Mesmo em 2024, é notável como existe uma resistência considerável por parte do próprio público brasileiro no tocante a produções nacionais. Há um estigma aparentemente inescapável de que o cenário do entretenimento apenas entrega comédias-pastelão ou novelas melodramáticas – o que sabemos que é mentira em dois âmbitos muito claros: no primeiro, é óbvio que temos produções voltadas mais para construções artísticas que refletem a habilidade inegável dos cineastas e dos atores brasileiros; segundo, comédias e melodramas são muito bem-vindos e costumam ajudar a fomentar esse escopo do entretenimento das mais diversas maneiras. E, como forma de continuar a mostrar que nossa arte deve ser respeitada e apreciada em cada um dos aspectos, a Netflix nos entregou hoje, 05 de julho, a série ‘Pedaço de Mim’.
Estrelada por Juliana Paes, Vladimir Brichta, Felipe Abib e grande elenco, a produção narra uma intrigante história centrada em Liana (Paes), uma terapeuta ocupacional que tem o desejo de construir uma família ao lado do marido, Tomás (Brichta). Entretanto, ao descobrir que ele a traiu, Liana vê seus sonhos serem varridos para debaixo do tapete e, em um ímpeto de se vingar do que aconteceu, ela resolve sair com a melhor amiga para uma balada e acaba se envolvendo com o irmão dela, Oscar (Abib). Depois de ser induzida a ingerir uma substância entorpecente, Oscar abusa dela, aproveitando de sua vulnerabilidade.
Liana, então, descobre que Oscar não usou proteção ao forças as relações sexuais – e isso não é tudo: Tomás acaba sofrendo um acidente de bicicleta, compelindo a protagonista a perdoá-lo e a trazê-lo de volta para casa. Liana engravida de gêmeos, mas o período em que isso aconteceu bate com a mesma época em que foi estuprada por Oscar. Ela, pois, decide fazer um teste de paternidade para checar de quem são os filhos – e um caso inesperado cai sobre ela: um dos gêmeos é de Tomás, enquanto o outro é de Oscar. A partir daí ela vê sua vida virar de cabeça para baixo, não sabendo lidar com as informações e incapaz de tomar uma decisão clara que não destrua tudo aquilo que ela sempre quis, sendo engolfada em um vórtice de ansiedade e de medo que dita toda a atmosfera do enredo.
A princípio, é preciso notar todo o background da obra. ‘Pedaço de Mim’ seria lançada como a primeira novela da gigante do streaming, mas os planos mudaram e ela foi remodelada como uma série de longos dezessete capítulos que arrancam os melhores trabalhos de seu poderoso elenco e até mesmo da equipe por trás do projeto. A ambientação e a estrutura técnica seguem os passos novelescos, mas cada diálogo e cada sequência é embebida em uma preocupação cinemática de tirar o fôlego – seja na escolha certeira de uma paleta de cores que preza pela melancolia, pela letargia e pelos múltiplos conflitos sociais que insurgem nos capítulos, seja no profundo desenvolvimento dos arcos.
A criadora Ângela Chaves, auxiliada por um time de extrema habilidade artística, sabe como delinear as importantes temáticas trazidas. De um lado, há toda a psicologia envolvida na personagem principal, permitindo que Paes entregue, de longe, a melhor atuação de sua carreira ao navegar pelas problemáticas que enfrenta e pelos traumas que carrega – incluindo uma potente cena no segundo episódio que deixa qualquer espectador arrepiado dos pés à cabeça. Ela divide os holofotes com a visceral entrega de Brichta, que traz elementos aplaudíveis já demonstrados no aclamado ‘Bingo – O Rei das Manhãs’, em um conflito interno que inclui a corrupção jurídica defendida pelo pai e um casamento a ponto de irromper em tragédia (e seu desconhecimento sobre a gravidez da esposa de cara); Abib encarna o odioso Oscar em uma diabólica performance, sendo responsável pela balada a que Liane vai e acobertando o abuso constante de outras mulheres, bem como um esquema de tráfico de drogas que reflete seu caráter condenável.
Como se não bastasse, esses temas são acompanhados de outras incursões que envolvem o núcleo de Silvia (Paloma Duarte), irmã de Tomás, que lida com uma doença degenerativa que está se alastrando em velocidade assustadora em seu filho, enquanto posa como uma das poucas aliadas de Liane ao descobrir o que aconteceu.; temos a questão do abuso sexual e da conivência policial contra esses casos – algo que faz sentido dentro da época em que a narrativa se esquadrinha, meados dos anos 2000; e uma necessidade de amparo social frente à questão da maternidade que ainda não tinha a devida atenção e que desperta no público uma reflexão provocativa.
É claro que ‘Pedaço de Mim’ carrega alguns problemas de ritmo, mas nada que consiga ofuscar o incrível trabalho por trás e à frente das câmeras. As fortes atuações são a força-motriz da série e, por mais que Duarte e sua equipe não consigam se esquivar das fórmulas das novelas, isso não impede que sejamos arrastados para um ambicioso drama que tem tudo para se tornar um dos melhores do ano.