domingo , 22 dezembro , 2024

Wytches | Conheça a HQ que vai virar série animada pelo Prime Video

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Esqueça tudo o que já ouviu falar sobre bruxas. Enterre todos os filmes, livros, séries sobre mitologia céltica e sobre o misticismo que perdurou desde a antiga sociedade britânica até os dias atuais. Em Wytches, nova HQ publicada pela editora Darkside, o leitor é apresentado às reais representações desses seres milenares e que desde a construção da primeira identidade cultural, assombram milhares e milhares de pessoas, sendo constantes alvos de exploração e adaptação pelos sete âmbitos artísticos. Entretanto, a narrativa criada por Scott Snyder não se restringe apenas ao que já nos foi contado, preferindo mergulhar de cabeça em um mundo mais sombrio e perigoso.

A história se inicia no final da década de 1910, trazendo em primeiro plano imagens escuras, polvilhadas com respingos vermelhos e que gradativamente ganham mais claridade e visibilidade. Vemos uma mulher presa em algum lugar indecifrável e claustrofóbico, tateando às cegas por uma escuridão inebriante em busca de uma saída – e é só então que percebemos onde ela está: dentro de uma árvore. 



O fato da impossibilidade disso acontecer já é assustador. Buscando inspiração em diversos thrillers psicológicos – incluindo as viradas e as descobertas da franquia gore Jogos Mortais’ ou até mesmo um parente do gênero sobrenatural, A Bruxa’ -, estamos diante de uma situação mística envolvendo alguém cuja resiliência não é a das melhores. A mulher sem nome tenta gritar por socorro, e as coisas ficam ainda mais tensas quando um jovem garoto inexpressivo aparece. A partir daí, o suspense começa a aumentar, e atinge seu ápice catártico no momento em que ela revela, ainda que sutilmente, saber o motivo de estar presa: ao que tudo indica, tudo aquilo faz parte de um ritual no qual ela é a principal oferenda para aplacar as forças inomináveis de criaturas mortais e desconhecidas a priori. E então descobrimos que na verdade o rapaz a colocou lá dentro – e pior: ela é sua própria mãe. 

“Uma jura é uma jura”, ele diz de forma cândida, momentos antes de garras brotarem detrás delas e arrastarem-na para a escuridão. 

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Este é um prólogo digno das melhores franquias de terror, sejam cinematográficas e literárias. A atmosfera sombria é reafirmada constantemente não apenas pelos incríveis e ambíguos diálogos, mas sim pela construção visual da floresta, a qual é perscrutada por alterosas árvores salpicadas com tons vermelhos e pretos, substituindo o clássico marrom e permitindo que todo o cenário se funda em um buraco negro nem um pouco convidativo, mas temeroso o suficiente para nos fazer pensar sobre aquilo que se esconde nas sombras. É exatamente pela mesma sensação que a protagonista da história, Sailor Rook, passa ao chegar com sua família na cidade de Litchfield, New Hampshire, após passar por um dos momentos mais traumáticos de sua vida – o qual é explorado com profundidade ao longo da obra. 

Ela não é a única a viver com os fantasmas de um passado recente voltando para assombrá-la em momentos de fraqueza. Vivendo com o pai, Charlie, um escritor em decadência e totalmente desequilibrado, e a mãe Lucy, que se tornara paraplégica após um grave acidente de carro, todos desejam recomeçar as vidas, encontrando uma suposta paz no interior dos Estados Unidos e deixando de lado as tragédias que alimentam sua reputação – como passamos a saber logo no primeiro ato, Sailor sofria agressões diárias de uma valentona chamada Annie, até ela ser capturada pelas mesmas criaturas do prólogo, sendo arrastada para um mundo desconhecido. A garota, a partir daí, começou a duvidar de seu próprio equilíbrio de personalidade, questionando-se sobre o que vira e o que realmente se sucedera naquele dia, puxando para si a responsabilidade de tal desaparecimento. 

Porém, a pacificidade pela qual tanto lutaram começa a ser bombardeada por aparições inexplicáveis de criaturas esqueléticas e sobre-humanas, as quais aparentemente estão caçando pela nossa “heroína”. Não entendemos à prima vista o porquê dessas ameaças, mas através de diversas histórias paralelas, somos conduzidos através de uma mitologia totalmente reformulada por um caminho de traições, atos de desespero e o próprio sacrifício – obrigatório ou voluntário. 

