quarta-feira , 20 novembro , 2024

Qual o contexto histórico-social de ‘Coringa’?

Continuando nossa análise sobre o longa de Todd Phillips, hoje viemos fazer uma contextualização histórico-social de ‘Coringa’, para esclarecer os pontos nos quais a ficção se aproximou de nossa realidade – e que, por isso, acabou gerando incômodo em muitas pessoas.

É importante lembrar que tanto a história do Batman quanto a do Coringa é ficção. Mesmo assim, é uma história que se calca na realidade, no que acontece com as pessoas – especialmente aquelas que viviam e vivem em Nova York, que, sabemos, é onde Gotham City se espelha.



Lembremos, antes de tudo, que a primeira HQ do Batman surgiu em 1940, e que a primeira aparição do Coringa na trama do Homem-Morcego ocorreu já nesta edição inaugural.  Bom, o que estava acontecendo no mundo nessa época? A II Guerra Mundial tinha acabado de começar; a bolsa de Nova York tinha acabado de quebrar seriamente, deixando milhares de acionistas pobres da noite para o dia; também é a época do auge do Fordismo, que era o modelo de produção em massa baseado na reprodução precisa e no barateamento do custo de fabricação dos carros Ford, o que o tornou acessível à classe média; e é também o auge da modernidade no mundo ocidental, potencializando o modelo capitalista como sistema econômico em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, o que consequentemente sufocou a população; o país ainda tentava se recuperar da Grande Depressão, e com uma população superior a 10 milhões de pessoas, sendo a grande maioria imigrantes irlandeses, italianos e judeus fugidos das guerras na Europa e buscando uma oportunidade de vida, que desembarcaram em Nova York sem nada nos bolsos.

Esse é o cenário de criação da história do Batman e do Coringa – que, como vocês podem ver, não mudou muito quase cem anos depois. E esse é o trunfo da história contada por Todd Phillips em seu filme: o ‘Coringa’ que ele apresenta é extremamente atual, ainda que ela se passe no final de 1979, início dos anos 80. Contextualizando, após o fim da II Guerra Mundial, em 1945, Nova York sofreu um enorme impacto econômico com sua crescente população, mas incapaz de manter o aumento salarial e de empregos; com a desaceleração econômica, a produção em massa da Ford quebrou, o que gerou ainda mais desemprego. Apesar do clima alegre da disco music, a taxa de criminalidade e o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou drasticamente.

Tudo isso está refletido na figura de Thomas Wayne apresentada no filme: um cara que não quer largar o osso, que já perdeu muito dinheiro nas últimas décadas, mas que continua poderoso e inabalável, acumulando fortuna para dar conforto à sua própria família, apesar do contexto social em que está inserido ser diametralmente oposto ao luxo em que está vivendo. É a isso que ele se refere, em sua primeira entrevista na tv, quando menciona que, se ele fosse como o povo, também estaria se sentindo como um palhaço e que, por isso, iria se candidatar ao governo. É também por isso que vemos uma Gotham tão suja, decadente, sombria, escura. Por isso encontramos Arthur infeliz em um subemprego, trabalhando para um patrão igualmente desanimado, contratado por uma loja falida para realizar um serviço mal pago, acompanhado por outros excluídos sociais que se vestem de palhaço não por gosto, mas por sobrevivência.

Um bom ponto que corrobora esse quadro é quando Arthur Fleck chega ao teatro/cinema para confrontar Thomas Wayne. O filme que o público está assistindo é ‘Tempos Modernos’, com Charlie Chaplin. Dentre todos os filmes que poderiam ser exibidos, por que este? O longa foi lançado em 1936, escrito, dirigido e estrelado pelo icônico Chaplin, que também é conhecido como a grande referência da comédia, do humor e do circo, principalmente entre os palhaços. De uma maneira engraçada porém extremamente visual, ‘Tempos Modernos’ faz uma evidente crítica ao sistema capitalista, ao Fordismo que mencionamos e à instauração dessa modernidade que, mais do que levar a sociedade a um futuro promissor, acentuou as desigualdades sociais, levando a maior parte da população à pobreza e relegando ainda mais a concentração da riqueza nas mãos de poucos. E, a propósito, a música ‘Smile‘, que toca nos créditos finais do longa e também no trailer, foi escrita pelo próprio Charlie Chaplin para este filme, ‘Tempos Modernos‘, cuja cena final é justamente (vejam só!) o Vagabundo, personagem de Chaplin, pedindo à personagem de Paulette Goddard que (tcharam!) sorria! 🙂

Outro ponto que sinaliza essa tensão entre concentração de poder de um lado e a população subalternizada por outro é a cena do metrô, quando Arthur Fleck tem o seu primeiro momento Coringa, quando ele perde o controle de si pela primeira vez e mata os três jovens rapazes promissores da também promissora Wayne Enterprise. Por que esses jovens e não qualquer outra pessoa? Porque esses três rapazes são uma alegoria de uma classe social enriquecida cujo futuro é certo e brilhante, enquanto o dele, Arthur, e de milhares de cidadãos de Gotham, é amargar um pão velho como refeição. O fato de Arthur insurgir contra esse três (ainda que de uma maneira não calculada e um pouco descontrolada) é, sim, uma insurgência contra o sistema, mas é mais que isso: é um chega pra lá em todo esse contexto histórico-social opressor que conduz o sujeito que não tem voz nem direitos a um futuro limitado, submisso e sem opções.

Por tudo isso, aquela cena final do longa de Todd Phillips, quando o personagem de Joaquin Phoenix é resgatado do acidente de carro e é aplaudido por uma população (que ao longo do filme vai vendo nele uma possibilidade de rachadura nessa Gotham engessada e de poder concentrado nas mãos políticas e corruptas) que assume essa identidade de palhaço para ter direito à voz não é só catártica, como dizem, embora plasticamente bela. Essa cena final é o momento em que essa população que nunca é ouvida ganha seu direito à voz, e se faz ouvir.

Agora, esse direito a fala é assunto para nossa próxima matéria.

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Janda Montenegrohttp://cinepop.com.br
Escritora, autora de 6 livros, roteirista, assistente de direção. Doutora em Literatura Brasileira Indígena UFRJ.

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É importante lembrar que tanto a história do Batman quanto a do Coringa é ficção. Mesmo assim, é uma história que se calca na realidade, no que acontece com as pessoas – especialmente aquelas que viviam e vivem em Nova York, que, sabemos, é onde Gotham City se espelha.

Lembremos, antes de tudo, que a primeira HQ do Batman surgiu em 1940, e que a primeira aparição do Coringa na trama do Homem-Morcego ocorreu já nesta edição inaugural.  Bom, o que estava acontecendo no mundo nessa época? A II Guerra Mundial tinha acabado de começar; a bolsa de Nova York tinha acabado de quebrar seriamente, deixando milhares de acionistas pobres da noite para o dia; também é a época do auge do Fordismo, que era o modelo de produção em massa baseado na reprodução precisa e no barateamento do custo de fabricação dos carros Ford, o que o tornou acessível à classe média; e é também o auge da modernidade no mundo ocidental, potencializando o modelo capitalista como sistema econômico em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, o que consequentemente sufocou a população; o país ainda tentava se recuperar da Grande Depressão, e com uma população superior a 10 milhões de pessoas, sendo a grande maioria imigrantes irlandeses, italianos e judeus fugidos das guerras na Europa e buscando uma oportunidade de vida, que desembarcaram em Nova York sem nada nos bolsos.

Esse é o cenário de criação da história do Batman e do Coringa – que, como vocês podem ver, não mudou muito quase cem anos depois. E esse é o trunfo da história contada por Todd Phillips em seu filme: o ‘Coringa’ que ele apresenta é extremamente atual, ainda que ela se passe no final de 1979, início dos anos 80. Contextualizando, após o fim da II Guerra Mundial, em 1945, Nova York sofreu um enorme impacto econômico com sua crescente população, mas incapaz de manter o aumento salarial e de empregos; com a desaceleração econômica, a produção em massa da Ford quebrou, o que gerou ainda mais desemprego. Apesar do clima alegre da disco music, a taxa de criminalidade e o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou drasticamente.

