O diretor M. Night Shyamalan se tornou um dos realizadores mais inconstantes de Hollywood. Mesmo assim, ele continua como uma das vozes mais chamativas e badaladas da maior indústria de cinema do mundo e a cada novo lançamento consegue atrair atenção do grande público, assim como dos especialistas. Existem os diretores unanimemente adorados, vide Steven Spielberg, Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Christopher Nolan; e também existem aqueles que deixam parte do público e dos críticos prontos para torcer o nariz a cada novo trabalho, vide Zack Snyder, Paul W. S. Anderson e Michael Bay. Já M. Night Shyamalan existe nos dois mundos.
O que acontece é que o diretor indiano chegou em Hollywood chutando a porta com os dois pés, no filme ‘O Sexto Sentido’ (1999) que, além de o render indicações ao Oscar como melhor diretor e melhor roteiro (além de ser indicado como melhor filme), ainda fez todo e qualquer crítico anunciar Shyamalan como o novo Spielberg. Prematuro? Sem dúvida. Logo em seu trabalho seguinte, o cineasta viu os mesmos que o colocaram em um pedestal, começarem a questionar seu talento. Acontece que seguindo ‘O Sexto Sentido’, o realizador entregou uma obra muito diferente com ‘Corpo Fechado’ – que hoje encontrou seu público e é enaltecido como um de seus, senão seu melhor filme.
Depois vieram ‘Sinais’ (2002), que recuperou seu prestígio nas bilheterias, e os elogios, e ‘A Vila’ (2004), que o dividiu novamente. Particularmente, acho este segundo o melhor trabalho do cineasta e seu melhor filme – mesmo reconhecendo que muitos, ou a maioria não compartilha deste pensamento. A meu ver, ‘A Vila’ foi o último grande trabalho sequencial de M. Night Shyamalan, e um que o levou à ruptura na fase da Disney. A seguir ele tentaria parcerias com a Warner (‘A Dama na Água’), Fox (‘Fim dos Tempos’), Paramount (‘O Último Mestre do Ar’) e Columbia (‘Depois da Terra’), não obtendo sucesso de crítica ou bilheteria em nenhum. Mas o pior é que menos de 10 anos após o fim da parceria com a Disney, seus quatro trabalhos seguintes, de forma consecutiva, eram considerados por todos os avaliadores como alguns dos piores filmes do período.
Assim, de rei de Hollywood em sua fase inicial, M. Night Shyamalan amargava o fundo do poço, considerado um fogo de palha que não havia de fato acendido, pelo contrário, havia se apagado de forma desastrosa. Nessa fase, seus roteiros originais pareciam não dar mais certo, e quando tentou investir por um momento como “diretor de aluguel”, fosse adaptando um conhecido desenho em forma live-action, ou dando forma a uma ideia da Cientologia para Will Smith e o filho, os resultados foram abaixo do medíocre. Era a hora de Shyamalan se reestruturar e voltar ao básico. O diretor se voltou para a TV com ‘Wayward Pines’ e no cinema aderiu ao found footage no arrepiante e subestimado ‘A Visita’ (2015). Em pé novamente, tomou o mundo de assalto mais uma vez com ‘Fragmentado’ (2017), criando um mistério envolvente que anunciava que o diretor havia retornado à sua boa forma.
O problema de M. Night Shyamalan sempre foi o ego. E com isso não estou dizendo que ele tenha uma personalidade egocêntrica na vida real, pois nem o conheço. Ao que parece é um ótimo sujeito. Me refiro ao egocentrismo cinematográfico, como artista. Isso é inegável. Foi o que o fez comprar briga com os críticos em ‘A Dama na Água’ (2006), após ser execrado pelos mesmos que haviam o colocado num pedestal. No filme citado, Shyamalan cria um dos personagens como um crítico de cinema extremamente pedante, e o mata da forma mais violenta de todas. Por outro lado, seu personagem no mesmo filme é um escritor com bloqueio, mas cuja história irá salvar o mundo. Isso é que é um ego inflado.
Depois de voltar as boas com ‘Fragmentado’, o diretor acreditava que o mundo era seu novamente e podia fazer qualquer coisa. Assim, deixou seu ego falar mais alto novamente e entregou o desfecho decepcionante não de um, mas de dois de seus filmes mais queridos dos fãs, ‘Fragmentado’ e também ‘Corpo Fechado’, com ‘Vidro’ (2019), filme onde tudo se conectava. Toda essa introdução para chegarmos até ‘Tempo’, o filme que dá continuidade à sua nova má fase após um breve vislumbre de glória. ‘Tempo’ teve a dificuldade de ser realizado durante a pandemia, em 2020, e terminou sendo lançado em 2021 – pela Universal, em nova parceria do diretor.
Novamente, essa não é uma história original do cineasta, mas sim baseada numa Graphic novel de Pierre Oscar-Lévy e Frederik Peeters. A história é simples, mas bastante intrigante e misteriosa. Uma família de férias em um resort num local paradisíaco é levada em um passeio por uma praia. No local encontram-se outros turistas hospedados no mesmo resort. Até aí nada fora do lugar. Acontece que a sacada da ideia, que surge como uma das famosas reviravoltas do diretor, é que este é um local fantástico, de certa forma fenomenal como a ilha de ‘Lost’ (já que os quadrinhos foram escritos em 2010), do qual os visitantes não conseguem sair, e onde o tempo passa de forma acelerada para todos, transformando crianças em adolescente e depois em adultos em questão de horas – e adultos em idosos decrépitos.
