Cuidado: possíveis spoilers à frente.
O texto a seguir discorre sobre os dois primeiros episódios da temporada.
É possível contar nos dedos as produções literárias que estendem seu legado até os dias de hoje – mas, sem sombra de dúvida, uma das sagas mais importantes da história é ‘O Senhor dos Anéis’. Responsável por influenciar, bem, basicamente qualquer autor que tenha vindo depois de J.R.R. Tolkien, a obra foi construída de forma tão intrincada que serve de inspiração arquetípica para a insurgência de diversos motes fantásticos da contemporaneidade, desde os vistos nos escritos de J.K. Rowling e George R.R. Martin até o sombrio universo delineado por Neil Gaiman (não é surpresa, pois, que os romances de Tolkien sejam estudados em cursos próprios dentro de faculdades ao redor do mundo).
Em 2001, quase seis décadas e meia depois da publicação do volume inicial (‘A Sociedade do Anel’), o famoso cineasta Peter Jackson assumiu a difícil missão de adaptar essa épica aventura para as telonas – e o resultado não poderia ser diferente: além do sucesso de bilheteria, os longas-metragens foram aplaudidos pelos especialistas e pelo público, conquistando inúmeros prêmios e sendo consagrados como alguns dos melhores filmes de todos os tempos. Agora, está na hora de retornarmos para a Terra-Média com a ambiciosa série ‘O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder’, supervisionada pela Amazon Studios.
Ficar com um pé atrás era algo natural, ainda mais levando em conta a memória afetiva da trilogia original e a decepção com a saga ‘O Hobbit’, que não conseguiu atender às expectativas e se valeu demais da paixão pela jornada de Frodo e seus companheiros. Entretanto, para a felicidade de todos, o saldo da obra é mais que positivo e já pode ser considerada uma das grandes investidas do ano – e que deve ser apreciada em sua completude. Desenvolvida por J.D. Payne e Patrick McKay, cada engrenagem é forjada com cautela magnífica, demonstrando respeito pelo cosmos assinado por Tolkien e até mesmo pelo legado deixado por Jackson. Enquanto a narrativa bebe das fórmulas da Jornada do Herói em estágios diferentes (e não num sentido pejorativo, pelo contrário), o escopo imagético é de tirar o fôlego, talhado em um espetáculo visual irretocável.
Considerando que ‘Os Anéis de Poder’ configura-se como uma série, os episódios conseguem se desenrolar em pequenas obras-primas de uma hora – e levam o tempo necessário para que as múltiplas tramas deem os primeiros passos e premeditem um desenrolar instigante e recheado de reviravoltas. É óbvio que, considerando que estes são os dois capítulos de abertura, apenas alguns segredos são revelados e vários outros são cultivados para não nos deixar perder essa nostálgica sensação – ainda mais com a aparição contundente de Morfydd Clark como a elfa guerreira Galadriel. Diferente da etérea caracterização vista nos filmes (e encarnada pela icônica Cate Blanchett), a Galadriel que protagoniza o show derivado é movida por uma sede de vingança e de justiça contra as forças das trevas que tiraram a vida de seu irmão e que ameaçam destruir a bondade que existe na Terra-Média.
Clark faz um trabalho notável como a personagem, mas não é única a nos roubar a atenção: como mencionado, são vários os protagonistas e coadjuvantes a povoarem os quatro cantos do universo tolkiano e todos têm seu momento de glória. Temos o divertido relacionamento entre o elfo Elrond (Robert Aramayo) e Durin IV (Owain Arthur), príncipe da cidade dos anões Khazad-dûm, que rende uma das melhores e mais honestas sequências da temporada; temos a curiosidade sobressalente da jovem harfoot Nori (Markella Kavenagh), que nunca se contentou com o cotidiano advertido de seus conterrâneos e sempre buscou uma aventura que a levasse para conhecer o mundo; temos o enlace proibido entre o elfo Arondir (Ismael Cruz Córdova) e a humana Bronwyn (Nazanin Boniadi), que emula temáticas similares vistas nas obras originais; e, é claro, temos a menção indireta aos Anéis do Poder, que serão, em breve, forjados pelo poderoso Celebrimbor (Charles Edwards), que os fãs podem se recordar do jogo ‘Shadow of Mordor’.
Nada disso viria à tona sem um realizador competente por trás das câmeras e que conseguisse trazer o mais detalhado aspecto da Terra-Média às telinhas – e é graças a J.A. Bayona, nome por trás do subestimado ‘Sete Minutos Depois da Meia-Noite’, que os episódios se tornam realidade. O diretor espanhol já demonstrou ter um olho crítico para obras de fantasia, utilizando uma sólida bagagem para celebrar aqueles que o inspiraram, mas sem deixar suas peculiaridades de lado. Bayona, aliado ao incrível time criativo da Amazon Studios, tem o espaço necessário para retratar a imensidão da natureza contra a pequenez da ambição dos personagens (cujo contraste é reiterado pela sensação de infinitude) e a eterna batalha entre o bem e o mal (não no sentido maniqueísta, essencialmente, mas na beligerância externa e interna de cada persona).
O semblante emblemático e oscilante entre o pitoresco e o epopeico é outro elemento resgatado por Bayona, Payne e McKay, motivo pelo qual temos grandiosas construções cênicas que variam em tom, atmosfera e forma numa fluidez constante e reverberante. É dessa forma que, ainda que envolvida em uma névoa de originalidade com potencial aplaudível, a série revela ser uma espécie de irmã mais nova da saga literária e das incursões fílmicas – jogando easter eggs para os fãs de longa data e convidando os recém-chegados a adentrar essa extraordinária viagem.
‘O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder’ é mais do que poderíamos esperar de um título que se promoveria a expandir o universo de J.R.R. Tolkien. Mesmo restrito apenas a dois episódios, a obra sabe como nos cativar e deixar um gostinho de quero mais para garantir nossa fidelidade e nos emocionar pouco a pouco.