A infinitude de possibilidades que o artifício da viagem temporal traz a qualquer narrativa já foi utilizado como tema bem aproveitado em diversas mídias, como o audiovisual, em especial o cinema. O que vem sem titubear à mente é a trilogia De Volta para o Futuro – ícone do cinema entretenimento que possui como núcleo de sua história justamente a viagem pelo tempo. Hoje, até mesmo colossos como a Marvel Studios resolveu brincar com as linhas temporais em seu universo cinematográfico (algo que era comum nas suas HQs). A rival DC/Warner fará o mesmo no filme do Flash este ano. Criativo e repleto de possibilidades, o artifício da viagem no tempo é o meio de conectar passado, presente e futuro, apostando quase sempre na nostalgia, certa melancolia e muita emoção.
O que muitos talvez não saibam é que grande fonte de inspiração para De Volta para o Futuro, assim como toda história moderna sobre deslocamento temporal, voltas ao passado e acesso ao futuro teve influência direta do livro A Máquina do Tempo, escrito pelo especialista em ficção científica H.G. Wells, e publicado ainda 1895. Wells, é claro, foi também responsável por trabalhos literários atemporais que seguem dando frutos até hoje, vide O Homem Invisível, Guerra dos Mundos e A Ilha do Dr. Moreau.
A Máquina do Tempo ganhou algumas versões em diferentes mídias desde sua criação, como por exemplo programas de rádio, histórias em quadrinhos, filmes feitos para a TV, tentativas de séries e, claro, produções para o cinema. Até mesmo na forma literária o próprio Wells criou uma espécie de pré-sequência intitulada When the Sleeper Wakes, lançado em 1899 – que faz parte do mesmo universo e serve para entender um pouco o cenário apresentado em A Máquina do Tempo, mesmo sem ter uma ligação oficial. Outros autores igualmente absorveram o trabalho de Wells e deram continuidade para sua clássica história. É o caso com The Time Ships, de 1995, escrito por Stephen Baxter, que teve a moral de se tornar a continuação oficial do clássico, canonizado pelos representantes de H.G. Wells.
No cinema, A Máquina do Tempo possui duas versões famosas. A primeira, de 1960, é dirigida por George Pal (produtor de Guerra dos Mundos, 1953) e pegou carona na febre da ficção científica que havia tomado Hollywood durante a década de 1950. A segunda e mais recente é uma superprodução da Warner que está completando 20 anos de lançamento em 2022. O longa está disponível na plataforma de streaming da HBO Max (que contém os lançamentos da Warner) para todos que quiserem conferi-lo. Talvez muitos sequer tenham ouvido falar sobre este blockbuster, que foi produzido em parceria com a Dreamworks Pictures pelo orçamento de US$80 milhões – o mesmo valor de algumas das grandes produções da época. Como mais nada foi feito com a propriedade desde então e como outros materiais de Wells continuando gerando lucro, como séries de Guerra dos Mundos e a elogiadíssima nova versão de O Homem Invisível, da Blumhouse; está mais do que na hora da Warner se mexer e investir novamente no produto promissor, quem sabe desta vez na forma de uma série para sua plataforma. Assunto é o que não falta.
A trama de A Máquina do Tempo apresenta um brilhante homem da ciência. Um estudioso que perde o amor de sua vida para a violência urbana já na Nova York de 1899. Desolado, ele passa os anos seguintes aprimorando seu mais novo experimento, uma máquina (similar aos automóveis da época) capaz de se locomover no tempo-espaço. Assim, ele consegue retornar para o dia antes do assassinato de sua amada e impedir o crime. Porém, misturando espiritualidade com ciência, a proposta aqui é que não podemos mudar o inevitável. Assim, por mais que o Dr. Alexander Hartdegen (no livro apenas creditado como “o viajante”) tenha impedido o destino de sua companheira momentaneamente, a hora dela chega eventualmente não importa o que ele faça. Novamente com mais dúvidas e sofrimentos do que respostas na cabeça, ele decide se enveredar ao futuro desta vez, para tentar solucionar esta questão.
Assim, o cientista avança no tempo e quando não encontra as respostas que procura, segue adiante. Um acidente, no entanto, faz com que ele perca o controle de sua engenhoca e termina jogado 800 mil anos no futuro. Já pensou? É nesta nova realidade pós-apocalíptica que a maior parte da história de A Máquina do Tempo concentra-se, para desenvolver sua grande analogia social. Neste cenário tipicamente apresentado em ficções científicas sobre realidades desoladas, vide Mad Max e Eu Sou a Lenda, o protagonista acorda e conhece os novos humanos. Chamados Eloi, esta nova raça de humanos é extremamente ingênua, e no livro vivem sem grande propósito, a não ser se alimentar e procriar. No blockbuster de 2002, os Eloi são praticamente uma tribo de nativos americanos. A outra espécie, como os familiarizados devem saber bem, são os antagonistas aqui: os Morlocks. Eles vivem nos subterrâneos e provém comida, vestimentas e conforto aos Eloi, já que trabalham nas máquinas que sustentam o mundo. Os Morlocks se desenvolveram para se tornar criaturas horrendas e grotescas, bestiais. E de tempos em tempos, os Morlocks perturbam a vidinha perfeita dos Eloi, os caçando para come-los.
