Iniciando nossa jornada em listar, dentro do universo dos documentários, várias ótimas produções que nos sensibilizam de alguma forma. Tem ex-chefão da União Soviética e seu papo curioso sobre o universo que criou (ou quase), enxadristas da Geórgia que viraram verdadeiras celebridades mostrando toda a força feminina, relatos de um amigo sobre sua comovente trajetória de vida passando pela inauguração de um Mc Donald’s na Rússia até os horrores de fugas atrás de fugas em busca de paz, tem um alpinista muito focado que não estava preparado para a variável amor o que coloca em dúvida seu próximo objetivo, os horrores de campos de concentração em Fortaleza (uma história que você poucas vezes viu em livros de história do Brasil) , um artista plástico genial e as ideias dentro dessa genialidade. E muito mais.
Abaixo textos sobre esses 10 filmes nessa primeira parte desse especial contínuo.
I Called Him Morgan (EUA, 2016)
Como contar a história de uma tragédia e fazer ser interessante os dois lados da moeda? Apresentando uma das histórias mais trágicas e banais da história do Jazz, o cineasta sueco Kasper Collin apresenta ao público argumentos e os porquês que encerraram no início da década de 70 a trajetória do genial trompetista Lee Morgan nesse mundo. Descobrindo uma inusitada entrevista da autora do crime em fita k7, a esposa na época de Lee, Helen Morgan, conseguimos descobrir os motivos da tragédia e um pouco mais da personalidade desses dois personagens, marido e mulher sua união e sua tragédia. Uma história impactante, do início ao fim.
Belas imagens de arquivos saltam com energia na tela transformando os sons de Morgan ao fundo em uma sinfonia belíssima. Impressionante o talento desse jazzista. No início, acompanhamos fases da vida de Lee Morgan, sua ascensão nas noites das mais badaladas casa de shows de jazz dos Estados Unidos, seu primeiro declínio para as drogas e seu renascimento através de Helen, que conhecera quando estava na pior mas que futuramente em um ato sem pensar acaba destruindo pra sempre essa história. Mesmo que sem depoimentos próximos, os detalhes fornecidos pelos entrevistados, amigos dos dois naquela época, principalmente a situação do clímax desse filme, parece que nos colocam dentro daquela Nova Iorque fria em dezembro.
O roteiro do documentário é primoroso. Instiga o espectador a cada instante, mostrando os dois lados da moeda, o assassinado e o assassino, os pontos de intercessão até seu final para lá de impactante. Um belo trabalho que merece ser conferido.
Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (EUA, 2019)
Do triunfo ao quase desastre, sempre na esperança de voltar a falar com seu público. Muitas gerações recentes aqui no Brasil talvez nem nunca tenham ouvido falar no porto riquenho Walter Mercado. Sem zap, internet, quem comandava a festa da informação/comunicação eram as televisões e suas enormes audiências. Assim, anos atrás, na década de 90, um chamativo homem sempre com roupas extravagantes, capas, falando sobre astrologia dominou o interesse popular no Brasil e em toda a América Latina durante anos mandando mensagens positivas para milhares de devotos. Mas como que no auge da carreira e exposição na mídia, essa figura pública amada sumiu e nunca mais voltou à tv? Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado, produzido pela Netflix, dirigido pela dupla de cineastas Cristina Costantini e Kareem Tabsch, mostra as verdades sobre tudo que aconteceu na formação, no auge do sucesso e no pós sumiço televisivo desse personagem sempre intrigante da televisão. Dois pontos muito interessantes: o encontro do atual gênio da Broadway Lin-Manuel Miranda com seu ídolo de infância é algo que emociona. Segundo, o projeto nos faz uma pergunta indiretamente: será que Walter Mercado faria sucesso nos dias atuais? A resposta está no filme!
