sábado , 2 novembro , 2024

Artigo | As raízes históricas de ‘Lovecraft Country’, a nova sensação da HBO

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Lovecraft Country estreou ontem (16) na HBO e, sem sombra de dúvidas, foi um dos maiores lançamentos do ano ao capturar a essência não apenas de seu romance original, mas também do icônico escritor que o inspirou: H.P. Lovecraft. Criando uma atmosfera competente e envolvente do começo ao fim, a série mal chegou ao canal pago e já se tornou uma das favoritas dos fãs de gênero – ainda mais pela investida equilibrada entre a nostalgia e a contemporaneidade, recheando seu escopo sobrenatural com pungentes críticas sociais.

Entretanto, diferente de outras produções que mascaram suas verdadeiras análises sociológicas com metáforas e alegorias bem produzidas, a produção televisiva e o livro, no caso, valem-se de um escopo bastante verdadeiro que instaurou-se em meados do século passado nos Estados Unidos: a Era Jim Crow.

Para aqueles que não estão familiarizados com essa época da história, pense como uma construção análoga ao período da escravidão – travestida com um assertivo discurso que era aceito pelos supremacistas brancos norte-americanos e por grande parte do mundo que insistia em reproduzir discursos segregacionistas e neoimperialistas. Esse período foi marcado por leis racistas instauradas entre o final do século XIX e o início do século XX pelas legislaturas estaduais dominadas pelos Democratas e trazendo reminiscências dos Estados Confederados da América (uma união política do sul estadunidense que promovia a oligarquia agrária e a escravidão, como resposta às incursões abolicionistas de Abraham Lincoln e sua consequente vitória presidencial).

O princípio legal dessas práticas supracitadas pode ser resumido na premissa “separados, mas iguais”. A explicação era simples e condenatória: instalações e transportes públicos eram divididas entre as destinadas para os brancos e as destinadas para os negros – às vezes, nem mesmo existindo para as pessoas de cor. A ideia era ter um maior controle daqueles que não seguiam o padrão eurocêntrico imposto pelas doutrinas de expansão e invasão séculos atrás, institucionalizando desvantagens econômicas, sociais, educacionais e políticas principalmente para os afrodescendentes – que não tinham o direito de dividir o mesmo banheiro ou as mesmas salas de aula com as pessoas brancas.

Essas leis foram declaradas inconstitucionais apenas em 1954, pela Suprema Corte e pelo juiz Earl Warren. Porém, a promulgação de uma nova lei “igualitária” não foi adotada por vários estados durante muito tempo – como é mostrado na série. Logo no primeiro capítulo, o protagonista Atticus (Jonathan Majors) expressa sua satisfação de deixar para trás uma sociedade ainda compenetrada na validação das emendas de Jim Crow e retornar para sua casa, uma espécie de “antro paradisíaco” e seguro para os negros. Conforme o episódio se desenrola, percebe que o racismo e a condenação da comunidade afrodescendente permaneceu viva, colocando os nossos heróis como alvos de atitudes rechaçáveis e ameaças concretas de morte apenas pela cor de sua pele.

A verdade é que as leis supracitadas “saíram de circulação” com a instauração da Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei dos Direitos de Voto, em 1965 – não que isso tenha implicado uma mudança considerável para o tratamento dos negros pelos brancos. Na verdade, as raízes históricas que solidificam a estrutura de Lovecraft Country apresentam um cenário que continua, na segunda década do século XXI, discriminatório por razões supremacistas – como o genocídio da população negra em território nacional, mais especificamente, pelo assassinato de George Floyd, Breonna Taylor e Ahmaud Arbery nos Estados Unidos em 2020. A sutil comparação entre a produção e a realidade contemporânea tem a intenção de nos fazer refletir sobre questões como abismo sociocultural e privilégios raciais – transportando-nos para uma época marcada por mazelas e marginalizações.

Mas o respaldo realista não se limita apenas às inflexões sociais, alastrando-se para as artísticas com força descomunal. Misha Green, responsável pela adaptação televisiva, prova seu conhecimento acerca dos conceitos de contracultura e de apropriação cultural inúmeras vezes, inclusive quando traz clássicos nomes do cenário musical para pincelar a backstory e a personalidade dos personagens: temos, por exemplo, a adoração de Letitia (Jurnee Smollett) pelo lendário guitarrista B.B. King, um dos principais nomes do R&B e do rock’n’roll; temos a presença ilustre de Big Maybelle na homenagem de “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On”, um dos clássicos do blues cinquentista. E, em um aspecto mais categórico, o poderoso recorte do discurso do escritor, ensaísta e ativista James Baldwin (“o sonho [americano] existe às curtas do negro americano”).

Lovecraft Country usa as incursões sobrenaturais como impulso para as revelações e as explorações da monstruosidade das práticas racistas e, sem cair nas ruínas do panfletarismo político (algo que deveria fazer, de qualquer forma), nos apresenta a práticas que não julgávamos possíveis de existir. Há, por exemplo, uma sequência em que o trio principal se vê no centro de uma sundown town (cidade do pôr do sol), condados ou cidades que praticavam deliberadamente a segregação racial até mesmo depois do fim da Era Jim Crow, exigindo a saída da população negra quando o sol se posse no horizonte – caso contrário, eles cometeriam atrocidades inimagináveis (incluindo tortura e assassinato) para manter seu território branco por completo. Em outra sequência, temos a estereotipada e submissa imagem da mulher negra estampando um painel da marca Aunt Jemima – que a coloca na situação de serviçal e de responsável pelas refeições dos brancos.

