quinta-feira, abril 18, 2024

A Guerra Fria e a Sétima Arte | O Cinema no Centro da Política

A indústria do entretenimento teve grande importância durante a Guerra Fria para ambos os lados da disputa

“Cavalheiros, vocês não podem brigar aqui! Essa é a sala de guerra”

Em meio a pandemia causada pelo COVID-19, a busca por uma vacina se tornou objeto de interesse máximo de todas as grandes potências; mais especificamente China, Estados Unidos, Alemanha e Rússia. Essa “corrida” ganhou um novo capítulo com o anúncio do governo russo de que uma vacina havia sido desenvolvida e que eles irão patenteá-la. Com isso, a Rússia poderá conquistar uma posição vantajosa na nova configuração internacional.

Esse quadro pode ser encarado como uma segunda disputa entre EUA e Rússia, tendo sido a primeira conhecida como Guerra Fria. Por não ter havido uma disputa militar direta entre as duas superpotências durante o período por razões de destruição mútua, o embate se deu em áreas diversas: influência política em países subdesenvolvidos, espionagem, guerras por procuração (aquelas em que nações maiores se utilizam de outras menores ou grupos paramilitares para se digladiarem sem jamais haver contato direto) e no cinema.

No artigo The Cinema: American Weapon for the Cold War o crítico de cinema Pierre Sorlin estabelece que em meados do século XX a indústria cinematográfica tinha uma forte influência junto ao público. “Entre 1948 e 1961, o cinema era simultaneamente uma fonte de informação e um meio de modelar a perspectiva do público sobre o mundo contemporâneo. As produções eram primeiramente produzidas em países ocidentais, especialmente na Europa, onde eles contribuíram para formar a opinião pública”.

A telona já possuiu uma influência incontestável no público

Nos Estados Unidos a indústria do cinema, representada por Hollywood, teve um papel importante para o país na primeira metade do século servindo para manter o moral da população em alta durante o período da Grande Depressão de 1929 – com filmes geralmente do gênero musical estrelados por Fred Astaire e Ginger Rogers, comédias com Charles Chaplin e Buster Keaton, ou dramas românticos com Clark Gable e Katharine Hepburn.

Uma década depois, serviu como a propaganda de guerra perfeita para colocar o país em marcha após os ataques a Pearl Harbor pelos japoneses no pacífico e nas fileiras da Europa contra o eixo, como nos curta-documentários sobre os exércitos inimigos produzidos por nomes como Howard Hawks ou por dramas de guerra como Casablanca.

A partir do início da Guerra Fria, com a consolidação de um novo inimigo, a postura do cinema nacional passou a ser o de contra-atacar o estilo de vida dos governos do leste. Para fazer essa investida as produções iam desde comédias que cutucavam o estereótipo do russo como em Cupido Não Tem Bandeira (filme de 1961 dirigido e escrito por Billy Wilder), passando por intricadas tramas de espionagem que marcaram bastante o período representadas em Intriga Internacional (uma das obras-primas de Hitchcock e sua primeira incursão em temas politizados), O Espião Que Veio do Frio e, focando especificamente, a era Connery nos filmes do 007. Porém, houve também um filme em particular que se notabilizou pela autocrítica feita ao próprio país.

Intriga Internacional é um dos grandes clássicos de espionagem

“Talvez eu volte a te odiar. Era mais divertido assim”

Nessa mesma época o cinema também presenciou a estreia de uma obra que, mais do que qualquer outra, captou o espírito do conflito ocidente\oriente e lhe representou com um ar de insanidade cômica: Dr. Fantástico de 1964. A sátira dirigida e co-escrita por Stanley Kubrick se passa no meio de um momento de crise entre EUA e União Soviética com as notícias de que os russos possuem uma misteriosa super arma e para resolver a questão um gabinete de crise americano convoca representantes do regime comunista para uma negociação que se mostra como um choque de estereótipos que um lado tem do outro.

Realizado dois anos após a Crise dos Mísseis de Cuba, Dr. Fantástico pegou uma platéia ainda muito sensível com o medo do holocausto nuclear e em nada ajudou sua aceitação ter uma história que levantava a hipótese de que uma guerra nuclear poderia ocorrer com ou sem autorização do presidente. Em 2014, Eric Schlosser (autor do livro Command and Control: Nuclear Weapons, The Damascus Accident and the Illusion of Safety sobre o sistema de armas nucleares americanos) escreveu um artigo sobre a obra de Kubrick para a revista New Yorker.