Dividido em arcos muito bem compostos, esse ótimo documentário navega em pontos importantes da trajetória do astrólogo mais famoso do mundo na década de 90. A questão sobre a sexualidade dele, assunto que Walter não gostava de falar muito sobre, contorna o documentário sob ponto de vista de um ativista lgbt de Porto Rico que teve nele como alguém de referência para ser quem ele queria ser. Outra questão é a briga na justiça que Mercado teve com seu ex-empresário. Como a maioria dos artistas que se dedicam fortemente à sua arte sem pensar na estrutura que precisa administrar para que tudo aconteça, Walter acaba caindo em armadilha contratuais que praticamente extinguiram sua marca, seu nome que sempre lutou para deixar intacto no auge. Há um belo destaque também para as lembranças da carreira de ator de Walter, uma passagem muito bonita em um lindo teatro em Porto Rico ganha destaque no documentário.
Ícone da moda? Figura pop? Rei dos memes foi por jovens que nunca o viram na tv? Cascateiro? Ingênuo? Walter Mercado pode ser definido por você leitor da forma como o enxergar mas uma coisa não tem como nenhum de nós negar: marcou a história da televisão mundial.
Free Solo (EUA, 2018)
Uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida. Contando a impressionante saga, e o grande desafio, de um dos mais habilidosos escaladores solo do mundo, Free Solo, o documentário vencedor do Oscar é uma jornada eletrizante por dentro das emoções de um homem e seu desejo peculiar. Tudo é muito bem feito nesse filme, as imagens são de tirar o fôlego, você se emociona, se diverte e não consegue tirar os olhos para saber como termina essa impressionante aventura. Um dos melhores documentários dos últimos tempos, vencedor de 23 prêmios internacionais. Disponível na Disney Plus.
O enredo desse Doc. é simples, somos apresentados a Alex Honnold, um escalador norte americano que pratica a escalagem sem cordas por meio de diversas paisagens enormes do chão ao topo. O sonho desse corajoso jovem é escalar ‘solo’, sem qualquer outro equipamento de segurança, as falésias de granito do El Capitan, no Parque Nacional de Yosemite que fica nas montanhas da Serra Nevada, na Califórnia, EUA. Mas a missão não será nada fácil, acompanhando o preparo mental e físico de Alex ao longo de um grande período, além do seu recente relacionamento que modifica demais o pensar do protagonista, o filme vai nos guiando em uma aventura inesquecível.
Os componentes que envolvem essa saga são de, seus amigos, sua família e sua namorada vão preenchendo as lacunas que ficam soltas, já que Alex é uma pessoa muito tímida e que pouco se abre. A partir do novo relacionamento com sua namorada, parece que há uma mudança no modo de pensar, medos inexistentes começam a surgir bem claramente a sua frente e por um triz todo o projeto de realizar essa escalada não tem um desfecho mais triste.
Produzido pela National Geographic, Free Solo, é antes de mais nada uma grande experiência, não só marcante na vida de Alex mas também para aqueles que tiverem a oportunidade de assistir a essa história marcante.
Siron. Tempo sobre Tela (Brasil, 2020)
A honestidade na arte de criar. Escrito e dirigido pelos cineastas André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos, Siron. Tempo Sobre Tela nos apresenta um profundo e impressionante raio-x sobre a criatividade de um dos maiores artistas plásticos de nosso país, Siron Franco. Com muitos depoimentos do próprio artista em uma espécie de narrativa intimista, o processo criativo é mostrado por várias óticas. Fontes de inspiração, meda da tortura, o pensar como uma peça de teatro, o fascínio com outras artes como o cinema, os fundamentos do sonho sobre à arte. Ao longo de cerca de 90 minutos somos premiados com memórias de sua intensa e bem vivida trajetória, tanto no lado profissional como no lado pessoal, declamadas belo lado do saudosismo. Disponível a partir do dia 25 de março em muitos streamings.
