A Archie Comics é casa de uma série de quadrinhos bastante populares – que originaram produções como ‘Riverdale’ e ‘Sabrina: Aprendiz de Feiticeira’. E, dentro desse panteão, existe uma subdivisão intitulada Archie Horror, que entregou uma das narrativas mais interessantes envolvendo a icônica bruxa Sabrina Spellman – sob um tom menos familiar e mais sombrio que conquistou fãs ao redor do mundo. Em 2018, a Netflix adquiriu os direitos de adaptação das HQs e escalou o criador e roteirista original para comandar um sólido live-action ao longo de 36 episódios que trouxeram um ótimo elenco às telinhas em histórias arrepiantes.
Arquitetada por Roberto Aguirre-Sacasa com a colaboração de Robert Hack, a trama é centrada em Sabrina (Kiernan Shipka), uma jovem feiticeira que, às vésperas de seu aniversário de dezesseis anos, deve tomar uma escolha muito importante: assinar seu nome no Livro da Besta e declarar sua total devoção ao Senhor das Trevas, Lúcifer Estrela-da-Manhã, e alcançar a plenitude de seus poderes como bruxa; ou recusar-se a participar do batismo de sangue, renegar suas habilidades e viver como mortal ao lado de seus verdadeiros amigos e seu namorado. Vivendo com as tias Zelda (Miranda Otto) e Hilda (Lucy Davis), e com seu primo mais velho, Ambrose (Chance Perdomo), Sabrina se vê em um beco sem saída e não se sente parte nem do mundo mortal nem dentro de seu clã – visto que é uma mestiça, isto é, filha de um bruxo com uma mortal.
Logo no primeiro capítulo, Sabrina mostra que veio para causar um grande impacto em ambos os universos ao não apenas renegar servir a um lorde que apenas em si próprio, como ao dizer com todas as palavras que pertence a dois cosmos diferentes e, ao mesmo tempo, complementares. Seguindo os passos do pai (que ela descobre não ser biológico com o decorrer da série), ela deseja reformular as doutrinas às quais as bruxas são submetidas, sendo subjugadas o tempo todo sem poder exercer seus plenos potenciais – mas isso atrai a ira de membros mais tradicionalistas e retrógrados do clã, como o Padre Faustus Blackwood (Richard Coyle), que trama um plano maligno para tirá-la de cena.
E isso não é tudo: uma outra ameaça aparece para tentar convencê-la de se render às trevas e aceitar quem realmente é, emergindo na materialização de Lilith, a Mãe dos Demônios, que toma posse do corpo da Srta. Wardwell (Michelle Gomez), professora da Escola Baxtor frequentada por Sabrina e seus amigos. Lilith, que mascara quem realmente é como uma suposta aliada de Sabrina e da família Spellman – mas é centro de eventos misteriosos que procuram forçá-la, dia após dia, a abraçar a escuridão que habita dentro dela. E cabe à própria protagonista navegar por inúmeros perigos que ameaçam o sua vida e a vida daqueles que ama (e o equilíbrio entre os reinos).
Ao longo de duas temporadas divididas em quatro partes, Aguirre-Sacasa faz um ótimo trabalho em adaptar os quadrinhos que ele mesmo assinou – trazendo um certo ar de contemporaneidade e de nostalgia que coloca o cenário principal da narrativa, a cidade de Greendale, fora do tempo como o conhecemos. E, acompanhando-o nessa empreitada, Shipka faz um sólido trabalho ao encarnar Sabrina, pincelando-a com uma identidade única e apaixonante que perpassa pelas complexidades do ser humano com fluidez invejável – e que a coloca no centro dos holofotes em todas as cenas que aparece.
E, enquanto Shipka brilha sozinha ao mesmo tempo que desfruta de uma química gigantesca com seus colegas de elenco, que incluem Ross Lynch como Harvey Kinkle, seu interesse amoroso e um dos amigos mais próximos; Jaz Sinclair como a sagaz Rosalind Walker e Lachlan Watson como Theo Putnam, seus dois melhores amigos; Tati Gabrielle como Prudence, líder do trio de bruxas conhecida como as Irmãs Estranhas e que nutre de um arco de enemies-to-allies dentro do escopo da série; e Gavin Leatherwood como Nicholas Scratch, um poderoso feiticeiro que logo conquista o coração de Sabrina e se torna peça essencial para o coming-of-age de Sabrina.
O trabalho performático é inegável e nos enche com falas muito bem construídas e uma ácida ironia que acompanha cada um dos personagens, por mais distintos que sejam: Otto é outra a nos roubar a atenção toda vez que abre a boca para um conselho rigidamente maternal que dá à Sabrina, incorporando uma protetora e austera Zelda que tem o coração no lugar certo e que só quer o melhor para sua sobrinha; Davis serve como contraponto ao encarnar a divertida Hilda, que prefere enxergar a vida com todas as cores que ela entrega, mas transforma-se em uma fera mortal quando ameaçam sua família; e Gomez brilha como Lilith, nos convidando para acompanhar uma das antagonistas mais bem escritas da década passada, que mistura incursões noventistas aos arquétipos de Femme fatale com exímia perfeição.
Ao longo dos capítulos, percebemos que o showrunner tem uma visão muito clara em mente. Não é por qualquer razão que exista um estilo único que pende para um estilo onírico e sobrenatural, infundido grande parte das cenas em um filtro propositalmente borrado que reitera a atmosfera esotérica – ainda que o exagero fale mais alto em certos momentos. E, ao apostar em um claro espectro de mistério, suspense e horror, Aguirre-Sacasa opta por cores quentes como vermelho, laranja e amarelo em composição à falsa sensação de segurança do marrom e do preto.
Apesar de momentâneas falhas, ‘O Mundo Sombrio de Sabrina’ permanece como um dos maiores acertos recentes da Netflix e que compele os fãs de séries de fantasia a apreciá-la em sua completude. Contando com ótimas atuações e uma sólida história contada com a dose certa de preciosismo e de capricho, visitar o arrepiante mundo da família Spellman é sempre um convite bem-vindo.