Roald Dahl é responsável por alguns dos melhores romances infantis de todos os tempos, incluindo ‘James e o Pêssego Gigante’, ‘Matilda’ e o clássico e muito conhecido ‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’. Tal obra foi adaptada com grande sucesso em um incrível musical estrelado por Gene Wilder como o protagonista Willy Wonka, tornando-se um dos filmes mais memoráveis de Hollywood e influenciando a criação de diversos outros produtos literários e audiovisuais, além de endossar mais uma vez a versatilidade do ator na indústria. Como já era de se esperar, tal narrativa estava fadada a ganhar um moderno remake para se aproximar da nova geração de espectadores que começava a comandar as rédeas da criação cinematográfica, seguindo também o padrão da virada do século que trouxe essa necessidade de releitura.
Pensemos no escopo narrativo: um chocolateiro excêntrico que é dono da maior fábrica de doces do mundo resolve reabrir as portas para a visitação de cinco sortudas crianças que encontraram um passe dourado escondido nas barras de chocolate. Essa ideia é mágica, aventuresca e até mesmo interessantemente bizarra; logo só haveria um nome que conversasse diretamente com tal estética – Tim Burton. Considerando sua perspectiva nada convencional para os gêneros fílmicos, ele tinha absolutamente todas as peças necessárias para fornecer uma roupagem diferente a esse clássico e colocar seus geralmente agradáveis maneirismos dentro das telonas. Infelizmente, não é isso o que acontece – e ele nem mesmo carrega a culpa total disso.
Diferentemente da obra de 1971, a nova iteração não preza por uma cronologia linear: através de uma várias montagens paralelas com o uso do flashback e o retorno de um narrador-personagem-onisciente (visto, por exemplo, em ‘Peixe Grande’), as tramas procuram trazer a história dos protagonistas, explicando os seus motivos, as suas aspirações e o que os levaram a estar naquele lugar. De certa forma, tal didática funciona, ao menos até a metade do segundo ato: o escopo externo, que se passa na provável cidade de Londres, é pautado por uma paleta de cores azulada, fria e que reflete a miséria de grande parte da população, principalmente pela constante austeridade cênica. A história principal se passa ao redor de Charlie (Freddie Highmore) e da família Bucket, os quais vivem em um sobrado caindo aos pedaços em meio a um terreno abandonado. Todos ali lutam para sobreviver e para trazer o mínimo de conforto para um lar habitado por sete pessoas.
Nesse momento, o narrador aproveita para desmascarar algumas coisas que não são visíveis por todos e para buscar complexidade para seus personagens, que em grande parte são agradáveis e envolventes. Os arquétipos dos guardiões para o pequeno Charlie insurgem nas figuras do Sr. e da Sra. Bucket, interpretados respectivamente por Noah Taylor e Helena Bonham Carter, cuja sutileza e simplicidade são simplesmente cativantes. Mas sem dúvida é a figura do Vovô Joe (David Kelly) que rouba a cena, seja por sua caracterização delicada entrando em contraste com a energia de sobra que tem pelo tempo permanecendo deitado na cama ao lado de sua esposa e dos outros avós do garoto. Tal figura também sofre uma explicação de suas raízes, incluindo seu tempo trabalhando na fábrica de Wonka e como inúmeros espiões invejosos se adentraram nas instalações para roubar as receitas e produzirem versões mais “acessíveis” e “baratas” dos famosos doces.
As engrenagens voltaram a funcionar repentinamente e atraíram a atenção de todos – tanto que o chocolateiro resolveu emitir bilhetes dourados para convidar cinco crianças para visitarem a fábrica, com apenas uma delas cotada para ganhar um prêmio incrível ao final da visitação. E é claro que Charlie encontra, aos quarenta e cinco do segundo tempo, o último ingresso, levando seu avô consigo para uma jornada única e nostálgica, ao mesmo tempo – visto que duas gerações diferentes estão prestes a entrar pelos portões de ferro.
Não há exatamente antagonistas dentro da trama, mas sim pessoas (crianças, mais precisamente) que não se mostram dignas de pertencerem ao mágico mundo criado por Wonka. Cada uma delas carrega os trejeitos dos pais, tornando-se mimadas, ávidas, ambiciosas e egocêntricas ao ponto de ficarem cegas perante o misticismo que se estende diante delas. O problema é que, ao contrário do longa encabeçado por Mel Stuart, Burton não dá tempo necessário para que a personalidade desses personagens encontre um ambiente amplo o suficiente para se desenvolver ao completo, permanecendo na superfície com esparsas faíscas de ápice dramático. Até mesmo a entrada de Christopher Lee como o pai do chocolateiro não traz o peso necessário para sua backstory, ainda que a presença do ator seja memorável e quase assustadora.
Infelizmente, o deslize maior emerge em seu personagem principal. Johnny Depp não se entrega de forma completa ao papel que lhe foi entregue, e não por falta de um material-base considerável e sólida. Willy Wonka é um excêntrico empreendedor que nunca foi compreendido por sua visão anarquista e visionária, tanto que tornou-se alvo de críticas e de forças externas que quase destruíram seus sonhos. Wilder encarnou de forma perfeita tal figura ao transformá-lo em uma pessoa ao mesmo tempo acolhedora e sombria, dotada de uma loucura inebriante e uma negligência pessoal e desequilibrada, configurando-o como alguém dotado de dualidade. Depp, por sua vez, recorre à canastrice e a trejeitos irritantes que deixam o chocolatier infantiloide ao extremo.
Talvez um dos pontos de maior louvação seja a trilha sonora: Danny Elfman retorna em mais uma colaboração com Burton e conversa com sua estética amalgamada para criar um pano de fundo que resgata todas as obras anteriores do diretor. Utilizando desde os componentes futuristas, como as elipses sonoras e techno, até a entrada de instrumentos clássicos, incluindo o piano e o violoncelo, o arco sonoro preza por uma atemporalidade única que conversa com a interessante estética dos cenários: não sabemos exatamente em que época se passa a trama – e essa nem mesmo é a ideia.
‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’ é um remake desnecessário que peca mais que acerta. Ainda que Burton explore suas raízes cinematográficas, ele não consegue mergulhar completamente no cosmos criado por Dahl e mostra um equívoco irreversível ao escalar Depp para o personagem principal – que deixa-se levar para uma vertente cansativamente irreverente.