quarta-feira , 4 dezembro , 2024

Artigo | ‘Barbie’ é muito mais complexo e profundo do que aparenta [SPOILERS]

Cuidado: muitos spoilers à frente. 

Barbie chegou aos cinemas nacionais hoje, 20 de julho – e já se consagrou como um dos melhores filmes do ano. 



Estrelado por Margot Robbie como uma das versões da boneca titular, a trama acompanha Barbie em uma aventura que a faz cruzar a fronteira entre a Barbieland e o Mundo Real para poder consertar uma fenda aberta entre as duas realidades e restaurar a própria vida – livre de problemas, pensamentos destrutivos, sentimentos conflitantes e pés chatos. Contando com a direção de Greta Gerwig, que também fica responsável pelo roteiro ao lado de Noah Baumbach, o longa-metragem não é apenas uma colorida e divertida produção, mas esconde atrás do rosa-choque e das hilárias piadas metalinguísticas uma profunda exploração sobre a vida, em si, e sobre os inúmeros problemas estruturais que permanecem infestando a sociedade. 

Robbie interpreta a Barbie Estereotipada, como ela mesmo profere no filme: ela é perfeita, todos os dias são gloriosos e ela sabe que foi responsável por causar mudanças no mundo e, principalmente, nas mulheres – levando-as a encontrar o empoderamento. O problema é que, morando em Barbieland, ela não sabe o que acontece do outro lado e não imagina que a humanidade é muito mais complicada que isso (e que obstáculos de gênero vêm sendo enfrentados desde sempre). Ao cruzar o limiar para o Mundo Real, ela percebe que as mensagens de libertação e de autonomia são ótimas no papel; mas a verdade é que, mesmo em meados do século XXI, a disparidade entre homens e mulheres continua gritante. 

O tema do patriarcado é, como poderíamos imaginar, a força-motriz da obra. Gerwig já havia mergulhado em explorações similares com a dramédia coming-of-age ‘Lady Bird’ e com a adaptação do clássico romance ‘Adoráveis Mulheres’, mas aqui ela utiliza um discurso retórico como impulso cômico, quebrando as expectativas à medida que Barbie passa a demonstrar discernimento e reflexões sobre o que significa existir enquanto mulher – ou, ao menos, enquanto representação da figura feminina. Em um universo ideal, o advento do patriarcado nunca existiu, e isso explica o motivo de tal ideologia ser aceita com tanto afoito quando levada por Ken (Ryan Gosling) para Barbieland, mesmo inadvertidamente. 

Aliado às inflexões sobre gênero, temos uma questão existencialista que insurge desde o começo da narrativa de maneira fluida e simples (e não tão didática assim, porque o objetivo não é explicar aos espectadores o que significa contemplar o sentido da vida, e sim permitir que eles tirem as próprias conclusões). No momento em que Barbie pergunta aos outros se eles já pensaram na morte, o roteiro abre espaço para considerações filosóficas que todos nós já enfrentamos – afinal, como nos esquecer da famigerada crise existencial? Somos bons o suficiente, ou apenas sobrevivemos dentro de um sistema quebrado? Conquistamos o que queríamos cedo o bastante, ou nos perdemos em sonhos inalcançáveis que são vendidos como produtos de mercado? Ora, a própria protagonista começa a se fazer essas perguntas, eventualmente caindo em uma espiral da qual não consegue sair sem ajuda. 

É aí que entra a construção da personagem vivida por Kate McKinnon, a Barbie Esquisita. No filme, ela é arquitetada como uma boneca que foi “brincada” das maneiras mais inesperadas por uma determinada criança, abrindo espacates o tempo todo e usando roupas que fogem do padrão das outras Barbies. Mas ela sabe quem é e serve como mentora para que a Barbie Estereotipada entenda que não deve ligar para as críticas dos outros, e sim encontrar a própria identidade e compreender que o que a torna única é ela própria. Novamente, o teor existencialista emerge, mas ganha uma camada de complacência bastante positiva com McKinnon e com sua excentricidade apaixonante. 

Como já mencionado nos parágrafos acima, o filme faz um uso constante de autorreferências e metalinguagem – e, para tanto, permite que as críticas à própria Barbie tomem forma. Aqui, Ariana Greenblat, interpretando Sasha, é o ponto-base para os comentários sobre a imagem impossível que deu origem a inúmeros distúrbios em jovens garotinhas que desejam ser que nem a Barbie – ou seja, perfeitas. Por um lado, temos o mote de “você pode ser quem quiser” carregada pela multiplicidade de bonecas em Barbieland; de outro, percebemos como o tiro sai pela culatra quando o padrão aceito por uma sociedade tradicionalista é a Barbie alta, loira, branca e magra, parecendo renegar as outras ou colocá-las em segundo plano. Não é à toa que a escolha de Robbie para interpretar a personagem principal foi certeira: ela é a representação estereotipada do que os executivos da Mattel queriam e do que eles vendem para as crianças. 

Tudo isso também serve como análise do capitalismo predatório e de que forma essa ideologia rege o modo de pensar das pessoas: Barbieland é uma utopia; o Mundo Real é, obviamente, a realidade. Ambos entram em conflito quase beligerante, emanando uma inversão de valores que continua enraizada mesmo em 2023 e que é levada às telonas da forma mais ácida possível – motivo pelo qual certas críticas afirmam que o projeto é vazio. Mas ele não é vazio, e sim sarcástico o suficiente para que as alfinetadas atinjam quem precisa ser atingido e tirem os alvos de uma zona de conforto em que estão há muito tempo. 

