendo a primeira Mr. Bean: o Filme (1997) e a segunda As Férias de Mr. Bean (2007). Enquanto que a primeira demonstrou um bom retorno financeiro mas foi bastante criticada por não apresentar uma estrutura similar ao do programa de TV e ter basicamente apenas inserido Bean para capitalizar sobre sua fama (jogando o personagem título em uma trama que se passa em Los Angeles sobre uma família americana). Já o segundo foca muito mais no personagem título enquanto ele realiza um tour pela França e, além de ter conseguido um bom desempenho financeiro, foi um pouco melhor avaliado que seu antecessor.
Atualmente o personagem está ativo na mídia audiovisual por meio de uma série animada voltada para o público infantil, não muito diferente do que já aconteceu com o seriado Chaves também. Passados 30 anos de sua estreia, o excêntrico morador do número 12 na Arbour Road ainda é um fenômeno cultural bastante relevante, além de uma peça importante na longa história do humor britânico.
Todos os episódios de Mr. Bean estão disponíveis na internet no Youtube. É só fazer uma busca para rever e gargalhar.