Em meados da década de 1840, o conto ‘The String of Pearls’ apresentou ao mundo um dos personagens mais bizarros e mais aterrorizantes dos últimos tempos: Sweeney Todd, um barbeiro insano e problemático que, em conluio com uma simples dona de loja de tortas, assassinaram inúmeros nomes da alta sociedade para ao mesmo tempo saciar um desejo de vingança há muito cultivado e assar pequenas “delícias” de carne para vender à comunidade londrina – e pior: tornar-se um sucesso imenso por seu sabor inigualável. E é claro que uma história tão macabra quanto essa chamaria a atenção de inúmeros artistas, principalmente dos dramaturgos Hugh Wheeler e Stephen Sondheim, que levaram tal narrativa para os palcos e conseguiram trazer elementos cômicos, trágicos e líricos para um escopo essencialmente mórbido.
Coloque todos esses elementos um ao lado do outro e pense em um nome que poderia readaptar mais uma vez tal conto, mas dessa vez para os cinemas. Talvez não houvesse nome mais qualificado que o de Tim Burton para fornecer uma perspectiva única e uma rendição memorável para tal peça, ainda que seu histórico fílmico tenha sido marcado por altos e baixos. O grande problema seria saber como mesclar a comédia e o drama de forma a não transformar o longa em um produto trash ou algo caricato demais para ser levado a sério, visto que o pano de fundo traz um desejo quase animalesco por resgatar o que outrora foi perdido e pagar na mesma moeda uma vida desvendada por traumas e dores.
Johnny Depp e Helena Bonham Carter, como já é de se esperar para um filme do cineasta, se reuniram mais uma vez para uma incrível e satisfatória combinação na releitura cinematográfica de ‘Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet’. Depp encarna o personagem-título, outrora conhecido como Benjamin Barker e que, após ser vítima de uma condenação sem acusações ou sem qualquer senso de justiça, passa quinze anos cumprindo sua pena e então retorna para sua cidade-natal nutrido por um crescente ódio. Após chegar ao porto da cinzenta metrópole, tomada por uma densa e misteriosa névoa que espalha por todas as suas ruas, ele percebe que não tem nenhuma possa e definitivamente nada a perder – e é através de seu vago perambular que ele conhece a Sra. Lovett, uma “empresária” sem qualquer sucesso que tenta sobreviver dia após o outro.
Os dois personagens mantêm um nível de semelhança e diferença quase intrínseca a suas personalidades: ainda que opostas, suas ambições são parecidas se pensarmos que eles desejam alcançar um sucesso naquilo que fazem de melhor à medida em que se vingam de um sistema injusto que os coloca às margens da sociedade. Suas construções cênicas são pautados em uma mescla monocromática entre preto e branco, incluindo as faces muito esbranquiçadas e os olhos fundos, ressaltados por uma maquiagem mórbida e que funciona por todo o longa-metragem; mesmo assim, as rudes vestimentas ainda buscam um pouco de brilho ao serem adornadas com alguns tons avermelhados que são chamativos e propositalmente chamam a atenção para uma possível mudança de status quo.
Lovett enxerga uma imensa poesia na vingança desmedida de Todd, e utiliza isso para começar a idolatrá-lo mais para benefício próprio que de forma altruísta. Ela compreende sua necessidade de não ficar parado após anos de impotência e cárcere, e tais chamas diabólicas reacendem ainda mais quanto ela lhe conta que sua ex-esposa Lucy (Laura Michelle Kelly) ficou louca e faleceu, enquanto sua filha Johanna (Jayne Wisener) tornou-se a protegida do mesmo homem responsável por prendê-lo, o Juiz Turpin (encarnado por uma envolvente e dilacerante performance do veterano Alan Rickman). Mas para isso, precisa desenvolver um plano sólido e não agir apenas por impulso – e é justamente aí que ambas as figuras conseguem se complementar.
