Atenção: o texto a seguir aborda os dois primeiros episódios da série.
E pluribus unum.
“De muitos, um”. O centenário lema em latim dos Estados Unidos é uma das máximas mais conhecidas e que melhor representam o ideário de união e de patriotismo do país – seja para o bem, seja para o mal. Utilizado à época da unificação das treze colônias após a Guerra da Independência, e selecionado pelo primeiro comitê do Grande Selo que atravessou gerações e permanece fincado na cultura estadunidense. E, enquanto seu significado é óbvio, ele torna-se irônico à medida que as disparidades no país ganham mais espaço dia após dia, fragmentando-se em grupos sociais em vez de focar na unificação.
De maneira muito inteligente e centrada na ironia, Vince Gilligan resolveu se aproveitar desse perigoso barril de pólvora que se acendeu nos EUA e em vários países ao redor do planeta para construir uma sátira de suspense que ganhou o nome de ‘Pluribus’ (estilizado como ‘PLUR1BUS’). Gilligan, conhecido por seu trabalho em uma das melhores séries da história, ‘Breaking Bad’, sempre soube como explorar a condição humana em uma ambientação inóspita e hostil – e não deixaria de empregar uma identidade única ao mais novo projeto da Apple TV, cujos dois primeiros episódios já estão disponíveis para os assinantes.

Logo de cara, o realizador consegue construir uma atmosfera tensa e quase opressora com apenas alguns segundos de cena, em que mostra cientistas militares captando uma frequência sonora que está a 600 anos-luz e que parece trazer instruções. Pouco depois, somos apresentados a Carol Sturka (Rhea Seehorn), uma escritora de best-sellers de fantasia que está exaurida da vida de vazio que leva, por mais que seja coroada com as glórias de uma popularidade inegável. Acompanhada de sua melhor amiga e agente Helen (Miriam Shor), Carol vê sua vida virar de cabeça para baixo quando, voltando para casa em Albuquerque, Helen e todos a sua volta começam a ter uma espécie de ataques epiléticos inexplicáveis e que deixam a escritora sem saber o que fazer.
Levando-a ao hospital, Carol percebe que é tarde demais quando Helen dá seu último suspiro. E, como se não bastasse, a onde de ataques cessa de uma hora para outra, trazendo boa parte das pessoas de volta que, de alguma maneira, parecem conhecê-la. Acontece que a frequência em questão era um código genético para uma espécie de “vírus” ou um organismo extraterrestre cujo principal objetivo é criar uma unidade entre os humanos, como parte de uma única entidade que, ao mesmo tempo, é visível e invisível. Tomando controle das mentes humanas e transformando as consciências em um coletivo cultural em comum livre de divisões e pautado na felicidade plena – o que lança Carol em uma batalha para impedir que a essência humana seja extinta para sempre.

Gilligan arquiteta uma grande ópera pós-apocalíptica recheada de diálogos eximiamente bem escritos e atuações de tirar o fôlego – e, de maneira categórica, isso não é nenhuma surpresa. O criador é responsável por algumas das melhores obras do cenário audiovisual contemporâneo, conseguindo unir histórias a princípio convencionais em uma transmutação de expectativas que torna a nossa experiência única e instigante. E isso não seria diferente com ‘Pluribus’: desde a certeira decisão do título às referências a obras clássicas que tratam sobre o fim da civilização moderna e conspirações políticas, cada engrenagem funciona com precisão e nos deixa envolvidos o bastante para querer devorar cada sequência e cada reviravolta que nos aguarda.
Responsável pela direção e pelo roteiro dos dois primeiros episódios, Gilligan tem plena certeza do que que fazer com sua mais nova obra-prima televisiva e conduz cada movimento de câmera com maestria aplaudível – apostando em homenagens sutis a Alfred Hitchcock e ao cinema neo-noir enquanto deixa que o drama e o suspense acompanhem a jornada de Carol. Afinal, não é fácil ser imune a um “vírus” que não busca nada além da paz e da felicidade, emergindo como a “pessoa mais infeliz do planeta”, como já nos foi mostrado na sinopse. E, nesse tocante, Seehorn, que trabalhou com o realizador em ‘Breaking Bad’, domina as cenas com uma atuação que praticamente lhe garantiu presença na próxima temporada de premiações.

Um dos elementos que mais chama a atenção dos espectadores é a forma como a atmosfera opressiva e agourenta é pincelada com incursões satíricas que se espalham pelos diálogos e até mesmo pela forma como o relacionamento entre os personagens é construído. Através de uma genial celebração da criação artística, Gilligan arquiteta discussões sobre a tênue linha que separa a união e a destruição, colocando Carol como um estandarte que entende a necessidade dessa “comunhão mandatória” que põe um fim nas tendências autodestrutivas do ser humano, mas se vê num impasse por defender a individualidade e a essência que torna cada pessoa única. E, elevada à enésima potência, transformar o mundo no que poderia muito bem ser um episódio de ‘Rick e Morty’, Gilligan transforma ironias inteligentes na mais pura arte.
‘Pluribus’ já prova ser uma das melhores séries do ano com apenas dois episódios – e tem potencial para se tornar um dos títulos mais espetaculares da década caso mantenha esse altíssimo nível. Mais do que um arauto para o storytelling, a produção reitera o talento inato de Vince Gilligan e de Rhea Seehorn com uma declaração testamentária cujo impacto é quase palpável.