Em Siron. Tempo Sobre Tela, somos imersos ao universo desse grande artista brasileiro, fiel ao seu Goiás. Ele passou por tantas transformações como seu próprio Estado. Buscando fazer o bem e dedicando sua vida à arte acessamos memórias do seu arquivo pessoal, inclusive com um depoimento especial, em uma passagem rápida, do grande Ferreira Gullar que foi crítico de arte durante um tempo. Em um momento tocante, conhecemos as origens, inclusive filmadas do início de uma de suas obras mais famosas, em homenagem à cultura indígena e o absurdo pós destruição de quase 500 colunas onde podemos definir um paradoxo inimaginável sobre a intolerância de terceiros que não entendem nem um pingo do que aquilo tudo representava.
Um fato chama a atenção na afirmação de que ele lembra mais das coisas que já pintou do que já viveu. Nos faz refletir. A ferramenta do inconsciente com a chegada do cansaço, um processo que pelo relato de Siron deve ser bem difícil explicar mas pelas imagens em fundo podemos começar a ter uma ideia. Os sentidos abertos do sonho, a importância desse momento reflexivo que reflete à arte, também de muitos cineastas como David Lynch.
A importância desse documentário é gigante para novas gerações conhecerem artistas emblemáticos de nossa trajetória cultural. A arte, seja ela qual for, é uma conexão entre passado e presente, um exercício de liberdade do seu pensar sem cadeados não criativos contra a novidade após o ontem.
Currais (Brasil, 2021)
O silêncio apaga tudo. Um homem, sua Kombi e suas buscas por respostas da história de seu avô, a reconstrução da memória de uma região, por quem ainda se lembra dessa época terrível, fatos que parte da elite se esforça em ocultar. As margens de uma estrada de ferro e no alto do sertão morriam centenas de pessoas nos chamados campos de concentração (os currais do governo), lugares criados no início da década de 30, sob conhecimento do governo federal, onde flagelados da seca eram tratados com indiferença e discriminação pela elite que já morava na cidade de Fortaleza. Escrito e dirigido pela dupla de cineastas David Aguiar e Sabina Colares, modelado em uma mistura entre documentário e ficção, Currais apresenta relatos impactantes, impressionantes, surpreendentes, além de fotos antigas mostrando o que as palavras dizem ao longo dos cerca de 90 minutos de projeção.
Uma história real, onde campos de concentração, chamados assim mesmo, lugares onde pessoas de baixa renda e sem praticamente nenhuma escolaridade, além de pessoas que fugiam da seca de outras regiões eram mantidos confinados, milhares de pessoas em raios pequenos. Um formigueiro humano. Eles eram mantidos nesses lugares, sem alimentação básica, pagamentos, para não conseguirem chegar as grandes cidades ao redor de fortaleza. A dor e o sofrimento são marcantes nos relatos de conhecidos de sobreviventes e alguns até testemunhas oculares dos horrores praticados nesses currais onde as pessoas tentavam sobreviver pessoas, trabalhadores brasileiros, desesperados que foram esquecidos pela história.
Depois que você assiste a esse documentário, é muito difícil de tirá-lo da memória. Pensar que uma cidade se ergueu sob suor e sangue é assustador. Nosso país é enorme. Tantas histórias…e muitas delas desoladoras, tristes. Como um ser humano pode fazer isso com outro ser humano? Um capitalismo desenfreado, um elitismo esnobe e arrogante, entendemos o reflexo dessas atitudes até os tempos atuais se formos comparar com a questão social das favelas, pessoas que vivem à margem de uma sociedade privilegiada. O filme abre espaço também para mostrar a religião ganhando contornos culturais através dos devotos das almas da barragem. Um documentário/ficção arrebatador que diz muito sobre a história de nosso país.
Glória à Rainha (Geórgia, 2021)
A imersão profunda onde o tempo desaparece. Selecionado para a Competição Internacional de Longas e Médias-Metragens do Festival É Tudo Verdade de 2021, Glória à Rainha, dirigido pelas cineastas Tatia Skhirtladze e Anna Khazaradze conta a história de quatro das maiores enxadristas da história desse esporte, todas elas Georgianas e contemporâneas. Concentração, silêncio, o click do relógio. As dificuldades de deixar suas famílias para viajarem pelo mundo, histórias do treinamento intenso (cada uma delas perdia cerca de meio quilo durante um único jogo de xadrez), somos ouvintes de relatos/lembranças dos tempos de seus respectivos momentos grandiosos como reconhecidas enxadristas profissionais, algumas delas até disputavam torneios masculinos contra grandes mestres da época. Uma interessante jornada com mais uma certeza sobre a força das mulheres pelo mundo.
