Se existe alguém com grande afeição e afinidade com o macabro e o distorcido, esse alguém definitivamente é Tim Burton. O diretor é responsável por trazer à vida alguns dos personagens mais icônicos do cinema contemporâneo – e, dentro de sua filmografia, podemos dizer sem sombra de dúvida que os personagens em foco fogem do padrão considerado normal dentro de uma sociedade blasé e que preza pela padronização. E apesar de suas obras mais recentes serem memoráveis, como ‘A Noiva Cadáver’ e ‘Frankenweenie’, foi ‘Edward Mãos de Tesoura’ que o colocou na visão da indústria do entretenimento até mesmo mais que seus projetos anteriores.
Mais uma vez, Burton retoma seu trabalho com o compositor Danny Elfman como forma de criar uma atmosfera inebriante, encantadora e misteriosa, através da harmonização de diversos instrumentos como o piano e o violoncelo aliados aos efeitos sonoros mecanizados e enferrujados que volta e meia aparecem em diversas sequências, incluindo durante os créditos iniciais. Ainda que tome um tempo mais que o necessário, essa introdução já consegue fornecer uma identidade para a narrativa que se seguirá, principalmente por ser pautada nas mesmas configurações do cinema clássicos dos anos 1910 e 1920, com lentas transições em fusão que conferem uma estética mais vintage e saborosa para os espectadores.
A trilha sonora acompanha a história inteira, e começa de forma mais branda com o aparecimento de nossa narradora-personagem, uma versão mais velha da protagonista Kim (Winona Ryder), a qual conta uma mágica história romântica e quase impossível de acontecer para sua pequena neta durante uma noite perscrutada por fortes nevascas. Ela então retorna para sua adolescência em uma pequena e pacata comunidade interiorana que também era conhecida por ser lar de uma criatura não exatamente humana, mas que carregava traços de uma invenção inesperada. Esse ser sobrenatural e aparentemente inofensivo é o personagem-título, que mora sozinho num imenso casarão até ser resgatado pela mãe de Kim, Peg (Dianne Wiest), uma revendedora de cosméticos completamente desprovida de preconceitos e que age de forma empática perante o estranho e assustado jovem.
Johnny Depp marca sua primeira parceria com Burton ao encarnar Edward, um personagem que carrega feições humanas exceto pelas mãos, as quais na verdade foram substituídas por um maquinário que simula as mesmas funções, porém com afiadas tesouras que o transformam, dentro de uma perspectiva conservadora e moldada por um “padrão estético”, em um forasteiro que é introduzido dentro daquele grupo de pessoas. Entretanto, diferente de outras narrativas do gênero, seu retorno para a vida em conjunto é marcada por uma fascinação exacerbada em detrimento de repulsa e medo. Cada um dos vizinhos se encanta com sua caracterização especial e como ele também parece não se importar muito com isso, visto que permaneceu quase toda a vida sob os cuidados de seu criador e não teve contato com ninguém de fora.
Em última instância, o filme funciona como forma de poetizar aquilo que é considerado “fora do normal”. A beleza do personagem principal está justamente em sua excentricidade, em sua construção nem um pouco dentro das saídas convencionais e como sua personalidade altruísta e ingênua é capaz de cativar todos à sua volta – não é surpresa que a jovem Kim acabe se apaixonando por sua transcendência, visto que não é como nenhum dos outros garotos que passaram por sua vida. Uma aventura romântica que segue uma linha tragicômica é a frase que mais define essa linda obra de Burton, mas não se pode deixar de dizer que ela falha quando não se aprofunda em algumas outras questões, principalmente a não aceitação que, eventualmente, permanece em um escopo mais superficial.
Entretanto, as forças antagônicas existem sim. Anthony Michael Hall encarna o egocêntrico e valentão Jim, ex-namorado de Kim que enxerga Edward como uma aberração, porém utiliza sua condição para benefício próprio, principalmente durante uma das sequência que envolve uma má planejada tentativa de assalto. Tais acontecimentos também servem como base para uma superficial análise sobre as questões do bem e do mal e sobre como o fato do protagonista ter vivido longe de outras pessoas por tanto tempo impedem que ele tenha um julgamento racional sobre o que é certo e errado. Mais uma vez, essas perspectivas intimistas não encontram muito espaço dentro do escopo arquitetado por Burton, visto que o cineasta prefere uma história redonda e fechada a investidas mais ousadas em temas significativamente pesados – e isso de forma alguma retira a complexidade do produto final.
O diretor também faz bom uso de suas habilidades artísticas aqui, até mais que em sua bizarra obra ‘Os Fantasmas se Divertem’. Ao invés de optar por saídas premeditáveis, ele busca inspiração no expressionismo alemão, marcado pelos cenários tortuosos e imensos, e até mesmo inclina-se um pouco mais para a arquitetura gótica quando pensamos no lar de Edward: a mansão segue um padrão românico-medieval, com torres pontiagudas, janelas ogivais e pouca entrada de luz, além de paredes suntuosas que mais se assemelham a corredores de calabouços. Tudo isso, aliado a uma fotografia escura e que preza pelo jogo com a fluidez das sombras, contrasta com a saturação do vilarejo, marcado pela existência profusa de várias cores e por uma iluminação mais difusa. Tais características dissonantes encontram um jeito de se unir à medida em que o personagem é adotado pela comunidade, dando seu toque a uma linearidade extenuante com designs de cerca-viva e lindos cortes de cabelo.
Com a chegada do terceiro ato, a jovem criatura percebe que não pertence e nunca pertencerá ao mundo ao qual foi arrastado sem precedentes. Nem mesmo sua nova família se parece com ele, o que reafirma sua condição como forasteiro e o faz voltar para sua casa, sendo perseguido tanto pelos policiais quanto por aqueles que desejam o seu mal – como Jim. Logo, ele e Kim consegue forjar sua morte para que tudo volte ao normal, ao menos externamente, e um final feliz consiga o seu lugar em meio a um constante confronto de ideologias. E devo dizer que esses momentos são os mais bem estruturados quando pensamos em técnicas, e talvez Burton pudesse ter apenas seguido em uma linha mais equilibrada entre o drama e a comédia, visto que não possui um tato tão apurado para dirigir cenas de ação.
‘Edward Mãos de Tesoura’ é uma ode ao estranho. De forma bem simbólica e metafórica, este tornou-se um dos trabalhos mais memoráveis do excêntrico cineasta, principalmente por trazer com tanto carinho e sutileza uma visão mais humanizada das “aberrações da natureza” em uma aventura satisfatória e interessante.