sábado , 21 dezembro , 2024

Os Incríveis | Crise de identidade, arquitetura pós-guerra e os temas da ACLAMADA animação que completa 20 anos

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Desde sua estreia oficial no circuito cinematográfico com ‘Toy Story’, lá em 1995, a Pixar se consagrou como um dos maiores impérios da sétima arte e entregou alguns dos títulos mais aclamados das últimas décadas – apostando fichas em narrativas originais e inesperadas que ganharam apreço por parte de, basicamente, todo o público. Tivemos, por exemplo, o esperançoso discurso promovido por ‘Ratatouille’, a exploração psíquica das emoções humanas com ‘Divertida Mente’ e a análise crítica da sociedade e do consumo desenfreado com ‘WALL-E’. E foi em 2004 que a companhia daria vida a um de seus títulos mais respeitados: Os Incríveis.

O longa-metragem, dirigido e escrito por Brad Bird, não se configura apenas como um dos projetos mais únicos da Pixar, mas permanece na memória popular como um dos melhores filmes de herói de todos os tempos. Não é surpresa que o título tenha levado para casa a estatueta de Melhor Animação, além de ter conquistado uma indicação na categoria de Melhor Roteiro Original por seu competente e envolvente enredo envolvendo uma família de heróis que é obrigada a manter sua identidade em segredo – até perceberem que, por força maior, deverão se unir para salvar a humanidade de uma extinção em potencial. E isso não é tudo: o sucesso crítico veio acompanhado de uma soberba arrecadação nas bilheterias, alcançando o montante de US$631,6 milhões ao redor do mundo e garantindo uma sequência igualmente impecável (apesar de ser subestimada por parte dos espectadores).



O próprio escopo da obra é diferente de tudo o que já tínhamos visto até então: na trama, o Sr. Incrível (Craig T. Nelson) se vê em um beco sem saída quando ele se torna alvo de uma investigação por parte de promotores e agentes do governo que afirmam que os super-heróis são uma ameaça para a sociedade. Logo, ao lado de sua esposa, Mulher-Elástica (Holly Hunter), e de seu melhor amigo, Gelado (Samuel L. Jackson), aposentam seus trajes e se mudam para o subúrbio para viverem como pessoas “normais”, ficando longe dos problemas e forçados a obedecer a uma lei injusta. Logo, Roberto e Helena Pêra, identidades secretas do Sr. Incrível e da Mulher-Elástica, formam uma família, que inclui os filhos Violeta (Sarah Vowell), Flecha (Spencer Fox) e Zezé, e escondem quem realmente são, por mais complicado que isso seja.

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Um dos primeiros temas a ser tratado pelo enredo é a crise de identidade, encarnada pelo Sr. Incrível. Outrora honrado como um dos maiores “supers” que já existiram, ele agora é confinado a um escritório de uma seguradora, ressentido por passar o resto de sua vida como avaliador de sinistros e não fazendo o mínimo que pode para ajudar a salvar os inocentes. Essa recusa ao cosmos a que pertence agora é força-motriz para uma das primeiras reviravoltas do filme, em que o protagonista é contatado por uma misteriosa agente chamada Mirage (Elizabeth Peña) que o recruta para um trabalho secreto localizado em uma remota ilha no Pacífico. E é a partir daí que a crise identitária ganha uma nova camada, alastrando-se para cada um dos outros personagens e na aparente ruína do Sr. Incrível.

Em contraposição, temos a presença quase matriarcal de Helena, driblando a vida que foi forçada a deixar para trás para focar na felicidade da família dentro das normas impostas – isto é, até que ameaças externas e muito perigosas ameaçam a integridade daqueles que ama. Ela e Beto são frutos de uma mesma época e, de certa maneira, mergulharam em uma resignação compulsória que veio acompanhada ou da mais plena consternação ou de um conformismo alienável. Não é surpresa, pois, que Violeta e Flecha sejam reflexo dessa falta de livre arbítrio e nutram de frustrações para com os pais, assumindo o manto dos heróis que nunca puderam ser quando necessário.