Em Rhodes, Grécia em 2019, no campeonato europeu de xadrez sênior, que começa essa jornada sobre as memórias e realizações, além do impacto social e de nomes no país que nasceram (muitos bebês na época de suas conquistas foram batizados com seus nomes). Encontros em diversos torneios pelo mundo, no vai e vem de lembranças sobre as carreiras de sucesso, principalmente durante o período de Guerra Fria, e os impactos que possuíram sobre todo um país que durante muito tempo pertenceu a União Soviética. Na Geórgia é comum presentear com um jogo de xadrez à noiva como parte do dote, essa entre outras curiosidades vamos acompanhando ao longo dos quase 90 minutos de projeção, aprendemos muito sobre a cultura desse país considerado antigamente como a Califórnia soviética, destino de muitos nas férias dentro da Antiga União Soviética.
O filme explora muito bem a força feminina da história desse país muito desconhecido por aqui. Exemplos não faltam, como: Santa Nino, que trouce o cristianismo para esse pequeno país antes do século V, o ‘Rei’ Tamar que na verdade era uma Rainha mas chamada de rei na Idade Média, e, no século XX as brilhantes enxadristas aqui mencionadas, famosas em todo o mundo pelo Xadrez. Além desses fatos, vamos acompanhando as consequências positivas dos feitos das esportistas não só para seu país e região mas também para esse esporte muito machista durante bom tempo.
Há 18 trilhões de movimentos em um jogo de xadrez, já imaginaram buscar controlar sua mente e seu corpo contra qualquer uma dessas variáveis? E os movimentos externos, guerra fria, união soviética, pressão, marketing unilateral feito pelo governo…? Glória à Rainha é um documentário atemporal que mostra muito através do olhar de corajosas e inteligentes mulheres.
Professor Polvo (África do Sul, 2020)
Tudo na vida tem começo, meio e fim. Um homem e seus conflitos em certa etapa da vida, consumido pelo stress de um cotidiano caótico em não encontrar um oásis dentro das obrigações que se amontoam em sua vida. Durante mais de 200 dias na África do Sul, resolve interagir todo esse tempo com um polvo e assim acaba embarcando em uma série de descobertas sobre como vive esse molusco de oito tentáculos e que possui uma série de ventanas. Uma narrativa detalhista, emocionante, que mexe com nossos campos reflexivos nos paralelos que encontramos entre as leis da vida de um polvo e nós que estamos fora da água. Professor Polvo, produzido pela Netflix, está concorrendo ao Oscar de Melhor Documentário em 2021.
Hipnotizante, inspirador. Uma história que pode parecer quando a gente lê a sinopse meio sem sentido, começa a mostrar porque é tão profunda quando começamos a entender as mudanças na maneira de pensar do mergulhador que se sente outro planeta debaixo da água. Acaba criando uma inusitada amizade com o polvo, esse que possui uma capacidade surpreendente e criativa de enganar seus inúmeros predadores. Ricas imagens preenchem a tela a todo instante, é como se estivéssemos dentro daquele pedacinho do oceano acompanhando de perto toda essa saga sem objetivo específico mas sempre surpreendente.
A parte onde descobrimos a força de vontade de se reconstruir é um clássico exemplo da vida, onde milhões espalhados pelo mundo precisam diariamente buscar suas chances de uma confortável trajetória em uma concorrência muitas vezes desleal mas mesmo assim, a maioria de nós, consegue de alguma forma (ou faz de tudo) sobreviver. Há mais paralelos: o sacrifício, a felicidade, as dificuldades, os obstáculos, nada de novo mas sempre com o olhar do inacreditável pelas intensas imagens que conseguimos acompanhar.
