Agosto de 2003, horário nobre da canal de TV a cabo Warner Channel. ‘The O.C.’ fez – primeiramente – sua estreia nos Estados Unidos, tornando-se imediatamente um sucesso absoluto, se consagrando com o piloto com a maior audiência da história, até então. Sua ascensão meteórica antecipou sua chegada ao Brasil, em uma época onde sincronizar o timing de maneira global das séries não era uma prioridade dos grandes estúdios. Agitada e bem ritmada, a trama se abria para o público com o arrombamento de um carro. Dois jovens, até então desconhecidos do público, desavisadamente se apresentam como irmãos. O que se segue a partir desse momento decisivo em tela é uma perseguição policial, prisão e uma quase adoção. Simultaneamente, os olhos da audiência são hipnotizados, carregados por um submundo avassalador e tão vital culturalmente, que só descobriríamos o quanto precisávamos dele quando todo esse universo se dilacerou abruptamente diante da nossa atenção.
O primeiro capítulo de ‘The O.C.’ já apresentava tudo que deveríamos saber sobre a produção e também anunciava uma sucessão de episódios que seguiriam a mesma maestria em termos de roteiro, abordagem, desdobramento, núcleos e ritmo. Em uma época onde não era exagero produzir extensas temporadas divididas em mais de 22 partes, a produção de Josh Schwartz trazia 27 capítulos, cada um mais insano do que o outro. E o fascínio, que imortalizou o programa teen como um dos mais emblemáticos e game changers dos anos 2000, resistiu ao teste do tempo. E 15 anos desde sua estreia na TV, a produção permanece pontual e pioneira, tendo pavimentado uma jornada que beneficiou as séries do gênero mais amadas da atualidade. Confusão, gritaria e conflitos existenciais profundos expostos no horário nobre é algo que começou em ‘The O.C.’, que redefiniu a cultura POP como a conhecemos hoje, sendo a vanguarda da televisão de boa qualidade.
Eu decidi reassistir a primeira temporada inteira, 15 anos depois, e pontuar pra você o que faz ‘The O.C.’ mais atual do que nunca.
Protagonista nerd, porque não?
Nos anos 2000, vigorava a premissa preconceituosa que segregava os nerds – amantes de ‘Star Wars’, quadrinhos da Marvel e DC e frequentador assíduo da San Diego Comic-Con – do restante dos jovens. Estranhos, antissociais e desajeitados, eles foram tachados como a escória escolar. Nas mãos de Schwartz – que brigou para manter Seth Cohen (Adam Brody), ele se torna um pedaço de todos nós. Irônico, com piadas cheias de referências do universo POP e carismaticamente desengonçado, ele foi a voz para uma leva de adolescentes que – assim como eu – passaram tempo demais se escondendo dos olhos condenadores dos colegas de escola. Seu jeitão o tornou muito mais que um alívio cômico que garantia o equilíbrio perfeito entre o drama e o humor, fazendo dele um ícone que calçava a estrada que – poucos anos depois – faria da Comic-Con o evento mais must-have do universo do entretenimento.
Welcome to The O.C., bitch!
Uma única frase, a referência pelos próximos 10 anos. Muito mais que anunciar “seja bem vindo ao submundo”, o piloto foi ainda mais além, apresentando a essência desse tal universo paralelo. Para as audiências brasileiras, Orange County não significava nada. Para os americanos, a distinção significava pouco. Para mostrar a que veio, Josh Schwartz solta um “welcome to The O.C., bitch!”, trazendo um significado universal para algo tão específico. Ainda que você desconheça o condado, entenda que uma nova ordem – de poder, ganância, status, luxo, ostentação e sem freios sexuais – rege o local. E você é quem tem que se adaptar a ela. A frase de efeito fez o dever de casa e esteve nos lábios dos fãs por anos a fio. Em uma época sem memes, Facebook e Instagram, seu impacto – que já se tornara soberbo -, seria ainda mais astronômico.
As imperfeições da perfeição
Em um contexto atual onde as redes sociais maquiam dores, lutas e ostentam vidas irreais e impecáveis – onde não há sofrimento algum e todos são estranhamente felizes, ‘The O.C.’ já trazia esse complexo ostensivo, fazendo de Newport Beach o “feed de notícias” dos moradores. Com um visual deslumbrante, mansões magnânimas e a (falsa) sensação de plenitude e poder, bastava esgueirar-se mais perto, olhando pela fresta da porta, que tudo isso desmoronaria diante dos nossos olhos, em constantes brigas em festas de gala beneficentes, tentativas de suicídio camufladas, vícios em álcool e drogas, falência financeira e traições das mais diversas. Fazendo um contraste entre o que os personagens aparentavam ser e o que de fato eram, a série dramática ilustrava bem o que vemos hoje em nossos smartphones, com um realismo impressionante e críticas excepcionais sobre a política global do “tem que parecer, não precisa ser”.
Personagens substanciais e reais
O que torna ‘The O.C.’ ainda pertinente em pleno 2018 é justamente a construção de personagens significativos. Independente de cada qual possuir origens que – em boa parte – não se encaixam nos contextos sociais de sua audiência global, os problemas reais enfrentados criaram uma ligação profunda com o público. A sensação de abandono de Marissa Cooper (Mischa Barton) era real. O sentimento de estar sempre deslocado e desconfiado de todos – por não ter uma base familiar -, de Ryan Atwood (Benjamin McKenzie), era genoíno. O jeito meio metido, mas engraçado, de Summer (Rachel Bilson) também. E Seth, com seu humor, amor por super heróis e falta de habilidades sociais, era a personificação de metade da juventude da época e – porque não – de hoje.
Uma boa história toda semana, sem se arrastar
Algumas séries com mais de 15 episódios custam para tornar cada capítulo intrigante e necessário (‘Once Upon a Time‘ é um exemplo). Essa dificuldade acaba resultando em um “miolo” cansativo, com a metade da temporada sempre muito arrastada e prolixa, onde as grandes revelações, os plot twists e o desmembramento da trama ficam retidos, aguardando os quatro episódios finais. Em ‘The O.C.’, aquele mundinho particular de Newport era tão vasto que Schwartz foi capaz de reter um conteúdo excelente para cada um dos 27 e 24 capítulos dos primeiro e segundo ciclos, respectivamente. Reassistindo a temporada um, é impressionante a quantidade de brigas, confusão e treta que permearam a narrativa. Totalmente incansável.
Além disso, a produção construiu-se em torno da personalidade dos personagens, fazendo com que a narrativa caminhasse a partir da forma como cada um lidava com as circunstâncias trazidas. Com diversos ângulos e abordagens distintas, um mesmo problema recebia várias interpretações que – estranhamente – estavam todas corretas, em partes. Trazendo os maneirismos peculiares de cada uma dessas figuras, a trama se desenrolava com temáticas reais e atuais, como a descoberta sexual na juventude, problemas familiares, complexos de inferioridade, sensação de abandono, aspirações profissionais, autocrescimento, vícios, opção sexual, entre outros.
Você quer referência POP?
Hoje em dia, ter referências da cultura POP em séries de TV e filmes é quase um aspecto sine qua non. Se não há, tem alguma coisa errada ali. ‘The O.C.’ foi a série precursora no gênero, fazendo do personagem Seth Cohen o porta-voz de piadas que remetiam aos quadrinhos do Superman, Batman, X-Men, Homem-Aranha, além das franquias clássicas ‘Star Wars’ e ‘Star Trek’. A San Diego Comic-Con já aparece logo no começo. Ainda sem toda a pompa que hoje possui, ela é apresentada como a famosa convenção geek de quadrinhos, que também serve como uma válvula de escape para ele e Ryan viajarem para Tijuana. Citar todas as sacadas brilhantes renderia uma lista enorme, com menções a filmes de ação dos anos 80/90/2000, personagens emblemáticos como Rocky Balboa, etc, etc.
*Indo mais longe, a produção criou suas próprias referências, como o Natanukka, a fusão de Natal e Hanukkah, a data fictícia que você mais respeita.
A trilha sonora mais conhecida da TV
A série ficou instantaneamente marcada por sua emblemática trilha sonora, que reúne hinos – até então – independentes, que se consagraram com uma vasta geração de jovens e adolescentes. Com um ouvido tão bom quanto o de James Gunn, Josh Schwartz fez da música um dos símbolos registrados da produção, com canções de The Killers (que apareceu na segunda temporada da série), Rooney (que apareceu na primeira), Death Cab for Cutie, entre outros. Com seis álbuns lançados ao longo das quatro temporadas, ‘The O.C.’ tem até um disco Especial de Natal, com hits originais ou regravados por artistas indies. Melhor álbum de Natal da vida. Foi mal Michael Bublé.
*No Spotify há uma playlist com TODAS as canções da trilha sonora.
Suprindo um vácuo e pavimentando o futuro da TV
‘The O.C.’ surgiu em uma época bem pertinente. ‘Buffy – A Caça Vampiros’ se despediu do público em 20 de maio de 2003. ‘Dawson’s Creek’, que também dividia o horário nobre da TV, encerrou sua jornada em 14 de maio do mesmo ano. Com um vácuo nos corações dos jovens, o drama teen tinha o público ideal em mãos, só precisava convencê-lo disso. O primeiro episódio foi o bastante e o resto é história.
Já em se tratando de pavimentar o futuro, o formato da produção – com leves toque da soap opera ao melhor estilo adolescente – abriu os caminhos para outras séries que se inspiraram diretamente nela, como ‘One Tree Hill’, ‘Gossip Girl’ (também criada por Josh Schwartz) e ‘90210’.
Nota: O único problema que ‘The O.C.’ não “resolveu” foi a representatividade racial. Sem nenhum protagonista negro e asiático, ela pecou em manter sua série com um elenco absolutamente caucasiano.