Como é possível ver, a premissa vai muito mais além do que o imaginado e abre espaço para outras incursões que refletem a natureza do ser humano. Para além dos protagonistas, temos a radiante presença de Edna Moda (interpretada por Bird), estilista dos heróis que firmou um império inquebrável e tecnológico como forma de auxiliar aqueles que nos protegem, sendo uma grande defensora da descriminalização dos “supers”; e, é claro, Síndrome (Jason Lee), o psicótico antagonista cujos traumas de infância se transformaram em um intrincado plano de destruir todos os super-heróis de uma vez por todas – uma ramificação da psique humana que, de certa maneira, representa os estágios do luto até se imobilizar numa espécie de barganha vingativa que apenas supre suas necessidades condenáveis.

O design adotado pelos animadores é outro indicativo da narrativa que se desenrola: ao apostar no modernismo do meio de século e nas questões pós-II Guerra Mundial, o time criativo se aproveitou de inúmeros elementos certeiros da arquitetura para auxiliar na jornada dos personagens. Desde os visuais Googie até as fachadas art déco, passando pelos arranha-céus miesianos e pelos móveis corbusianos, é notável como o estilo imagético é de importância ímpar para o filme. Apenas a encargo de exemplificação, podemos pegar o escritório em que Beto trabalha – um amontoado de cubículos compartimentais que ressoam, brevemente, a estrutura de uma colmeia, ignorando a diversidade humana e suas contradições e prezando por uma construção universal que todos são obrigados a obedecer (puxando as críticas delineadas pelo arquiteto Louis H. Sullivan em seu ensaio sobre as leis dos Tall Office Buildings).

Anteriormente dotado de características que o destacava dos outros, Beto agora é restrito a uma normatização depressiva e contínua, enclausurado em um ciclo inescapável de monotonia. Ora, até mesmo a casa onde moram remonta os subúrbios de Levittown, Nova York, com seu mapeamento de zonas e seu escape do caos urbano e capitalista do centro da metrópole – uma saída pseudo-pragmática que, quando colocada com a defesa da nouveau burgeoisie e do acúmulo de riquezas, não serve de muita coisa além de uma crescente frustração frente o falido “sonho americano”. E esse sonho, no longa-metragem, é destinado à recuperação do status que os super-heróis tinham e que lhes foi renegado por uma homogeneização da sociedade.

Vinte anos depois de sua estreia nos cinemas, Os Incríveis permanece como um dos títulos mais detalhadamente pensados do panteão Pixar e envelhece como uma boa garrafa de vinho – mostrando uma cautela artística que é característica indissociável da companhia e sendo redescoberto ano após anos como uma das obras-primas do cinema.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Desde sua estreia oficial no circuito cinematográfico com ‘Toy Story’, lá em 1995, a Pixar se consagrou como um dos maiores impérios da sétima arte e entregou alguns dos títulos mais aclamados das últimas décadas – apostando fichas em narrativas originais e inesperadas que ganharam apreço por parte de, basicamente, todo o público. Tivemos, por exemplo, o esperançoso discurso promovido por ‘Ratatouille’, a exploração psíquica das emoções humanas com ‘Divertida Mente’ e a análise crítica da sociedade e do consumo desenfreado com ‘WALL-E’. E foi em 2004 que a companhia daria vida a um de seus títulos mais respeitados: Os Incríveis.

O longa-metragem, dirigido e escrito por Brad Bird, não se configura apenas como um dos projetos mais únicos da Pixar, mas permanece na memória popular como um dos melhores filmes de herói de todos os tempos. Não é surpresa que o título tenha levado para casa a estatueta de Melhor Animação, além de ter conquistado uma indicação na categoria de Melhor Roteiro Original por seu competente e envolvente enredo envolvendo uma família de heróis que é obrigada a manter sua identidade em segredo – até perceberem que, por força maior, deverão se unir para salvar a humanidade de uma extinção em potencial. E isso não é tudo: o sucesso crítico veio acompanhado de uma soberba arrecadação nas bilheterias, alcançando o montante de US$631,6 milhões ao redor do mundo e garantindo uma sequência igualmente impecável (apesar de ser subestimada por parte dos espectadores).

O próprio escopo da obra é diferente de tudo o que já tínhamos visto até então: na trama, o Sr. Incrível (Craig T. Nelson) se vê em um beco sem saída quando ele se torna alvo de uma investigação por parte de promotores e agentes do governo que afirmam que os super-heróis são uma ameaça para a sociedade. Logo, ao lado de sua esposa, Mulher-Elástica (Holly Hunter), e de seu melhor amigo, Gelado (Samuel L. Jackson), aposentam seus trajes e se mudam para o subúrbio para viverem como pessoas “normais”, ficando longe dos problemas e forçados a obedecer a uma lei injusta. Logo, Roberto e Helena Pêra, identidades secretas do Sr. Incrível e da Mulher-Elástica, formam uma família, que inclui os filhos Violeta (Sarah Vowell), Flecha (Spencer Fox) e Zezé, e escondem quem realmente são, por mais complicado que isso seja.

