domingo , 22 dezembro , 2024

Pose | Os 5 anos de uma das melhores e mais importantes séries do século

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Assim que Ryan Murphy conseguiu construir seu nome na indústria televisiva, utilizou de seus privilégios para dar voz às minorias sociais. Não é nenhuma surpresa que em suas séries, incluindo Glee e American Horror Story, apareçam inúmeros personagens descontruídos e livres de preceitos do entretenimento, com arcos dramáticos complexos e críveis em detrimento dos estereótipos tão conhecidos e condenáveis. Porém, não foi até 2018 que o showrunner abraçou o seu projeto mais ambicioso, ambientado na conturbada década de 1980 nos gueto da metrópole nova-iorquina, colocando em voga todos os tabus e as culturas que se multiplicavam nos escuros becos da marginalização.

Pose, antes de mais nada, é uma série essencial. Não apenas como produto audiovisual, mas também como uma aula de História didática que visa desmantelar a visão reacionária que até hoje acompanha a comunidade LGBTQIA+ e os estigmas sem fundamentos que seus membros são obrigados a carregar. Ao lado de Steve Canals e de seu companheiro usual Brad Falchuck, Murphy ousa mais uma vez dar a cara a tapa em meio à emergência de uma época retrógrada, desmistificando o cosmos em questão e dando mais voz a essa luta contínua: o ano é 1987; o cenário são os ballrooms do Brooklyn; o protagonismo é claro, mas a ênfase recais sobre as personagens transgêneros e sua exclusão até mesmo dentro do grupo ao qual pertencem. Voguingglamourfashion vão de encontro à crescente epidemia do HIV e da AIDS, aos movimentos de repulsa, ao forçoso mergulho no mundo da prostituição – e o resultado é uma via de mão dupla emocionante e extremamente empoderada.



O que sabemos da cultura dos bailes noturnos é meramente documental. Paris is Burning conseguiu nos fornecer uma perspectiva nova, partindo de dentro das lendárias famílias de drag queens que povoavam as festas semanais, mostrando que a arte não era apenas uma forma de expressão, como também um reforço para sua própria existência. A série mergulha ainda mais profundamente nessa ambiência e já começa nos levando para uma sequência hilária, na qual uma das mothers (as mães responsáveis por cuidar de uma pequena família de LGBTs expulsos de casa), a famosa Elektra Abundance (Dominique Jackson), arquiteta um plano para roubar os trajes históricos de um museu e usá-los em uma das apresentações. Murphy, ficando responsável pela direção de vários episódios, faz um ótimo uso de seus maneirismos, incluindo os longos planos, os cortes propositalmente bruscos e os enquadramentos holandeses que parecem criar um universo à parte.

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Eventualmente, uma das filhas de Elektra, Blanca (Mj Rodriguez) se cansa do autoritarismo da mãe e decide sair do grupo, desejando provar sua capacidade de formar uma casa própria e vencê-las em todos os desafios do ball, construindo seu nome dentro da cena drag. O roteiro não poupa explicitações e mistura diálogos ácidos com jargões próprios da comunidade – inclusive, convido vocês a procurarem essas gírias. Com a compreensão, os episódios ficam ainda mais deliciosos de serem aproveitados -, mostrando que a irmandade também encontra obstáculos quando o assunto é vencer. Blanca e Elektra representam forças opostas que, conforme a trama principal se desenrola, mostram ser parte de uma mesma causa, encontrando uma convergência ideológica de tirar o fôlego.

Aqui não há espaço para suprimir assuntos de grande importância. As festividades funcionam como os poucos momentos em que os protagonistas fogem da cruel sociedade em que são obrigados a viver e encontrar os holofotes, sentindo-se pertencentes a alguma coisa. Entretanto, a vida real volta a encontrá-los. As subtramas são incontáveis, mas não pecam em saturação – muito pelo contrário: cada um tem seu momento de glória, seu espaço para ser ouvido. Temos, por exemplo, o caso “romântico” entre Angel (Indya Moore) e Stan (Evan Peters), denunciando o falso moralismo das famílias tradicionais norte-americanas e dando espaço para a criação de laços que existiam naquela época, mas eram ofuscados pela compulsória segregação; a luta pela autoaceitação de Damon (Ryan Jamaal Swain), expulso de casa aos dezessete anos, acolhido por Blanca e agora buscando o sonho de se tornar um bailarino profissional; as rixas e as traições entre Lil Papi (Angel Bismark Curiel) e Lemar (Jason A. Rodriguez).