Não deixe de assistir:

O fim do mundo e a irresponsabilidade política são fontes de piada em Dr. Fantástico

Intitulada Almost Everything in “Dr. Strangelove” Was True o texto de Schlosser rechaça muitas das críticas tecidas ao filme, ainda nos anos 60, sobre a facilidade com que tal catástrofe poderia ocorrer. “Apesar das garantias à população de que tudo estava sob total controle, no inverno de 1964, enquanto Dr. Fantástico estava em cartaz e sendo condenado como propaganda soviética, não havia nada que pudesse prevenir um bombardeio americano ou uma tripulação de lançamento de míssil de usarem suas armas contra os soviéticos”.

A comédia de humor negro também fora muito criticada, à época, por retratar não só o alto comando do exército americano como toda a Força Aérea como um punhado de indivíduos insanos que não só expõem segredos militares a oficiais soviéticos como também participam de conflitos entre si mesmo, quase que em disputas entre facções internas. Essa reflexão de Kubrick sobre a questão muito particular do lado ocidental da disputa contrastava com a situação do outro lado da cortina de ferro.

“Da Rússia com Amor”

Diferente do ocidente, em que um cineasta tinha muito mais recursos para expressar suas opiniões, no antigo bloco do leste a situação era outra. Os mecanismos de censura da União Soviética se dividiam em várias seções, cada uma voltada para uma área potencialmente insurgente. Para o cinema havia a Goskino USSR (abreviação para Comitê do Estado para o Cinema) como órgão repressivo responsável.

Desde seu nascimento o cinema soviético já sofria com a ameaça da censura

O mesmo, tendo surgido em fins do século XIX mas se consolidado realmente no início do XX, representou uma ferramenta primorosa para cimentar o novo governo bolchevique pós revolução de 1917. Esse fenômeno cultural novo e teoricamente zerado de influências prévias diferia em muito da literatura e teatro, ambos já sendo meios culturais historicamente presentes, que tanto Marx quanto Lenin condenavam como produtos de controle burguês.

Esse posicionamento foi defendido por Lora Hamilton no artigo científico Cinema During the First Two Decades of the Soviet Union: How Censorship of the Arts Inhibits the Dissemination of Information que também aponta qual o objetivo do governo para com o cinema. “O que estava claro era que questionar a validade do regime soviético ou da revolução era inaceitável. O partido estava ameaçado pelo pluralismo cultural e sentia que esse pluralismo precisava ser extinto… a todos os filmes eram requeridos que tivessem uma positiva ou alegre conclusão, o que levou ao excesso de filmes que lidassem com assuntos contemporâneos”.

O modelo de controle soviético também mirou grandes nomes do então cinema russo, um dos exemplos mais conhecidos é o de Andrei Tarkovsky. Durante grande parte da sua filmografia o cineasta sofreu com interferências de esferas superiores do estado, mesmo quando algumas de suas obras como A Infância de Ivan e Solaris receberam prêmios importantes em grandes festivais como Veneza e Cannes o diretor ainda estava sob a mira da censura nacional.

Apesar das interferências externas, Solaris se tornou um dos filmes russos mais conhecidos dentro e fora do país

Conforme as décadas avançavam e a relação entre EUA e União Soviética variava entre altos e baixos, o cinema entrava na mesma “dança”. Isso principalmente nos anos 80 quando a relação de ambos voltou a esquentar mais e o cinema de ação fez sua fama no ocidente. Não era incomum encontrar obras como Rocky IV, Amanhecer Violento, Rambo II: A Missão dentre outras que incentivaram alguma espécie de colisão direta entre os dois países.

Do lado soviético, no entanto, os americanos nunca protagonizaram um papel antagonista tão claro quanto o dos russos em Hollywood. Haviam versões russas de ícones do cinema americano em filmes como The Detached Mission (que apresentou uma versão russa do Rambo) ou do estilo de vida capitalista de uma maneira mais abrangente.

O “Rambo” soviético interpretado por Mikhail Nozhkin

O crítico de cinema russo Ignatiy Vishnevetsky apontou em seu artigo The villain gap: Why Soviet movies rarely had Americans bad guys publicado no jornal AV Club, em 2016, que a diferença de visão de mundo entre as superpotências correspondeu para isso. “…Sendo um estado de partido único, a União Soviética sempre foi factual e insustentável, e podia perpetuar sua existência unicamente por meio de ciclos de repressão e repúdio. Suas ansiedades eram mais dirigidas para si mesma; enquanto os americanos criaram fantasias sobre ameaças, a União Soviética criou fantasias sobre estabilidade e perpetuação mundial…”

Desde sempre o cinema é percebido como uma forma de entretenimento altamente consumível mas também como ferramenta política extremamente eficaz. Seu formato permite contradições explícitas como críticas abertas à postura do país em que tal filme é realizado ao mesmo tempo que pode se tornar uma forma de propaganda positiva igualmente volátil.  

 

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