História de amizade, leis da vida, paralelos com os cotidianos espalhados por aí. Um dos grandes documentários dos últimos anos, despretensioso mas que consegue emocionar até os corações mais distantes de emoções.
Collective (Romênia, 2020)
O bom jornalismo está em muitos lugares, a fonte desse é a verdade. Prêmio de Melhor Longa-Metragem Documentário da Competição Internacional na edição 2020 do Festival É Tudo Verdade, Collective, de Alexander Nanau é um filme forte e corajoso. Um documentário investigativo mostrando quase em tempo real as chocantes descobertas e os desdobramentos de um fato que desencadeou uma crise feroz no Ministério da Saúde da Romênia. Um grupo de jornalistas tenta apurar e noticiar todas as portas que se abrem conforme vão avançando no caso. Detalhado e argumentativo, somos testemunhas de um golpe completo de um estado disfuncional, sua corrupção e seu sistema de saúde repleto de esquemas gananciosos.
Indiferença mata! Dilua a corrupção! Uma tragédia com mais de duas dezenas de mortos em uma boate na Romênia. Outras dezenas são levadas a hospitais romenos para cuidarem na maioria dos casos das intensas queimaduras que sofreram. Com a morte de muitos desses que foram para os hospitais, a partir de uma denúncia, um absurdo esquema é descoberto. Diluição de desinfetantes que são comprados pelos hospitais, o que prejudica a conter avanço/ação de fortes bactérias. Uma investigação mais profunda sobre o caso é de uma editoria de esportes, o que coloca em xeque também parte da imprensa.
Chocante. A ganância, o poder. Há um clima tenso durante todo o filme, que abre em vertentes que mostra a investigação de incansáveis jornalistas, uma troca no comando do ministério da saúde, um pai em luto e uma sobrevivente tentando buscar levantar sua vida após o trauma que viveu. Fugindo um pouco do foco, ou por outro ponto de vista até mesmo indo bem além da superfície, ou em outro abrindo portas de mais sujeira no sistema de saúde romeno ou até mesmo nas entrelinhas destacando a força do papel da imprensa, Collective é um filme importante e merece ganhar debates pelo mundo.
Gorbachev.Céu (Letônia/República Tcheca, 2021)
Se não eu, e se não agora, quem? Herói russo? Reconhecido por seus feitos em boa parte da Europa mas na Rússia não? Um bolchevique teimoso? Selecionado para a Competição Internacional de Longas do Festival É Tudo Verdade 2021, Gorbachev.Céu mostra opiniões e lembranças do oitavo e último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, gestor de uma grande reforma em sua parte comandada do mundo e que podemos dizer que deu um nó no planeta, responsável pela Perestroika e Glasnost em meados da década de 80. Vamos sendo testemunhas oculares de sua rotina, agora já mostrando diversas fragilidades que chegam com a idade avançada, além de termos uma grande aula sobre história mundial através desse hábil contador de histórias, uma figura histórica, mundialmente conhecida que ainda se vê como socialista tendo Lênin (Organizador do Partido Comunista Russo) como seu Deus. Dirigido pelo cineasta ucraniano Vitaly Mansky.
A modelagem do documentário é bastante ágil e dinâmica, uma entrevista cheia de caminhos e momentos de grande reflexão, praticamente a história da Rússia das últimas décadas passando na frente de nossos olhos através da opinião sempre firme desse ex-chefe de sua nação, filho de pai ucraniano e mãe russa. Mesmo demasiadamente curioso nos detalhes do apartamento do entrevistado, o documentário consegue preencher lacunas importantes sobre muitas das figuras políticas mencionadas por Gorbachev, o que acaba virando um ótimo complemento dos contextos detalhados de maneira bem simples e didática.
Alguns assuntos ficam com suas respostas jogadas pelas inúmeras entrelinhas, mesmo quando o entrevistador faz perguntas bem incisivas, como por exemplo a ampla questão sobre a democratização dos contornos após o fim da União Soviética e os detalhes de seu encontro com o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan. Mesmo com a Rússia voltando a não-liberdade como sua forma natural de existência, vemos a todo instante seu brilho no olhar desse ex-advogado que governou a União Soviética de 1985 até 1991, deixando o poder depois de traições e manobras políticas de figuras conhecidas do enorme país que tem em Moscou como sua capital.
