“Deus não existe!”. É com esta frase impactante que Anthony Perkins abre seu filme de estreia como diretor. A cena em questão revela uma freira noviça que se encontra em estado suicida no topo de uma torre de sino de igreja. A introdução termina com a queda para morte de uma madre superiora que estava tentando trazer a noviça de volta à razão. O momento é clara referência ao mentor de Perkins, Alfred Hitchcock, em especial Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958). Aqui falamos de Psicose 3 (1986), que completa 35 anos de seu lançamento em 2021 e está atualmente em cartaz como parte do acervo da Netflix – se tornando uma peça essencial para a curiosidade dos cinéfilos e aficionados por suspense e terror.
A verdade é que a maioria dos cinéfilos descarta completamente da existência as continuações do clássico atemporal Psicose (1960), do mestre Alfred Hitchcock. Para a maioria, Psicose é uma obra única, com começo, meio e fim, e cuja história começa e termina no filme contido do mestre do suspense. Justo. Por anos eu agi da mesma forma, considerando as sequências indignas e meros caça-níqueis. Porém, um segundo pensamento é o de que toda e qualquer produção cinematográfica é uma forma de arte; e seus realizadores possuem uma proposta por trás de cada trabalho. A arte igualmente ali existe e quem ama verdadeiramente ela, pode ao menos praticar um exercício de tentar compreendê-la. Ou os motivos que levaram à sua confecção.
Existem também os que sequer tinham conhecimento de que Psicose de fato gerou continuações. E não apenas uma, mas três sequências. A primeira, Psicose 2 (1983), lançada 23 anos depois do original, é considerada a melhor delas. É basicamente o clássico de Hitchcock trazido para os anos 1980, ou seja, mesmo ainda apostando em elementos altamente eletrizantes de suspense, funciona muito como “cria” de sua década. Aqui, porém, iremos adereçar a segunda continuação Psicose 3, lançada no dia 2 de julho de 1986 – três anos após o sucesso de Psicose 2 que, com um orçamento de US$5 milhões, levou o público aos montes ao cinema arrecadando mais de US$34 milhões de bilheteria. Assim, a continuação da história de Norman Bates, ainda mais depois do gancho deixado ao desfecho do anterior, era uma jogada óbvia da Universal Pictures, estúdio detentor dos direitos da franquia.
Norman Bates, o psicopata vivido por Anthony Perkins, definitivamente se tornou um dos maiores personagens da história do cinema, e um de seus maiores vilões também. Capitalizar em seu sucesso foi uma decisão acertada, ao menos num aspecto financeiro. É interessante perceber como mais de vinte anos passados da obra original, o personagem clássico continuou despertando interesse do grande público, que fez da primeira sequência, um sucesso absoluto.
O terceiro filme marcaria a estreia do ator Anthony Perkins como diretor. Como dito, Perkins foi transformado num nome reconhecível na indústria de Hollywood devido ao filme do colega Hitchcock. Nada mais justo do que em sua estreia como realizador, Perkins homenageasse o grande diretor, falecido em 1980. Ao lado do roteirista Charles Edward Pogue, que no mesmo ano entregaria o bem sucedido roteiro do remake de A Mosca (1986), de David Cronenberg, Perkins homenageia Hitchcock logo em sua cena de abertura, remetendo o cenário e a queda de um personagem para a morte de um lugar alto, ao citado Um Corpo que Cai. É curioso pensar na abertura de um filme de Psicose com outro filme do clássico cineasta – é como se duas de suas obras se encontrassem num único universo. Porém, assim como o detetive Scottie Ferguson (de James Stewart), a personagem Maureen Coyle (Diana Scarwid), a tal freira noviça, fica traumatizada pelo evento durante toda a projeção.
O que acomete Maureen, no entanto, não é o medo de altura, mas sim a perda da fé em Deus e em sua religiosidade. Perdida e basicamente escorraçada do convento, ela vai passando por etapas de provação. A primeira, quando aceita carona do pervertido Duane Duke (Jeff Fahey) e quase é estuprada pelo sujeito sórdido. Depois, ao se hospedar no famoso Bates Motel, regido novamente pelo Norman de Perkins, logo na primeira noite, quando de cara viria a se tornar vítima de sua “mãe”, algo inusitado acontece, que subverte de forma criativa a “jogada ensaiada”.
Antes devemos dizer que a personagem Maureen Coyle foi criada para ser um espelhamento da clássica Marion Crane, a mulher no chuveiro na cena icônica de Psicose, interpretada por Janet Leigh. Até mesmo as iniciais repetidas, M.C., são criadas como forma de provocação para Norman, além é claro, da similaridade física de ambas as mulheres – loiras, de cabelo curtinho. Norman havia desejado Marion, e sua “mãe” a elimina. O mesmo ocorreria com Maureen, não fosse por uma guinada interessante. Antes que a mulher pudesse levar a primeira facada, ao abrir a cortina do chuveiro, a “mãe” percebe que Maureen chegou antes na investida de tirar sua própria vida: está deitada na banheira cheia, banhada pelo próprio sangue após ter cortado os pulsos, num ato extremo de desespero. A cena é muito boa por dois aspectos. Primeiro, porque a visão da violência prévia surpreende a “mãe”, que é automaticamente expurgada do corpo de Norman e de sua “missão”. E segundo, porque em seu estado de “limbo” entre a vida e a morte, Maureen vê naquela figura diante dela, a virgem Maria salvadora – em mais uma analogia religiosa.
