A indústria contemporânea musical funciona, na maior parte das vezes, em dois extremos: nos agradando bastante ou nos entregando a produtos mal-feitos, inacabados e que poderiam ser muito melhores caso fossem tratados com um pouco mais de cautela. E em meio a esses paralelos, residem as surpresas e os convencionalismos; as obras inesperadas costumam nos estranhar ao ouvido a priori, apenas para podermos degustar com um pouco mais de atenção antes de compreendermos o que reside por trás de um conceito tão bizarro, por assim dizer; as formulaicas, por sua vez, abarcam um público generalizado, mas sempre deixam a sensação de déja vu.
É nesse complexo contexto que Billie Eilish, a jovem cantora e compositora de apenas dezessete anos, resolveu lançar seu primeiro álbum de estúdio. Eilish já era bastante conhecida devido ao seu muito bem-recebido EP, ‘Don’t Smile At Me’, resgatando um âmbito interessante para o saturado pop atual e, de forma brilhante, trazendo sua identidade única para ‘When We All Fall Asleep, Where Do We Go?’. Produzido em colaboração entre a Interscope e a Darkroom, o CD se respalda em um pesado eletro-pop, misturando construções nostálgicas com pontuais baladas melódicas e uma pitada de perturbação intimista que transforma essa investida musical em uma rara joia.
Eilish já nos mostra sua grandiosa irreverência ao se unir com o irmão Finneas O’Connell, ambos responsáveis pela composição de todas as quatorze faixas – incluindo um chocante interlúdio que não se preocupa em nos apresentar à mensagem buscada pela cantora. Em “!!!!!!!”, a artista na verdade nos entrega a uma ambiência homemade, transmitindo sua aura adolescente ao trancafiar-se em um quarto e anunciar despretensiosamente “olhem, este é meu álbum. Divirtam-se!”. E sem esperar algo em retorno, ela nos oferece uma jornada tour-de-force peculiar através de sua própria vida e talvez do cotidiano de inúmeras outras pessoas que mergulham em crises existenciais sobre os mais variados assuntos; é isso que ganha maior destaque dentro do disco.
Mas não espere que as tracks seguirão um crescendo conhecido, ou farão parte de um pano de fundo automaticamente compreensível; seguindo os passos de sua conterrânea Marina Diamandis e trazendo referências clássicas do hip-hop e do R&B do início dos anos 2000, cada faixa nos força a pensar para fora da nossa bolha, ousando dar passos corajosos em direção a um estilo único que, no final das contas, é uma fusão aplaudível de vários gêneros. Essa ideia subjetiva e simbólica ganha forte expressividade com “xanny”, um inebriante suplício de socorro sem cair nos gritos ou na agressividade lírico-instrumental. Através de sua sibilante voz, Eilish passeia através dos potentes sintetizadores e reflete uma angústia atemporal com profundos versos (“não preciso de Xanny [referência ao calmante Xanax] para me sentir melhor”).
A obra ganha notoriedade já com a primeira canção completa, “bad guy”. A batida bem demarcada é acompanhada pela entrega pausada e propositalmente cansada da lead singer que nos arremessa de volta para o uma atmosfera neo-noir e misteriosa. É claro que a imensa catarse causada pela música não abre margens para clichês sonoros – e é por isso que o grave baixo nos guia de modo retumbante até o refrão, onde criações imaginativas dos primórdios do synth-pop nos aguardam com paciência. A prosódia epopeica funciona como um hino trap sensual e fluido, aumentando nossas expectativas para as próximas iterações.
Eilish já provou que não é apenas mais um nome em meio a um manufaturado dilúvio de divas musicais. Muito além disso, ela é uma incrível poetisa que faz o possível para colocar as mais ácidas críticas suas composições – e aqui faço menção à incrível rendição platônica “all the good girls go to hell”. É quase impossível não traçar diálogos com as conhecidas rebeldias de Lily Allen e sua completa e hilária falta de papas na língua; porém, a track em questão se aventura em um terreno perigoso que critica até mesmo a onisciência de Deus (aqui tratado como Deusa em uma belíssima e espetacular contradição).
O álbum em si mergulha em uma pessoalidade ainda mais interessante quando pensamos em sua estrutura artesanal. O conceito de quarta parede é quebrado diversas vezes, não só à medida que a cantora se dirige mais diretamente a seus fãs, mas quando admite a presença de uma plateia dentro do próprio cosmos que arquiteta. É isso o que acontece em “wish you were gay”, onde a reação do público ganha uma voz e estende-se para outras faixas, incluindo “8”, na qual o eu-lírico traça uma conversa metafórica consigo mesmo em um passado que já não pode mais voltar.
Eilish também faz um bom uso das ballads, trazendo a envolvente melodia do piano para este íntimo âmago. Tal base é emocionante e se faz presente com uma força impetuosa em “listen before you go”, completando inclusive os doces acordes do violão em “i love you” (aliás, o próprio título de ambas as canções entram em sincronia logo de cara). Nesta, porém, o individualismo se depara com uma nova camada, principalmente no momento em que Billie e Finneas encontram suas vozes e a tratam como apenas uma.
“When We All Fall Asleep” dá ao gênero pop uma nova perspectiva e, ainda que não ganhe a atenção que merece por seu afastamento quase total das concepções mercadológicas, sem sombra de dúvida é um divisor de águas e o início concreto de uma carreira deliciosamente perturbadora e diabólica.