Esse projeto deveria ser complemento escolar para todas as gerações que estão estudando as décadas recém passadas e todos os rumos, seus porquês, que o mundo tomou. Tem fatos que o cinema ensina em um ritmo fluente de narrativa objetiva que muitas vezes gera a sensação de estarmos folheando livros e mais livros.
Fuga (Flee, Dinamarca, 2021)
A amizade como ajuda na cura de feridas do passado. Baseado em fatos reais, uma história muito próxima do diretor desse projeto, o cineasta dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, consegue ser muito criativo usando a técnica de animação para criar um ambiente respeitoso e criativo para um homem pronto para contar sua história, esse que escrevia em um caderno velho suas verdades até aqui agora às vésperas de casar ele precisa enfrentar seu passado. Por meio de memórias e até algo parecido com um relaxamento, quase em ponto de hipnose, voltamos ao ano de 1984 em Cabul (Afeganistão), onde toda avalanche de situações dramáticas deram início na vida do protagonista. Descoberta de sua sexualidade, guerras civis, países saindo do comunismo, fugas e mais fugas. Somos testemunhas de uma incrível história que passa por muitas questões globais. Fuga, ou Flee no original, foi o filme de abertura do Festival É Tudo Verdade de 2021.
Não deixa de ser uma história contada por conta da amizade entre o diretor e seu protagonista, um velho amigo desde os tempos onde não muitos imigrantes chegavam na capital da Dinamarca, Copenhage. Amin, nosso protagonista, é um homem já pensando no pós-doutorado em Princeton (EUA) mas que ninguém perto dele sabe sobre seu passado, só que é afegão e chegou na Dinamarca e de lá nunca mais saiu. Decidido em enfrentar seu passado para poder oferecer seu amor em 100% ao seu namorado com quem pretende construir uma família e morar junto, ao amigo dos tempos de colégio resolve contar as suas verdades sobre como chegou até ali. Passamos a conhecer o Afeganistão e sua relação com a família, o misterioso sumiço do pai e uma fuga desesperada para fugir dos novos domínios da região onde vivia. Chega em Moscou, nessa fuga, enfrenta outro fato histórico mundial, na época que chega, um ano após o comunismo e testemunha de situações tristes: pessoas morrendo de fome, mercados sem nada, moeda desvalorizada, muitos crimes, polícia impiedosa. Nesse período até a chegada do Mc’Donalds à Rússia ele testemunha.
Paralelo as fugas que dominaram grande parte de sua vida, vamos conhecendo os pensamentos de Amin desde cedo. As histórias de aviação da irmã, mesmo que pudessem ser enormes invenções o deixava com as asas prontas para sonhar, sem nunca pensar que seus próximos dias, semanas, meses e anos seriam como se fossem um enredo de filme dramático, praticamente lutando para existir, fugindo de muitos males que encontra pelo caminho, buscando uma identidade mesmo que para isso a jornada tenha que ser feita sozinha, longe de todos que ama. Passa por dezenas de constrangimentos, se enche de vergonha sem saber ao certo como sobreviver em meio ao mundo que consegue enxergar até ali. Descobre sua sexualidade cedo, mesmo que até a adolescência ainda seja confuso para ele pois no Afeganistão os homossexuais ‘não existiam’, davam vergonha para a família, um lugar difícil de se aceitar ser gay.
Fuga (Flee) nos provoca reflexões que vão desde as políticas mundiais, os horrores de uma guerra civil descontrolada, sangrenta e impiedosa, o capitalismo, até os traumas que vivem dentro de nós e muitas vezes nos travam de seguir em frente. Contando suas verdades, Amin se liberta. É lindo ver isso diante de nossos olhos, como testemunhas de mais esse renascimento de um homem que merece demais que a paz e a felicidade nunca mais deixem de estar por perto.