É interessante entender que a família Rook não se restringe aos clichês do gênero em se tratando de construções arquetípicas. As obviedades permanecem na superfície da narrativa, como o fato dos três serem forasteiros em um território desconhecido e alimentado pela fé e pelo misticismo – mas por trás dessa primeira camada, encontramos diversos níveis simbólicos que dialogam com os instintos mais primitivos do ser humano. Ora, a caracterização das bruxas foge do convencional “chapéu preto e nariz pontudo” e admite para si o real significado desses lendários personagens. Aliás, Snyder faz bom uso de suas experiências pessoais para arquitetar as tramas de sua obra, alegando que, na verdade, tudo o que conhecia sobre os julgamentos de mulheres e homens na Idade Média por práticas satânicas era mentira. 

No microcosmos idealizado pelo autor, as bruxas na verdade são pouco semelhantes ao seres humanos. Elas não têm exatamente uma varinha para transformar seus inimigos em animais inofensivos, mas sim poderes profanos para garantir os desejos mais distorcidos da mente humana, em troca de uma oferenda – afinal, elas precisam se alimentar. A deformação de seus rostos e até mesmo sua incapacidade de conviver em sociedade são metáforas dentro de uma perspectiva parental; durante toda a jornada, Charlie tenta proteger sua filha daquilo que não conhece e que não sabe enfrentar – e esse é o principal medo dos pais em relação a seus infantes: não poder enfrentar suas batalhas vinte e quatro horas por dia. 

Esta não é apenas uma obra-prima narrativa, mas também sinestésica e estética – e isso emerge graças ao incrível trabalho do desenhista Jock e do colorista Matt Hollingsworth. Todo o escopo inicial é trabalhado com nanquim e gradativamente preenchido com camadas e mais camadas de cores complementares. As cores frias são constantes e entram em contraste com elementos extradiegéticos, como traços de sangue e borrões que seguem os personagens em momentos de grande tensão ou descoberta. Além das caracterizações irreverentes, a majestuosidade vem na crueza dos protagonistas e coadjuvantes: Snyder não se preocupa em romantizar ou mascarar os reais sentimentos de suas criações, utilizando-se de jargões, gírias e palavrões para fornecer uma visão ainda mais realista dos acontecimentos em Litchfield. 

Wytches é uma HQ que ousa, nas mais variadas ramificações do sentido. Fornecendo uma história competente com começo, meio e fim, através de uma montagem narrativa que busca irreverências inclusive nas vanguardas literárias, a saga da família Root teve apenas seu pontapé inicial – um macabro e sangrento tour de force.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A história se inicia no final da década de 1910, trazendo em primeiro plano imagens escuras, polvilhadas com respingos vermelhos e que gradativamente ganham mais claridade e visibilidade. Vemos uma mulher presa em algum lugar indecifrável e claustrofóbico, tateando às cegas por uma escuridão inebriante em busca de uma saída – e é só então que percebemos onde ela está: dentro de uma árvore. 

O fato da impossibilidade disso acontecer já é assustador. Buscando inspiração em diversos thrillers psicológicos – incluindo as viradas e as descobertas da franquia gore Jogos Mortais’ ou até mesmo um parente do gênero sobrenatural, A Bruxa’ -, estamos diante de uma situação mística envolvendo alguém cuja resiliência não é a das melhores. A mulher sem nome tenta gritar por socorro, e as coisas ficam ainda mais tensas quando um jovem garoto inexpressivo aparece. A partir daí, o suspense começa a aumentar, e atinge seu ápice catártico no momento em que ela revela, ainda que sutilmente, saber o motivo de estar presa: ao que tudo indica, tudo aquilo faz parte de um ritual no qual ela é a principal oferenda para aplacar as forças inomináveis de criaturas mortais e desconhecidas a priori. E então descobrimos que na verdade o rapaz a colocou lá dentro – e pior: ela é sua própria mãe. 

“Uma jura é uma jura”, ele diz de forma cândida, momentos antes de garras brotarem detrás delas e arrastarem-na para a escuridão. 