O conceito é interessante, mas seria melhor como um curta-metragem, ou o episódio de alguma série no estilo ‘Além da Imaginação’. Isso porque ao contrário dos outros filmes do diretor, cujas temáticas são de certa forma simples igualmente, neste ele não conseguiu alongar a premissa para transforma-la em um longa de forma eficiente. Em ‘Tempo’, Shyamalan carece de bons personagens, porque falta desenvolvimento. Tudo o que ganhamos são esboços e caricaturas. Os diálogos então parecem tirados dos quadrinhos e não caem bem quando são ditos por pessoas de verdade. As situações são forçadas e nunca parecemos estar observando seres humanos agindo numa situação dessas. A tentativa do cineasta em criar suspense em cada frase dita por um personagem, o fazendo agir de forma estranha para elevar a atmosfera, soa artificial por deixa-los sem características humanas – proferindo o texto de forma didática como seres robóticos.
Fora isso, algumas escolhas de ângulos e de onde posicionar a câmera são infelizes. E aí recaímos no tópico da pretensão egotística de Shyamalan como diretor. Tais cenas são criadas para serem “um diferencial” na obra, mas aqui o cineasta filma em mais de um momento as pessoas reagindo a algum evento aterrador na areia, de dentro da água, nos deixando ver pouco (um cacoete costumeiro do realizador). Aqui, no entanto, com sua câmera marítima, onde o mar muitas vezes sacoleja e submerge nosso ponto de vista, a visão “artística” termina parecendo amadora. Em outro momento, sua câmera tenta filmar um personagem, mas a confusão que sucede em primeiro plano termina por novamente tapar nossa visão com o caos do corre-corre. São momentos simples de escolhas pretensiosas e que ficaram ruins no produto final, que não somam à narrativa, apenas transparecem a pretensão artística do realizador.
É o durante que mais incomoda em ‘Tempo’, e não tanto a óbvia revelação final, que precisava vir e existir para explicar a resolução, mesmo que, de forma sábia, não explique tudo. Sim, a praia é inexplicável, um fenômeno da natureza. Já as intenções dos homens que a cercam embora à primeira vista nefastas, possuem um propósito maior. O mais doloroso de ‘Tempo’ é o caminho e não tanto o destino onde chegamos. As escolhas, digamos, inusitadas de onde pôr a câmera do diretor, somadas a diálogos que não parecem ditos por humanos, causam uma interação capenga dos personagens e pior ainda, atuações comprometidas de gente talentosa, como a dupla principal formada pelo mexicano Gael García e a luxemburguesa Vicky Krieps – sem qualquer química que transmita que são uma família que se ama, mas estão em crise.
Essa falta de harmonia na interação chega até os coadjuvantes, inclusive as crianças, que não satisfazem em suas atuações. Mais para o fim, em um dos momentos que deveria ser a grande cena assustadora do filme, com a velhice da personagem da bela Abbey Lee em uma caverna, tudo o que o trecho consegue passar é a vontade por risadas involuntárias, com seus efeitos de CGI duvidosos. Por outro lado, quem consegue se sair razoavelmente bem dessa bagunça toda é o trio de jovens atores: Alex Wolff (de ‘Hereditário’), Thomasin McKenzie (de ‘Jojo Rabbit’) e Eliza Scanlen (de ‘Adoráveis Mulheres’).
Com o orçamento de US$18 milhões (baixo para os padrões de Hollywood), ‘Tempo‘ recuperou para os cofres da Universal, US$90 milhões ao redor do mundo. Sua estreia corajosa foi no dia 23 de julho de 2021, em pleno auge do verão norte-americana, época dos maiores lançamentos dos estúdios, onde descolou a primeira posição do fim de semana, com US$16.8 milhões ainda em tempos pandêmicos. O terror levou a melhor para cima do blockbuster ‘G.I. Joe Origens – Snake Eyes‘, da Paramount, e o drama ‘Joe Bell‘, com Mark Wahlberg. Já em matéria de críticas, ‘Tempo‘ descolou 50% de aprovação da imprensa especializada, convencendo exatamente metade dos jornalistas, mas não escapando do “tomate podre” no Rotten Tomatoes.
Shyamalan disse ter se atraído pela história por seu mote do envelhecimento acelerado e o medo da morte iminente. Na vida real, já deixa seu legado, passando o manto de diretor para a filha mais velha Ishana, que trabalhou como assistente de direção na segunda unidade, estreando em uma produção com o aval do pai. A jovem segue agora para entregar seu primeiro filme solo como diretora, comandando Dakota Fanning em ‘The Watchers’. E o Shyamalan pai seguiu para o mais bem recebido ‘Batem à Porta’ (2023) – por isso não devemos temer o tempo. Ele pode ser nosso aliado.
‘Tempo‘ (2021), de M. Night Shyamalan, estreou recentemente no acervo da Star+, a plataforma de conteúdo mais adulto da Disney+.