Já disponível na Netflix após passar por diversos festivais, A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve), de J.A. Bayona, é uma emocionante narrativa de um dos maiores milagres — e tragédias — na história da América do Sul no século XX. Em 13 de outubro de 1972, o voo Força Aérea Uruguaia 571 decolou de Montevideo, com 45 passageiros, incluindo um time de rugby, mas nunca chegou ao seu destino.
Após 50 anos do desastre, o diretor espanhol Juan Antonio Bayona apresenta uma nova faceta para o ocorrido através da narração de Numa Tucartti (Enzo Vogrincic) e baseado no livro do jornalista uruguaio Pablo Vierci. Para esta nova adaptação, o cineasta trabalhou com atores da mesma origem dos personagens reais e as filmagens foram feitas nos locais do acidente na Cordilheira dos Andes.
Diferente da mais conhecida adaptação para as telonas, Vivos (Alive, 1993), de Frank Marshall, com Ethan Hawke com um dos principais sobreviventes, A Sociedade da Neve é focado nos laços entre os sobreviventes da queda, os momentos limites de fé e as condições inimagináveis de resistência. Com uma produção muito mais caprichada e coerente com a origem dos envolvidos, o longa espanhol encobre as outras produções e consegue transmitir angústia e empatia sem cair no melodrama ou sensacionalismo.
A questão do sensacionalismo advém do método recorrido pelas vítimas para agarrar-se à vida: antropofagismo. Esta é, por exemplo, uma das memórias remanescentes do meu imaginário infanto-juvenil a assistir ao filme de 1993 pela primeira vez. Com uma ambientação por vezes inquietante, por vezes claustrofóbica, J.A. Bayona tem êxito em nos aglutinar àquela realidade e desespero sem recorrer a cenas explícitas, mas desenvolvendo muito bem as condições miseráveis daqueles indivíduos.
Conhecido internacionalmente pela adaptação da tragédia do Tsunami na Tailândia, no impactante O Impossível (2012), e lançado ao mundo com o assombroso O Orfanato (2007), J.A. Bayona tem uma sensibilidade em recriar dilemas morais e cenas de grande estupor. Criticado por pelo elenco caucasiano de O Impossível — Naomi Watts e Ewan McGregor — na época do lançamento, o diretor e roteirista [pela primeira vez em longas], buscou intérpretes latinos e a língua espanhola como pontos impreteríveis de sua obra.
Lançado pela Netflix, A Sociedade da Neve é um projeto cinematográfico de alta qualidade técnica e sonora. Após os primeiros minutos de ambientação política e emoção dos atletas em disputar uma partida no Chile, o filme nos projeta na aflitiva cena do impacto da aeronave nas montanhas dos Andes e os detalhes de cada objeto, cadeira e indivíduos durante aqueles incomensuráveis segundos. Ao mesmo tempo que arrepia, nos magnetiza a não desgrudar os olhos da tela.
Por este e outros momentos chaves, A Sociedade da Neve é um filme de resiliência, fé e admiração. Todos os personagens são tratados com a mesma relevância e respeito, além dos bravos Roberto Canessa (Matías Recalt) e Nando Parrado (Agustín Pardella) que partem ao desconhecido com uma única missão: sobreviver. Mesmo para aqueles que já conhecem cada detalhe dos fatos, consegue se surpreender com a produção.
Duas das escolhas mais acertadas do roteiro foi ter dado voz a Numa como narrador do cotidiano e o registro escrito na tela do nome de cada passageiro perdido na trajetória dos 72 dias de espera e aflição. Em meio a tanta neve, avalanches e escassez de recursos, cada mínima decisão bem sucedida e barreira ultrapassada são como uma tocha de fogo a irradiar calor em nossos corpos estremecidos diante da tela.