Tudo isso está refletido na figura de Thomas Wayne apresentada no filme: um cara que não quer largar o osso, que já perdeu muito dinheiro nas últimas décadas, mas que continua poderoso e inabalável, acumulando fortuna para dar conforto à sua própria família, apesar do contexto social em que está inserido ser diametralmente oposto ao luxo em que está vivendo. É a isso que ele se refere, em sua primeira entrevista na tv, quando menciona que, se ele fosse como o povo, também estaria se sentindo como um palhaço e que, por isso, iria se candidatar ao governo. É também por isso que vemos uma Gotham tão suja, decadente, sombria, escura. Por isso encontramos Arthur infeliz em um subemprego, trabalhando para um patrão igualmente desanimado, contratado por uma loja falida para realizar um serviço mal pago, acompanhado por outros excluídos sociais que se vestem de palhaço não por gosto, mas por sobrevivência.

Um bom ponto que corrobora esse quadro é quando Arthur Fleck chega ao teatro/cinema para confrontar Thomas Wayne. O filme que o público está assistindo é ‘Tempos Modernos’, com Charlie Chaplin. Dentre todos os filmes que poderiam ser exibidos, por que este? O longa foi lançado em 1936, escrito, dirigido e estrelado pelo icônico Chaplin, que também é conhecido como a grande referência da comédia, do humor e do circo, principalmente entre os palhaços. De uma maneira engraçada porém extremamente visual, ‘Tempos Modernos’ faz uma evidente crítica ao sistema capitalista, ao Fordismo que mencionamos e à instauração dessa modernidade que, mais do que levar a sociedade a um futuro promissor, acentuou as desigualdades sociais, levando a maior parte da população à pobreza e relegando ainda mais a concentração da riqueza nas mãos de poucos. E, a propósito, a música ‘Smile‘, que toca nos créditos finais do longa e também no trailer, foi escrita pelo próprio Charlie Chaplin para este filme, ‘Tempos Modernos‘, cuja cena final é justamente (vejam só!) o Vagabundo, personagem de Chaplin, pedindo à personagem de Paulette Goddard que (tcharam!) sorria! 🙂

Outro ponto que sinaliza essa tensão entre concentração de poder de um lado e a população subalternizada por outro é a cena do metrô, quando Arthur Fleck tem o seu primeiro momento Coringa, quando ele perde o controle de si pela primeira vez e mata os três jovens rapazes promissores da também promissora Wayne Enterprise. Por que esses jovens e não qualquer outra pessoa? Porque esses três rapazes são uma alegoria de uma classe social enriquecida cujo futuro é certo e brilhante, enquanto o dele, Arthur, e de milhares de cidadãos de Gotham, é amargar um pão velho como refeição. O fato de Arthur insurgir contra esse três (ainda que de uma maneira não calculada e um pouco descontrolada) é, sim, uma insurgência contra o sistema, mas é mais que isso: é um chega pra lá em todo esse contexto histórico-social opressor que conduz o sujeito que não tem voz nem direitos a um futuro limitado, submisso e sem opções.

Por tudo isso, aquela cena final do longa de Todd Phillips, quando o personagem de Joaquin Phoenix é resgatado do acidente de carro e é aplaudido por uma população (que ao longo do filme vai vendo nele uma possibilidade de rachadura nessa Gotham engessada e de poder concentrado nas mãos políticas e corruptas) que assume essa identidade de palhaço para ter direito à voz não é só catártica, como dizem, embora plasticamente bela. Essa cena final é o momento em que essa população que nunca é ouvida ganha seu direito à voz, e se faz ouvir.

Agora, esse direito a fala é assunto para nossa próxima matéria.

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