sábado, abril 27, 2024

Crítica | ‘No Ritmo da Vida’ é um potente e conflitante drama LGBTQIA+ intergeracional

Quando pensamos em dramas LGBTQIA+, normalmente a narrativa principal gira em torno de um membro da comunidade que luta contra o preconceito que sofre numa base diária – e que, muitas vezes, se rende ao melodrama. Considerando que há alguns anos já lidamos com esse tipo de temática, faz-se necessário a busca de outras incursões que fujam do convencionalismo e que apresentem histórias tão relacionáveis quanto a tragédia burlesca. E é nisso que o recente ‘No Ritmo da Vida’, que estreou nos últimos dias nos cinemas nacionais, procura focar.

Dirigido, escrito e produzido por Phil Connell (que faz sua estreia com os longas-metragens), a obra teve seu lançamento oficial em festivais independentes antes de ganhar uma exibição maior. A trama é centrada em Russell (Thomas Dupleesie), um jovem rapaz gay que, depois de um bruto término, resolver viajar para o pequeno Condado de Prince Edward e visitar sua avó, Margaret (interpretada pela lendária Cloris Leachman), que está debilitada, mas se recusa a ter ajuda de pessoas que não façam parte da família. Lá, Russell começa a analisar sua vida, sua paixão pela arte drag e a conflituosa relação que carrega com o desejo de ser ator, além de perceber que a avó precisa dele mais do que nunca. É nesse quesito que a estrutura do filme se mostra sólida o bastante para nos carregar durante uma hora e meia (um tempo ótimo para entregar todas as mensagens que deseja).

Connell trabalhara com curtas-metragens no passado, mas não foi até então que pôde explorar sua visão artística por completo. No final das contas, o público percebe inúmeras fórmulas do gênero sendo utilizadas – exigindo que o realizador foque em elementos que sabe que irão nos conquistar, como o elenco. Dupleesie faz um ótimo trabalho como o protagonista, adotando uma personalidade que foge do “maniqueísmo super-heroico” que tanto vemos no escopo mainstream e deixando claro que tem problemas pessoais que precisa resolver, incluindo seu temperamento genioso e uma tendência em esconder quem é das outras pessoas. Afinal, quando está se apresentando dentro de seu alter-ego, ele se transforma em uma pessoa poderosa e que não tem medo de falar o que pensa.

Mas é Leachman quem rouba o holofote ao se render com paixão irretocável à persona de Margaret: apesar de certos fantasmas do passado não serem explorados como deveriam, descobrimos que ela teve um tóxico relacionamento com o falecido marido, que foi arrastado para o mundo do álcool e de jogou da varanda de um hotel em um acesso psicótico; além disso, tinha o sonho de ser uma patinadora artística, que teve de abandonar em virtude da guerra que acometeu sua juventude e de “responsabilidades sociais” que enterraram suas ambições. Leachman, uma das atrizes de maior nome na história do entretenimento, prova com o longa-metragem que, mesmo com 94 anos, é capaz de entregar um tour-de-force aplaudível e invejável (deixando-nos no começo do ano passado com uma marca sensível e tocante).

Os deslizes da produção são pontuais e se restringem a elementos técnicos, como o exagero niilista do roteiro, cujos diálogos por vezes esbarram no melodrama metafórico, e a costumeira direção de gênero. Entretanto, é notável como Connell, quando possível, faz um ótimo uso de simetria para intercalar os conflitos intergeracionais dos protagonistas, sem diminuir suas dores e utilizando-os como comparativos entre momentos muito diferentes da história. O mais interessante é o fato de os obstáculos não estarem na superfície da falta de aceitação pela família, e sim em questões tangíveis sobre trabalho, carreira e perspectiva de vida – ora, Russell é uma máquina performativa e não só faz dublagens de clássicas músicas, como as incorpora em exibições teatrais que o transformam no centro do espetáculo. As cenas não são apenas jogadas para compor um fragmentado produto, mas partem de um jogo de ação e reação que culmina numa resolução poética e memorialística.

Se nos meses anteriores tivemos a tentativa fracassada de ‘Everybody’s Talking About Jamie’ em trazer a arte drag para o mainstream, ‘No Ritmo da Vida’ alcança sucesso considerável sem cair no pedantismo e arquitetando arcos críveis e apaixonantes. A jornada dos personagens atravessa um oceano de sentimentos e de segredos que virão à tona, eventualmente, e se cruza em um limiar de passado, presente e futuro – com o auxílio de uma paleta de cores que se afasta do fabulesco e aposta fichar num realismo dramático funcional.

Não deixe de assistir:

É bem provável que o filme passe longe de seu radar, porém, se tiver uma chance de assistir a ele nos cinemas, sugiro que vá: a honestidade da narrativa é um de seus bens mais preciosos e merece ser apreciada até mesmo dentro de suas limitações – e garanto que, quando sair da sala, vai querer correr atrás de seus sonhos como se fosse seu último dia de vida.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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