Emblemática é a cena em que uma fila de negros espera sob o sol escaldante do meio-oeste estadunidense um “ônibus de cor”, abaixo de uma propaganda do supracitado sonho americano – e essa é apenas a cereja do bolo de uma releitura necessária dos problemáticos textos de Lovecraft, denunciando o que precisa ser denunciado e fazendo algo que, hoje, é mais necessário que nunca.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Entretanto, diferente de outras produções que mascaram suas verdadeiras análises sociológicas com metáforas e alegorias bem produzidas, a produção televisiva e o livro, no caso, valem-se de um escopo bastante verdadeiro que instaurou-se em meados do século passado nos Estados Unidos: a Era Jim Crow.

Para aqueles que não estão familiarizados com essa época da história, pense como uma construção análoga ao período da escravidão – travestida com um assertivo discurso que era aceito pelos supremacistas brancos norte-americanos e por grande parte do mundo que insistia em reproduzir discursos segregacionistas e neoimperialistas. Esse período foi marcado por leis racistas instauradas entre o final do século XIX e o início do século XX pelas legislaturas estaduais dominadas pelos Democratas e trazendo reminiscências dos Estados Confederados da América (uma união política do sul estadunidense que promovia a oligarquia agrária e a escravidão, como resposta às incursões abolicionistas de Abraham Lincoln e sua consequente vitória presidencial).

O princípio legal dessas práticas supracitadas pode ser resumido na premissa “separados, mas iguais”. A explicação era simples e condenatória: instalações e transportes públicos eram divididas entre as destinadas para os brancos e as destinadas para os negros – às vezes, nem mesmo existindo para as pessoas de cor. A ideia era ter um maior controle daqueles que não seguiam o padrão eurocêntrico imposto pelas doutrinas de expansão e invasão séculos atrás, institucionalizando desvantagens econômicas, sociais, educacionais e políticas principalmente para os afrodescendentes – que não tinham o direito de dividir o mesmo banheiro ou as mesmas salas de aula com as pessoas brancas.

Essas leis foram declaradas inconstitucionais apenas em 1954, pela Suprema Corte e pelo juiz Earl Warren. Porém, a promulgação de uma nova lei “igualitária” não foi adotada por vários estados durante muito tempo – como é mostrado na série. Logo no primeiro capítulo, o protagonista Atticus (Jonathan Majors) expressa sua satisfação de deixar para trás uma sociedade ainda compenetrada na validação das emendas de Jim Crow e retornar para sua casa, uma espécie de “antro paradisíaco” e seguro para os negros. Conforme o episódio se desenrola, percebe que o racismo e a condenação da comunidade afrodescendente permaneceu viva, colocando os nossos heróis como alvos de atitudes rechaçáveis e ameaças concretas de morte apenas pela cor de sua pele.

A verdade é que as leis supracitadas “saíram de circulação” com a instauração da Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei dos Direitos de Voto, em 1965 – não que isso tenha implicado uma mudança considerável para o tratamento dos negros pelos brancos. Na verdade, as raízes históricas que solidificam a estrutura de Lovecraft Country apresentam um cenário que continua, na segunda década do século XXI, discriminatório por razões supremacistas – como o genocídio da população negra em território nacional, mais especificamente, pelo assassinato de George Floyd, Breonna Taylor e Ahmaud Arbery nos Estados Unidos em 2020. A sutil comparação entre a produção e a realidade contemporânea tem a intenção de nos fazer refletir sobre questões como abismo sociocultural e privilégios raciais – transportando-nos para uma época marcada por mazelas e marginalizações.

Mas o respaldo realista não se limita apenas às inflexões sociais, alastrando-se para as artísticas com força descomunal. Misha Green, responsável pela adaptação televisiva, prova seu conhecimento acerca dos conceitos de contracultura e de apropriação cultural inúmeras vezes, inclusive quando traz clássicos nomes do cenário musical para pincelar a backstory e a personalidade dos personagens: temos, por exemplo, a adoração de Letitia (Jurnee Smollett) pelo lendário guitarrista B.B. King, um dos principais nomes do R&B e do rock’n’roll; temos a presença ilustre de Big Maybelle na homenagem de “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On”, um dos clássicos do blues cinquentista. E, em um aspecto mais categórico, o poderoso recorte do discurso do escritor, ensaísta e ativista James Baldwin (“o sonho [americano] existe às curtas do negro americano”).

Lovecraft Country usa as incursões sobrenaturais como impulso para as revelações e as explorações da monstruosidade das práticas racistas e, sem cair nas ruínas do panfletarismo político (algo que deveria fazer, de qualquer forma), nos apresenta a práticas que não julgávamos possíveis de existir. Há, por exemplo, uma sequência em que o trio principal se vê no centro de uma sundown town (cidade do pôr do sol), condados ou cidades que praticavam deliberadamente a segregação racial até mesmo depois do fim da Era Jim Crow, exigindo a saída da população negra quando o sol se posse no horizonte – caso contrário, eles cometeriam atrocidades inimagináveis (incluindo tortura e assassinato) para manter seu território branco por completo. Em outra sequência, temos a estereotipada e submissa imagem da mulher negra estampando um painel da marca Aunt Jemima – que a coloca na situação de serviçal e de responsável pelas refeições dos brancos.

Emblemática é a cena em que uma fila de negros espera sob o sol escaldante do meio-oeste estadunidense um “ônibus de cor”, abaixo de uma propaganda do supracitado sonho americano – e essa é apenas a cereja do bolo de uma releitura necessária dos problemáticos textos de Lovecraft, denunciando o que precisa ser denunciado e fazendo algo que, hoje, é mais necessário que nunca.

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