Não deixe de assistir:
Burton consegue capturar toda a essência do conto e transformá-lo em uma releitura memorável e aplaudível, principalmente por optar por sequências fílmicas muito fluidas e que se complementam com o constante progresso de Londres. Além disso, afastando-se da estética do “teatro filmado”, ele não se restringe apenas às concepções formulaicas como campo-contracampo, mas ousa com sua habilidade ao criar enquadramentos não muito convencionais para tal história. Podemos traçar alguns paralelos com suas obras anteriores, incluindo ‘Ed Wood’, mas aqui tudo se finca incontestavelmente à mesma identidade das obras apresentadas no Grand Gouignol, lendário palco de apresentações reconhecido por trazer ao público um naturalismo exacerbado. Logo, é natual que vejamos construções quase escatológicas, permeadas por uma quantidade assustadora de sangue, tripas e miolos.
Como toda boa obra, temos o escape cômico bem estruturado e que se apresenta de praxe no início do segundo ato. Adolfo Pirelli (Sacha Baron Cohen) é o típico canastrão e enganador que utiliza de falta de esperança da comunidade inglesa para prometer-lhes milagres – no caso a cura para a calvície dos homens, além de trabalhar como um barbeiro tão habilidoso que foi chamado para trabalhar com o próprio Papa. Cabe, pois, a Todd desmascarar esse ardiloso ladrão em uma “batalha” muito bem coreografada e que tem um desfecho hilário e inesperado – o que leva o circense homem a visitá-lo com segundas intenções e desencadear um plano que não seria notado por ninguém. Após um ataque de violência inusitado, Todd acaba assassinando-o e Lovett tem a brilhante e horrenda de ideia de reaproveitá-lo em suas tortas de carne – afinal, a crise deve ser enfrentada de algum jeito, certo? O preço da carne cresce exponencialmente, e ela precisa manter os negócios funcionando de algum jeito.
Apesar do tenso e perigoso ambiente, esse longa-metragem configura-se como um incrível musical. John Logan (que ganharia ainda mais fama com sua rendição ao terror com a série ‘Penny Dreadful’) fica responsável pela adaptação da peça e mesmo que não traga todas as incríveis músicas, entrega-se de corpo e alma para relê-las dentro de um escopo satisfatório. Desde as suaves baladas como “Johanna” e “Nothing’s Gonna Hurt You”, passando pelo iconoclasta “There’s No Place Like London” e encontrando seu ápice com uma das canções mais memoráveis do filme, intitulada “A Little Priest”, é incrível notar como o roteirista consegue criar pequenos núcleos cênicos que funcionam dentro de suas próprias completudes tanto de modo isolado quanto justapostos; em outras palavras, os blocos sequenciados buscam uma maestria inenarrável e que, em grande parte, encontram aproveitamento máximo.
Um dos arquétipos explorados por Burton e Logan – e que talvez funcione um pouco melhor na adaptação que na peça – é o da inocência: a ingenuidade pueril de Toby (Ed Sanders) colabora para que o público entre em um estado catártico ainda mais profundo, principalmente se levarmos em conta o seu desfecho. O garoto é adotado por Todd e Lovett, tornando-se uma espécie de filho e ajudante para a confeiteira, além de nutrir um carinho muito grande por sua protetora. Tal reciprocidade é posta em xeque quando ela percebe que o rapaz é mais esperto do que aparenta e, eventualmente, se tornará uma ameaça para seu plano.
‘Sweeney Todd’ não é uma simples narrativa presunçosa que busca o nada dentro de lugar nenhum; é uma história literalmente visceral e que preza pela manifestação imagética exacerbada, seja nos enquadramentos em planos-detalhe que mostram claramente o momento dos homicídios, seja nas escolhas da paleta de cores, incluindo um vívido contraste entre cores neutras e a vermelhidão do sangue que praticamente toma conta do cenário.
Esta talvez seja uma das melhores obras de Burton e uma das poucas que realmente demonstra um pouco de versatilidade sem obrigá-lo a abandonar suas afeições. Sua perspectiva não se mostra afetada ou carregada de artificialidade, mas move-se de forma muito fluida e entrega-se para uma nova vertente a ser explorada muito mais do que aparenta.