Um dos primeiros temas a ser tratado pelo enredo é a crise de identidade, encarnada pelo Sr. Incrível. Outrora honrado como um dos maiores “supers” que já existiram, ele agora é confinado a um escritório de uma seguradora, ressentido por passar o resto de sua vida como avaliador de sinistros e não fazendo o mínimo que pode para ajudar a salvar os inocentes. Essa recusa ao cosmos a que pertence agora é força-motriz para uma das primeiras reviravoltas do filme, em que o protagonista é contatado por uma misteriosa agente chamada Mirage (Elizabeth Peña) que o recruta para um trabalho secreto localizado em uma remota ilha no Pacífico. E é a partir daí que a crise identitária ganha uma nova camada, alastrando-se para cada um dos outros personagens e na aparente ruína do Sr. Incrível.

Em contraposição, temos a presença quase matriarcal de Helena, driblando a vida que foi forçada a deixar para trás para focar na felicidade da família dentro das normas impostas – isto é, até que ameaças externas e muito perigosas ameaçam a integridade daqueles que ama. Ela e Beto são frutos de uma mesma época e, de certa maneira, mergulharam em uma resignação compulsória que veio acompanhada ou da mais plena consternação ou de um conformismo alienável. Não é surpresa, pois, que Violeta e Flecha sejam reflexo dessa falta de livre arbítrio e nutram de frustrações para com os pais, assumindo o manto dos heróis que nunca puderam ser quando necessário.

Como é possível ver, a premissa vai muito mais além do que o imaginado e abre espaço para outras incursões que refletem a natureza do ser humano. Para além dos protagonistas, temos a radiante presença de Edna Moda (interpretada por Bird), estilista dos heróis que firmou um império inquebrável e tecnológico como forma de auxiliar aqueles que nos protegem, sendo uma grande defensora da descriminalização dos “supers”; e, é claro, Síndrome (Jason Lee), o psicótico antagonista cujos traumas de infância se transformaram em um intrincado plano de destruir todos os super-heróis de uma vez por todas – uma ramificação da psique humana que, de certa maneira, representa os estágios do luto até se imobilizar numa espécie de barganha vingativa que apenas supre suas necessidades condenáveis.

O design adotado pelos animadores é outro indicativo da narrativa que se desenrola: ao apostar no modernismo do meio de século e nas questões pós-II Guerra Mundial, o time criativo se aproveitou de inúmeros elementos certeiros da arquitetura para auxiliar na jornada dos personagens. Desde os visuais Googie até as fachadas art déco, passando pelos arranha-céus miesianos e pelos móveis corbusianos, é notável como o estilo imagético é de importância ímpar para o filme. Apenas a encargo de exemplificação, podemos pegar o escritório em que Beto trabalha – um amontoado de cubículos compartimentais que ressoam, brevemente, a estrutura de uma colmeia, ignorando a diversidade humana e suas contradições e prezando por uma construção universal que todos são obrigados a obedecer (puxando as críticas delineadas pelo arquiteto Louis H. Sullivan em seu ensaio sobre as leis dos Tall Office Buildings).

Anteriormente dotado de características que o destacava dos outros, Beto agora é restrito a uma normatização depressiva e contínua, enclausurado em um ciclo inescapável de monotonia. Ora, até mesmo a casa onde moram remonta os subúrbios de Levittown, Nova York, com seu mapeamento de zonas e seu escape do caos urbano e capitalista do centro da metrópole – uma saída pseudo-pragmática que, quando colocada com a defesa da nouveau burgeoisie e do acúmulo de riquezas, não serve de muita coisa além de uma crescente frustração frente o falido “sonho americano”. E esse sonho, no longa-metragem, é destinado à recuperação do status que os super-heróis tinham e que lhes foi renegado por uma homogeneização da sociedade.

Vinte anos depois de sua estreia nos cinemas, Os Incríveis permanece como um dos títulos mais detalhadamente pensados do panteão Pixar e envelhece como uma boa garrafa de vinho – mostrando uma cautela artística que é característica indissociável da companhia e sendo redescoberto ano após anos como uma das obras-primas do cinema.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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