Este é um prólogo digno das melhores franquias de terror, sejam cinematográficas e literárias. A atmosfera sombria é reafirmada constantemente não apenas pelos incríveis e ambíguos diálogos, mas sim pela construção visual da floresta, a qual é perscrutada por alterosas árvores salpicadas com tons vermelhos e pretos, substituindo o clássico marrom e permitindo que todo o cenário se funda em um buraco negro nem um pouco convidativo, mas temeroso o suficiente para nos fazer pensar sobre aquilo que se esconde nas sombras. É exatamente pela mesma sensação que a protagonista da história, Sailor Rook, passa ao chegar com sua família na cidade de Litchfield, New Hampshire, após passar por um dos momentos mais traumáticos de sua vida – o qual é explorado com profundidade ao longo da obra. 

Ela não é a única a viver com os fantasmas de um passado recente voltando para assombrá-la em momentos de fraqueza. Vivendo com o pai, Charlie, um escritor em decadência e totalmente desequilibrado, e a mãe Lucy, que se tornara paraplégica após um grave acidente de carro, todos desejam recomeçar as vidas, encontrando uma suposta paz no interior dos Estados Unidos e deixando de lado as tragédias que alimentam sua reputação – como passamos a saber logo no primeiro ato, Sailor sofria agressões diárias de uma valentona chamada Annie, até ela ser capturada pelas mesmas criaturas do prólogo, sendo arrastada para um mundo desconhecido. A garota, a partir daí, começou a duvidar de seu próprio equilíbrio de personalidade, questionando-se sobre o que vira e o que realmente se sucedera naquele dia, puxando para si a responsabilidade de tal desaparecimento. 

Porém, a pacificidade pela qual tanto lutaram começa a ser bombardeada por aparições inexplicáveis de criaturas esqueléticas e sobre-humanas, as quais aparentemente estão caçando pela nossa “heroína”. Não entendemos à prima vista o porquê dessas ameaças, mas através de diversas histórias paralelas, somos conduzidos através de uma mitologia totalmente reformulada por um caminho de traições, atos de desespero e o próprio sacrifício – obrigatório ou voluntário. 

É interessante entender que a família Rook não se restringe aos clichês do gênero em se tratando de construções arquetípicas. As obviedades permanecem na superfície da narrativa, como o fato dos três serem forasteiros em um território desconhecido e alimentado pela fé e pelo misticismo – mas por trás dessa primeira camada, encontramos diversos níveis simbólicos que dialogam com os instintos mais primitivos do ser humano. Ora, a caracterização das bruxas foge do convencional “chapéu preto e nariz pontudo” e admite para si o real significado desses lendários personagens. Aliás, Snyder faz bom uso de suas experiências pessoais para arquitetar as tramas de sua obra, alegando que, na verdade, tudo o que conhecia sobre os julgamentos de mulheres e homens na Idade Média por práticas satânicas era mentira. 

No microcosmos idealizado pelo autor, as bruxas na verdade são pouco semelhantes ao seres humanos. Elas não têm exatamente uma varinha para transformar seus inimigos em animais inofensivos, mas sim poderes profanos para garantir os desejos mais distorcidos da mente humana, em troca de uma oferenda – afinal, elas precisam se alimentar. A deformação de seus rostos e até mesmo sua incapacidade de conviver em sociedade são metáforas dentro de uma perspectiva parental; durante toda a jornada, Charlie tenta proteger sua filha daquilo que não conhece e que não sabe enfrentar – e esse é o principal medo dos pais em relação a seus infantes: não poder enfrentar suas batalhas vinte e quatro horas por dia. 

Esta não é apenas uma obra-prima narrativa, mas também sinestésica e estética – e isso emerge graças ao incrível trabalho do desenhista Jock e do colorista Matt Hollingsworth. Todo o escopo inicial é trabalhado com nanquim e gradativamente preenchido com camadas e mais camadas de cores complementares. As cores frias são constantes e entram em contraste com elementos extradiegéticos, como traços de sangue e borrões que seguem os personagens em momentos de grande tensão ou descoberta. Além das caracterizações irreverentes, a majestuosidade vem na crueza dos protagonistas e coadjuvantes: Snyder não se preocupa em romantizar ou mascarar os reais sentimentos de suas criações, utilizando-se de jargões, gírias e palavrões para fornecer uma visão ainda mais realista dos acontecimentos em Litchfield. 

Wytches é uma HQ que ousa, nas mais variadas ramificações do sentido. Fornecendo uma história competente com começo, meio e fim, através de uma montagem narrativa que busca irreverências inclusive nas vanguardas literárias, a saga da família Root teve apenas seu pontapé inicial – um macabro e sangrento tour de force.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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