A analogia de H.G. Wells em sua obra é clara sobre sua previsão do futuro: a burguesia contra a classe trabalhadora. A burguesia depende da classe operária para continuar desfilando sua beleza e seu estilo de vida. A classe trabalhadora é a base do estilo de vida “vazio” e belo, porém, a burguesia eventualmente será comida por eles. Diversas obras atuais enfatizam a luta de classes, desde o vencedor do Oscar Parasita (2019) até o blockbuster Pantera Negra, como tema de suas narrativas. Ou seja, o tema utilizado por Wells debaixo do manto da ficção científica se mostra mais atual do que nunca para uma nova investida. O segredo de sua obra famosa é justamente esse: ao buscarmos respostas para determinada questão, poderemos nos deparar com outras dúvidas que podem desviar nosso caminho.
Esta versão de vinte anos atrás foi significativa por alguns motivos. O principal deles, e que vendeu o projeto para a Warner foi a direção de Simon Wells, especialista em animação, tendo comandado O Príncipe do Egito (1998) para a Dreamworks, que também calha de ser o bisneto do autor H.G. Wells. Ou seja, o sobrenome não é apenas coincidência. O roteiro foi adaptado por John Logan, responsável pelos textos de A Invenção de Hugo Cabret e 007 – Operação Skyfall.
Por outro lado, um dos fatores responsáveis por não chamar o público almejado pela produção foi a falta de nomes famosos no elenco. O escolhido para protagonizar e carregar basicamente o filme nas costas foi o australiano Guy Pearce, então saído dos sucessos Priscilla – A Rainha do Deserto (1994), Los Angeles – Cidade Proibida (1997) e Amnésia (2000). Apesar do grande valor cult destes longas, Pearce era um nome ainda desconhecido do grande público. O único nome de real peso no elenco é o de Jeremy Irons, que está no filme apenas por alguns minutos na cena final, como o líder dos Morlocks. Terminando o elenco principal, a cantora e atriz Samantha Mumba, a Eloi Mara, que emergiu para seus quinze minutos de fama e retornou ao anonimato.
Existiu uma certa polêmica envolvendo o visual dos Morlocks no filme e a empresa que os criou, o estúdio do saudoso Stan Winston. A produção foi problemática e houve falha de comunicação entre os realizadores e a empresa de efeitos e maquiagem. No fim das contas, a criação dos Morlocks (o sonho para qualquer técnico em efeitos) foi renegada pela companhia de Stan Winston por não ter ficado do jeito que imaginaram originalmente. Fora isso, a produção foi empurrada de dezembro de 2001, para março de 2002 por atrasos, o filme precisou ter cenas cortadas (como uma chuva de meteoros na cidade que poderia remeter ao recém-ocorrido atentado terrorista de 11 de setembro de 2001) e até mesmo o diretor Simon Wells se afastou da produção por motivo de exaustão, sendo substituído no fim das filmagens por Gore Verbinski (que no mesmo ano lançaria o terror O Chamado e no ano seguinte, o primeiro Piratas do Caribe) – retornando depois para a pós-produção. Até mesmo Steven Spielberg, que filmava Inteligência Artificial para a mesma Warner na época, ofereceu ajuda em alguns dos visuais. E por falar em visual, a criação mais cara do filme foi mesmo o design da máquina do tempo.
Em sua estreia nos cinemas dos EUA, A Máquina do Tempo foi bem e com US$22.6 milhões no fim de semana em bilheteria descolou o primeiro lugar do ranking, desbancando o campeão anterior, o drama de guerra com Mel Gibson, Fomos Heróis. A força de A Máquina do Tempo, no entanto, só diminuiria, sendo jogado para quarta posição na semana seguinte com as estreias de A Era do Gelo, Resident Evil – O Hóspede Maldito e Showtime; para sétimo com a estreia de Blade II e o relançamento de E.T. – O Extraterrestre; e finalmente saindo do ranking em décimo terceiro após os lançamentos de O Quarto do Pânico, Desafio do Destino, Clockstoppers – O Filme e Morra, Smoochy, Morra.
Com um orçamento de US$80 milhões, A Máquina do Tempo sequer se pagou nos EUA, terminando sua estadia nos cinemas norte-americanos com US$56.8 milhões em bilheteria. Ao redor do mundo foi um pouco melhor, com um total de US$123.7 milhões, mesmo assim permanecendo bem longe do sucesso esperado. Para termos uma ideia esse foi o mesmo ano que viu nascer sucessos do nível de Homem-Aranha, de Sam Raimi, MIB – Homens de Preto 2, Triplo X, Harry Potter e a Câmara Secreta, O Senhor dos Anéis – As Duas Torres, Star Wars – Ataque dos Clones, e 007 – Um Novo Dia para Morrer.
Com o slogan de “Para Onde Você Iria?”, essa talvez seja a pergunta que os engravatados da Warner e da HBO Max estejam se fazendo neste momento, pois numa Hollywood regida por marcas pré-estabelecidas, perder tempo com uma propriedade potencialmente lucrativa é o mesmo que… bem, você já sabe.