Lewis Carroll é responsável por nos apresentar a uma das mais clássicas e grandiosas obras da literatura, cujas vertentes psicanalíticas inspiram diversos artistas contemporâneos. Sem sombra de dúvida, ‘Alice no País das Maravilhas’ vai muito mais além que uma jornada épica de uma garotinha através de um mundo subterrâneo governado pela tirana Rainha de Copas, configurando-se como um mergulho em questões como autodescobrimento, amadurecimento e loucura, visto que cada um dos personagens criados pelo autor representa um arquétipo e uma força-motriz de sua compulsória personalidade.
Como se não bastasse, o nome de Carroll foi endossado não apenas por sua transgressão narrativa, a qual também se relaciona em grande parte com o surrealismo literário, mas pelo legado e pela contribuição ao imaginário popular. Não é à toa que suas ideias tenham se transformado em uma incrível adaptação cinematográfica pelos estúdios Walt Disney, obtendo um êxito inenarrável e criando um escopo imagético psicodélico que conversasse com as hábeis palavras do romancista, traduzindo-as perfeitamente para as telonas. E como parte de uma nova investida mais modernizada, a mesma companhia resolveu realizar mais uma releitura, dessa vez com o objetivo de fornecer uma perspectiva inusitada que trouxesse uma versão adulta da personagem-título. Entretanto, apesar das boas intenções, o longa-metragem sequer passa raspando em uma homenagem consideravelmente boa, explorando o inexplorável e criando respostas que nunca deveriam existir em primeiro lugar.
Tim Burton retorna para mais um projeto que tinha tudo para combinar com sua estética bizarra e mórbida, talvez até mesmo colocando camadas nunca antes vistas em adaptações anteriores. E, bom, se há algo que normalmente vem acompanhado do nome do diretor é o uso constante de efeitos especiais – e devo dizer que, apesar de afastar da própria concepção profusamente colorida estilizado por Carroll, ele ainda consegue trabalhar com exímio cuidado, principalmente no tocante à presença de cenários tortuosos, ondulados e assimétricos. Além disso, é notável a utilização da névoa, um elemento semântico de obras do gênero, as quais prezam pelo misticismo e pela gradativa compreensão do sobrenatural e do impossível. Burton também aproveita para fazer um jogo de luz e sombra que entra em constante debate com a paleta de cores, visto que o cenário manchado com tons pesados ou alaranjados, representando os intermináveis conflitos daquele território, se contradiz aos elementos mais saturados.
Apesar da preocupação imagética, o diretor se esquece de um dos pontos principais de uma investida fílmica que permite a conexão entre obra e público: a história. Em colaboração com Linda Woolverton, cuja filmografia inclui o atemporal ‘O Rei Leão’, ambos resolvem aproveitar do material não apenas de um romance, mas também da continuação direta intitulada ‘Alice Através do Espelho’, talvez como forma de juntar ambas as ideias – que originalmente são opostas entre si e não dialogam a não ser pelo absurdo cênico – em algo que se pareça com uma ficção fantástica e uma aventura sobrenatural, mas que fica oscilando sem uma identidade própria em meio ao universo cinematográfico. Essa amálgama desenfreada de personagens e estilos é um equívoco por não permitir a existência das tão necessárias brechas, nem para a audiência, nem para a narrativa em si.
Alice Kingsleigh (Mia Wasikowska) agora é uma jovem moça de dezenove anos que lida com o fato de sua mãe tentar lhe arranjar um marido e colocá-la nos mesmos trilhos tradicionalistas de sua irmã mais velha. Ela não se recorda de sua viagem quando criança para o místico mundo de Maravilha, associando o frenesi de fragmentos com pesadelos – mas isso não importa realmente; apesar de sua irreverência, ela é trazida obrigatoriamente para a bruta realidade que a aguarda, engessada nas horríveis figuras de Lady Ascot (Geraldine James) e seu filho, Lorde Hamish (Leo Bill). Aqui já vemos algo que não condiz com o que deveria acontecer: Alice é uma adulta e deveria se portar como tal, ainda que não aceite o conservadorismo da sociedade em que vive. Entretanto, sua caracterização infantiloide tira qualquer credibilidade que nós possa passar como alguém moldado por forças externas, e a tentativa de deixá-la imutável em relação ao seu mais jovem torna-se ridícula.
Assim como a animação original, a protagonista se encontra com o Coelho Branco (Michael Sheen), o qual a guia até o famoso buraco que funciona como entrada para o mágico mundo de Maravilha. Entretanto, ela já esteve lá e, diferente de quando criança, encara tudo aquilo como um sonho do qual não consegue acordar. Ela não se recorda de absolutamente nenhuma das aventuras e causa dúvidas quanto à veracidade de quem realmente é para inúmeros personagens, incluindo a lagarta hedonista Absolem (Alan Rickman) e até mesmo o otimista Chapeleiro Maluco (Johnny Depp). Sabemos que Alice retornou para um propósito, o qual nos é revelado no começo da trama: o governo totalitarista da horrenda e cabeçuda Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), que usurpou o trono de sua irmã, a Rainha Branca (Anne Hathaway).
É aqui que as divergências começam a aparecer: apesar do título se referir à obra mais famosa de Carroll, as duas Rainhas não pertencem a esse universo. Ambas vivem, ou ao menos viviam, na realidade atrás do espelho, cujo principal tema estético inclinava-se à dualidade preto-no-branco do xadrez, enquanto Maravilha expande sua mitologia para o mesmo funcionamento de um deck de cartas de baralho. A narrativa segue um padrão, ainda que sem ritmo, até o final do primeiro ato, onde encontra inúmeras barreiras que simplesmente não deveriam existir: Woolverton procura, como supracitado, encontrar soluções que simplesmente não podem ser achadas para os personagens, visto que nem mesmo o autor se preocupou em procurar algo palpável e tangível para suas construções.
De qualquer modo, as atuações também não contribuem. Todos ali abandonam seu naturalismo cênico para se render a diversos estereótipos – e se Depp se assemelha a uma versão mais esquizofrênica e insana da cantora Madonna, Wasikowska não traz absolutamente um pingo de expressividade para o personagem que encarna. Nem mesmo suas falas fazem sentido, visto que ela parece ter controle total de tudo e saber exatamente o que fazer até quando não tem a mínima ideia do que está acontecendo.

‘Alice no País das Maravilhas’ não funciona. Não faz sentido, e não do modo como Carroll queria que nos sentíssemos, mas sim como algo esquisito e sem qualquer ponto satisfatório palpável. Na verdade, o longa tem grande êxito naquilo que não buscava: reafirmar o desnecessário crescimento de remakes para a indústria cinematográfica.

Assista:
