Bette Davis não é considerada uma das maiores atrizes de todos os tempos por qualquer motivo: cercada por um misticismo acerca de sua própria personalidade e dona das mais inimagináveis rixas com outros grandes nomes da indústria do cinema norte-americano – incluindo o tão famoso e eterno conflito entre ela e Joan Crawford -, Davis ainda é relembrada como uma das divas da cultura pop e serve de inspiração para nomes muito conhecidos da contemporaneidade, como Susan Sarandon, que a interpretou na série ‘Feud’. E é claro que, mesmo com a interminável lista de trabalhos para as telonas, alguns dos filmes ainda são imediatamente associados ao seu nome, sendo ‘A Malvada’ uma das mais memoráveis, mesmo setenta anos após seu lançamento oficial.
Na Era de Ouro de Hollywood, cujo ápice insurgiu pouco tempo depois da chegada do cinema falado, era muito comum fazer inúmeras alusões metalinguísticas à própria indústria. Em meio à consolidação da sétima arte, narrativas tragicômicas ou melodramáticas acerca das próprias produções fílmicas sempre caíram no gosto popular (‘Cantando na Chuva’ está aí para provar que pode ser didático e hilário ao mesmo tempo) – e é claro que o escopo criado por Joseph L. Mankiewicz não fugiria muito a essa ainda pouco explorada zona. Entretanto, ao invés de conduzir seus esforços acerca das fluidas investidas cinematográficas, ele retorna para o refinamento teatral e até mesmo constrói o longa-metragem baseando-se na perspectiva de um público acostumado aos palcos.
A obra já busca algumas referências de iterações predecessoras para compor o tempo ao qual somos apresentados – é possível ver certas inclinações para o clássico ‘Cidadão Kane’, principalmente nos primeiros minutos do ato de abertura: a cena é descrita por um narrador que logo se metamorfoseia em diversas outras personas; estamos no meio de uma importante premiação, e os heróis e heroínas nos são apresentados, com enfoque na belíssima Eve Harrington (Anne Baxter), a mais jovem atriz a ser condecorada pela academia. Entretanto, as coisas não parecem ser exatamente como se mostram, visto que outras personalidades não gostam até mesmo da simples presença de Eve – e, relembrando-se com ironia a ascensão de uma estrela outrora desconhecida, o crítico Addison (George Sanders) nos leva em uma jornada marcada por intrigas e traições.
De forma resumida, a trama se vale da velha premissa “nem tudo é o que parece ser”. Entretanto, ao contrário de outras produções do gênero, a história envolvendo as personagens preza por uma sutileza tão grande que fica quase impossível notar nuances consideráveis que coloquem em xeque a natureza dos protagonistas. É a partir disso que retornamos para uma noite chuvosa, na qual Margo Channing (Davis) acabou de realizar mais uma performance aplaudível na Broadway e recebe a visita de uma fã desconhecida – Eve -, através de sua melhor amiga Karen (Celeste Holm). Tal encontro não apenas desestabiliza estruturas que já algum tempo ameaçavam ruir, como também lançam uma nova ordem que caminha no mesmo passo de um tour-de-force de ascensão e queda.
A personagem de Baxter é a típica moça virginal e inocente com um passado trágico que imediatamente toca o coração de veteranas do teatro movidas pela fama e pelo sucesso. Sua personalidade vai de encontro ao de Margo, cujo vício pelo cigarro e pela bebida dialogam a uma decadência premeditada – em diversos momentos ela se mostra superior e, num paradoxo reforçado tanto pela atuação de Davis quanto pelo roteiro assinado também por Mankiewicz, sofre com o fato de sua carreira estar chegando ao fim. Já aqui percebemos a multiplicidade temática do longa, o qual faz certas críticas ao sexismo de Hollywood, em cujo a “durabilidade” das mulheres era muito menor que a dos homens. É incrível como essa percepção precoce nos revela muito ao modo como tudo será carregado – e já entrega a ideia de que Eve realmente veio para tomar o lugar da rainha do teatro.
Porém, isso não se mantém a uma paranoia por parte de Margo. Não estamos lidando com um suspense psicológico, mas com um drama artístico que belissimamente brinca com a ideia do “será que?”. A presença de um suposto guardião, encarnado por Thelma Ritter como a empregada Birdie, tenta avisá-la de que a jovem não é quem diz ser; a veterana não lhe dá ouvidos e prefere acreditar no bom gosto de sua melhor amiga e em sua intuição, levando-a a se mudar para o próprio bairro e auxiliá-la de perto nas performances. A presença de Eve é o principal catalisador para certos conflitos internos que começam a pipocar nos vários núcleos, ameaçando a amizade de Margo com Karen e até mesmo com o diretor/produtor das peças Bill (Gary Merrill) e seu par romântico, Lloyd (Hugh Marlowe). Logo, vai se tornando cada vez mais claro que a aspirante à atriz na verdade apenas procurava um jeito mais rápido de mergulhar no show business – e encontrou uma facilitadora que, apesar de experiente, se mostrou tão ingênua quanto.
Este não é um filme memorável por suas inovações técnicas: a direção é precisa e segura, mas utiliza-se de um espaço predominantemente fechado – é possível contar nos dedos o número de cenas externas – para não se movimentar muito, e sim valer-se de alguns cortes interessante para fornecer um pouco mais de dinamismo. Todavia, é a estrutura do roteiro e a química do elenco que sustentam o ritmo e consegue desviar-se de vários precipícios monótonos, mesmo tropeçando algumas vezes pelo caminho. Davis, embarcando em um arco perscrutado de altos e baixos, rouba a cena mais de uma vez com sua incrível perspicácia e versatilidade, ao mesmo tempo em que compartilha certas glórias com os outros atores e atrizes.
Eventualmente, Eve prova do próprio veneno e se torna uma marionete de Addison, o qual descobre tudo acerca de seu misterioso passado e desvenda as inúmeras mentiras que contou para se aproximar de Margo. Após receber o tão aguardado prêmio, tenta se redimir com um discurso profundo sobre como aquelas figuras lhe inspiraram, e toda a expressão de Baxter se resume aos seus olhos – até mesmo a nitidez do fuzilamento que lança ao seu nêmese. Entretanto, ela percebe que sua vida está vazia e à mercê de outro alguém, e dá espaço para ser substituída por um rosto ainda mais jovem e que faz parte da incrível e emocionante cena final de “tomada de poder”.
‘A Malvada’ é uma obra mais profunda do que parece: além dos sub-temas recorrentes de crítica ao próprio entretenimento efêmero e seus ídolos momentâneos, toda a perspectiva pode até não representar uma bruta quebra de paradigmas estéticos, mas definitivamente mostrou que o clássico ainda estava em voga – e mergulhou numa perspectiva diferente e apaixonante de se contar histórias.