Não há uma história a ser contada. Existem várias. Infinitas. Não é à toa que são as narrativas partem daqueles que têm voz para contá-las – aliás, esta é a série com maior números de transgêneros protagonistas de todos os tempos em uma produção audiovisual. Eles estão ali para colocar em cena o que foi apagado e estigmatizado com o tempo, livrando-se de amarras distorcidas para um bem maior. E é justamente por isso que a trama a mais conversar conosco resida na construção do apresentador e estilista-amador Pray Tell (Billy Porter). Além de manter uma atmosfera de competição semana após semana, ele lida com o namorado à beira da morte devido a todos os químicos que toma, bem como aceitar o recente diagnóstico de HIV. Ao lado de Blanca, os dois criam mágica em cada uma da sequências que estrelam, trazendo como pauta tudo o que a comunidade sofria naquela época – e ainda sofre.

Não é apenas nesse escopo que a série brilha: ao lado de um time extremamente competente, os criadores fazem questão de mostrar os dois lados da moeda. A paleta de cores vibrantes, chamativa, perscrutada pelos chiffons esvoaçantes e saltos altos, entra em choque constante quando posta lado ao lado à vida real, mecânica, desbotada, movida pelo cinza e pelo cobre. Até mesmo as emoções parecem se perder no dia a dia, engolfadas pela necessidade de seguir os padrões impostos e reencontrando um momento para respirar conforme a noite cai: até mesmo o uso das luzes neon difusas contribui para deixar claro que há muito mais do que nossos olhos podem ver.

Pose’ é o tapa na cara da sociedade, e os motivos não se resumem apenas a esse breve texto. Há muito a ser discutido sobre o show – e o anúncio de sua segunda temporada deixa ainda mais claro a necessidade de histórias contadas por pessoas de verdade e tendo a voz que sempre quiseram para expor seus medos, suas inseguranças e, principalmente, sua luta.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Assim que Ryan Murphy conseguiu construir seu nome na indústria televisiva, utilizou de seus privilégios para dar voz às minorias sociais. Não é nenhuma surpresa que em suas séries, incluindo Glee e American Horror Story, apareçam inúmeros personagens descontruídos e livres de preceitos do entretenimento, com arcos dramáticos complexos e críveis em detrimento dos estereótipos tão conhecidos e condenáveis. Porém, não foi até 2018 que o showrunner abraçou o seu projeto mais ambicioso, ambientado na conturbada década de 1980 nos gueto da metrópole nova-iorquina, colocando em voga todos os tabus e as culturas que se multiplicavam nos escuros becos da marginalização.

Pose, antes de mais nada, é uma série essencial. Não apenas como produto audiovisual, mas também como uma aula de História didática que visa desmantelar a visão reacionária que até hoje acompanha a comunidade LGBTQIA+ e os estigmas sem fundamentos que seus membros são obrigados a carregar. Ao lado de Steve Canals e de seu companheiro usual Brad Falchuck, Murphy ousa mais uma vez dar a cara a tapa em meio à emergência de uma época retrógrada, desmistificando o cosmos em questão e dando mais voz a essa luta contínua: o ano é 1987; o cenário são os ballrooms do Brooklyn; o protagonismo é claro, mas a ênfase recais sobre as personagens transgêneros e sua exclusão até mesmo dentro do grupo ao qual pertencem. Voguingglamourfashion vão de encontro à crescente epidemia do HIV e da AIDS, aos movimentos de repulsa, ao forçoso mergulho no mundo da prostituição – e o resultado é uma via de mão dupla emocionante e extremamente empoderada.

O que sabemos da cultura dos bailes noturnos é meramente documental. Paris is Burning conseguiu nos fornecer uma perspectiva nova, partindo de dentro das lendárias famílias de drag queens que povoavam as festas semanais, mostrando que a arte não era apenas uma forma de expressão, como também um reforço para sua própria existência. A série mergulha ainda mais profundamente nessa ambiência e já começa nos levando para uma sequência hilária, na qual uma das mothers (as mães responsáveis por cuidar de uma pequena família de LGBTs expulsos de casa), a famosa Elektra Abundance (Dominique Jackson), arquiteta um plano para roubar os trajes históricos de um museu e usá-los em uma das apresentações. Murphy, ficando responsável pela direção de vários episódios, faz um ótimo uso de seus maneirismos, incluindo os longos planos, os cortes propositalmente bruscos e os enquadramentos holandeses que parecem criar um universo à parte.

Eventualmente, uma das filhas de Elektra, Blanca (Mj Rodriguez) se cansa do autoritarismo da mãe e decide sair do grupo, desejando provar sua capacidade de formar uma casa própria e vencê-las em todos os desafios do ball, construindo seu nome dentro da cena drag. O roteiro não poupa explicitações e mistura diálogos ácidos com jargões próprios da comunidade – inclusive, convido vocês a procurarem essas gírias. Com a compreensão, os episódios ficam ainda mais deliciosos de serem aproveitados -, mostrando que a irmandade também encontra obstáculos quando o assunto é vencer. Blanca e Elektra representam forças opostas que, conforme a trama principal se desenrola, mostram ser parte de uma mesma causa, encontrando uma convergência ideológica de tirar o fôlego.

Aqui não há espaço para suprimir assuntos de grande importância. As festividades funcionam como os poucos momentos em que os protagonistas fogem da cruel sociedade em que são obrigados a viver e encontrar os holofotes, sentindo-se pertencentes a alguma coisa. Entretanto, a vida real volta a encontrá-los. As subtramas são incontáveis, mas não pecam em saturação – muito pelo contrário: cada um tem seu momento de glória, seu espaço para ser ouvido. Temos, por exemplo, o caso “romântico” entre Angel (Indya Moore) e Stan (Evan Peters), denunciando o falso moralismo das famílias tradicionais norte-americanas e dando espaço para a criação de laços que existiam naquela época, mas eram ofuscados pela compulsória segregação; a luta pela autoaceitação de Damon (Ryan Jamaal Swain), expulso de casa aos dezessete anos, acolhido por Blanca e agora buscando o sonho de se tornar um bailarino profissional; as rixas e as traições entre Lil Papi (Angel Bismark Curiel) e Lemar (Jason A. Rodriguez).

Não há uma história a ser contada. Existem várias. Infinitas. Não é à toa que são as narrativas partem daqueles que têm voz para contá-las – aliás, esta é a série com maior números de transgêneros protagonistas de todos os tempos em uma produção audiovisual. Eles estão ali para colocar em cena o que foi apagado e estigmatizado com o tempo, livrando-se de amarras distorcidas para um bem maior. E é justamente por isso que a trama a mais conversar conosco resida na construção do apresentador e estilista-amador Pray Tell (Billy Porter). Além de manter uma atmosfera de competição semana após semana, ele lida com o namorado à beira da morte devido a todos os químicos que toma, bem como aceitar o recente diagnóstico de HIV. Ao lado de Blanca, os dois criam mágica em cada uma da sequências que estrelam, trazendo como pauta tudo o que a comunidade sofria naquela época – e ainda sofre.

Não é apenas nesse escopo que a série brilha: ao lado de um time extremamente competente, os criadores fazem questão de mostrar os dois lados da moeda. A paleta de cores vibrantes, chamativa, perscrutada pelos chiffons esvoaçantes e saltos altos, entra em choque constante quando posta lado ao lado à vida real, mecânica, desbotada, movida pelo cinza e pelo cobre. Até mesmo as emoções parecem se perder no dia a dia, engolfadas pela necessidade de seguir os padrões impostos e reencontrando um momento para respirar conforme a noite cai: até mesmo o uso das luzes neon difusas contribui para deixar claro que há muito mais do que nossos olhos podem ver.

Pose’ é o tapa na cara da sociedade, e os motivos não se resumem apenas a esse breve texto. Há muito a ser discutido sobre o show – e o anúncio de sua segunda temporada deixa ainda mais claro a necessidade de histórias contadas por pessoas de verdade e tendo a voz que sempre quiseram para expor seus medos, suas inseguranças e, principalmente, sua luta.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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