Norman de fato a salva, e a leva para o hospital. Assim, a mulher agora passa a ter gratidão pelo seu quase assassino, enquanto trabalha para reconstituir sua fé. Ao mesmo tempo, o roteiro trabalha aspectos não tão interessantes da trama, como a participação mais efetiva do degenerado Duke na história – que termina aceitando um trabalho no mesmo Bates Motel -, e de uma repórter “abelhuda” chamada Tracy Venable, papel de Roberta Maxwell.
Uma das questões que chama atenção negativamente em Psicose 3 é seu mergulho vertiginoso no teor lascivo que eram os filmes de terror slasher dos anos 80. Tudo bem que quando o primeiro Psicose foi lançado lá em 1960, Alfred Hitchcock foi muito acusado de trabalhar com um material vulgar e abaixo de seu talento. Era como um “mergulho no lixo” para o mestre do suspense. Repelindo essa negatividade, mesmo dono de conteúdo para lá de mórbido, o terror de Hitchcock se tornou seu filme mais emblemático. E talvez essa fosse a proposta do discípulo Anthony Perkins aqui – fazer seu próprio filme de “baixo calão”.
Psicose 3 aposta no sexo e nudez, providos por uma atriz especialista neste tipo de teor: Juliette Cummins. A bela atriz ruiva aparece pouco no filme, no papel da prostituta Red, que Duke pega num bar. Mas sua cena é o que aproxima Psicose 3 de vez aos slasher da época, como se descesse de vez do pedestal que ainda mantinha até o encerramento do segundo filme. Cummins participou, por exemplo, de produções “B” de terror, como Massacre 2 (1987) e Sexta-Feira 13 – Parte 5: Um Novo Começo (1985). E aqui, além de topar marcar a franquia com sua cena de nudez, ainda realiza uma cena sem uso de dublê, ao ser jogada para fora do quarto de Duke nua – podemos notar que é a própria atriz sendo arremessada de forma violenta e se estatelando no chão. Além da nudez de Cummins, Perkins também queria filmar o nu frontal de Jeff Fahey na cena tórrida entre Duke e Red. O ator, porém, não se sentiu confortável para tal e o trecho foi reconfigurado com Fahey usando duas luminárias para esconder suas partes íntimas. Esteticamente, rendeu algo mais “artístico”.
Antes de vir a falecer aos 60 anos, pouco tempo após o lançamento do quarto filme (em 1990), Anthony Perkins, que era um ator assumidamente gay na indústria, revelou em uma entrevista que não estava apto para a tarefa de direção neste filme. Levando em conta que esta era sua estreia atrás das câmeras. Apesar de na época ter tirado “onda” com parte de sua equipe técnica ao exibir seu conhecimento com os equipamentos de filmagens, Perkins afirmou nesta entrevista específica que seu conhecimento técnico era limitado. Anthony Perkins descobriu que era soro positivo e que havia contraído HIV, durante as filmagens de Psicose 3.
O ator até tentou trazer o diretor de Psicose 2, Richard Franklin, para co-dirigir o terceiro filme ao seu lado, sem sucesso. Curiosamente, uma das fontes de inspiração para o clima que Perkins desejava imprimir ao terceiro longa, além dos filmes de Hitchcock, é claro, foi Gosto de Sangue (Blood Simple, 1984), primeiro filme dos irmãos Coen. Antes da produção começar, Perkins inclusive fez questão de levar todo o elenco e a equipe técnica para uma sessão da obra dos irmãos Joel e Ethan. E isso cria toda uma nova analogia interessante de ligação entre essas obras e universos.
No fim das contas, Psicose 3 se tornou o irmão “trash” dos outros dois filmes anteriores, sem conseguir emular sequer o teor detetivesco e repleto de reviravoltas que foi a segunda entrada nesta franquia. Mas não foi por não tentar. No texto original providenciado por Pogue, o roteirista revelou que a trama traria Duke como um imitador, reproduzindo os crimes de Norman por ser obcecado pelo psicopata; e Maureen, ao invés de noviça, seria uma psiquiatra neurótica, enviada para substituir o Dr. Raymond do segundo filme – esse papel havia sido planejado originalmente para Janet Leigh, a vítima do chuveiro no primeiro filme, reprisando na franquia em outro papel. No fim das contas, os executivos da Universal vetaram esta narrativa afirmando que Norman deveria ser o assassino da vez, e que Leigh não era a escolha certa para o papel.
No fim das contas, com os desejos dos executivos atendidos, Psicose 3 (1986) viveu para se tornar o capítulo menos rentável da franquia, arrecadando um pouco mais de US$14 milhões em bilheteria e vindo a encerrar a trajetória da série no cinema – com o quarto episódio sendo lançado direto na TV. De qualquer forma, o longa ressurgiu como cult (assim como os “irmãos” que continuam a jornada de Norman Bates após o clássico absoluto original), tendo seus adeptos. Mesmo que num aspecto de mera curiosidade por ser herdeiro do que é simplesmente o melhor suspense do cinema, Psicose 3 é uma boa pedida para este dia das bruxas na Netflix.