Uma das cenas mais impactantes é quando Barbie conhece sua criadora, Ruth Handler (vivida por Rhea Perlman). Nesse momento, Barbie está afundada em um senso de não-pertencimento e entende que, talvez, Barbieland não seja mais seu lar. Ela quer se tornar humana, mas o que isso significa? Afinal, os seres humanos são efêmeros; as ideias vivem para sempre. Barbie é uma ideia eterna, e migrá-la para um espectro em que a morte é certeira pode ser assustador – mas ao menos indica que ela poderá viver o máximo que puder em uma compleição satisfatória e que, por fim, lhe dê algum direcionamento e um sentido. Logo, o medo se transforma em melancolia, que, por fim, se concretiza em completude. 

Barbieé um filme muito mais profundo do que aparenta ser – e navega por temas sociológicos, antropológicos e filosóficos com naturalidade invejável e arrebatadora. Não é por qualquer motivo, pois, que essa multiplicidade de camadas o torne um dos grandes filmes da década que precisa ser reassistido em seus mínimos detalhes. 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Robbie interpreta a Barbie Estereotipada, como ela mesmo profere no filme: ela é perfeita, todos os dias são gloriosos e ela sabe que foi responsável por causar mudanças no mundo e, principalmente, nas mulheres – levando-as a encontrar o empoderamento. O problema é que, morando em Barbieland, ela não sabe o que acontece do outro lado e não imagina que a humanidade é muito mais complicada que isso (e que obstáculos de gênero vêm sendo enfrentados desde sempre). Ao cruzar o limiar para o Mundo Real, ela percebe que as mensagens de libertação e de autonomia são ótimas no papel; mas a verdade é que, mesmo em meados do século XXI, a disparidade entre homens e mulheres continua gritante. 

O tema do patriarcado é, como poderíamos imaginar, a força-motriz da obra. Gerwig já havia mergulhado em explorações similares com a dramédia coming-of-age ‘Lady Bird’ e com a adaptação do clássico romance ‘Adoráveis Mulheres’, mas aqui ela utiliza um discurso retórico como impulso cômico, quebrando as expectativas à medida que Barbie passa a demonstrar discernimento e reflexões sobre o que significa existir enquanto mulher – ou, ao menos, enquanto representação da figura feminina. Em um universo ideal, o advento do patriarcado nunca existiu, e isso explica o motivo de tal ideologia ser aceita com tanto afoito quando levada por Ken (Ryan Gosling) para Barbieland, mesmo inadvertidamente. 

Aliado às inflexões sobre gênero, temos uma questão existencialista que insurge desde o começo da narrativa de maneira fluida e simples (e não tão didática assim, porque o objetivo não é explicar aos espectadores o que significa contemplar o sentido da vida, e sim permitir que eles tirem as próprias conclusões). No momento em que Barbie pergunta aos outros se eles já pensaram na morte, o roteiro abre espaço para considerações filosóficas que todos nós já enfrentamos – afinal, como nos esquecer da famigerada crise existencial? Somos bons o suficiente, ou apenas sobrevivemos dentro de um sistema quebrado? Conquistamos o que queríamos cedo o bastante, ou nos perdemos em sonhos inalcançáveis que são vendidos como produtos de mercado? Ora, a própria protagonista começa a se fazer essas perguntas, eventualmente caindo em uma espiral da qual não consegue sair sem ajuda. 

É aí que entra a construção da personagem vivida por Kate McKinnon, a Barbie Esquisita. No filme, ela é arquitetada como uma boneca que foi “brincada” das maneiras mais inesperadas por uma determinada criança, abrindo espacates o tempo todo e usando roupas que fogem do padrão das outras Barbies. Mas ela sabe quem é e serve como mentora para que a Barbie Estereotipada entenda que não deve ligar para as críticas dos outros, e sim encontrar a própria identidade e compreender que o que a torna única é ela própria. Novamente, o teor existencialista emerge, mas ganha uma camada de complacência bastante positiva com McKinnon e com sua excentricidade apaixonante. 

Como já mencionado nos parágrafos acima, o filme faz um uso constante de autorreferências e metalinguagem – e, para tanto, permite que as críticas à própria Barbie tomem forma. Aqui, Ariana Greenblat, interpretando Sasha, é o ponto-base para os comentários sobre a imagem impossível que deu origem a inúmeros distúrbios em jovens garotinhas que desejam ser que nem a Barbie – ou seja, perfeitas. Por um lado, temos o mote de “você pode ser quem quiser” carregada pela multiplicidade de bonecas em Barbieland; de outro, percebemos como o tiro sai pela culatra quando o padrão aceito por uma sociedade tradicionalista é a Barbie alta, loira, branca e magra, parecendo renegar as outras ou colocá-las em segundo plano. Não é à toa que a escolha de Robbie para interpretar a personagem principal foi certeira: ela é a representação estereotipada do que os executivos da Mattel queriam e do que eles vendem para as crianças. 

Tudo isso também serve como análise do capitalismo predatório e de que forma essa ideologia rege o modo de pensar das pessoas: Barbieland é uma utopia; o Mundo Real é, obviamente, a realidade. Ambos entram em conflito quase beligerante, emanando uma inversão de valores que continua enraizada mesmo em 2023 e que é levada às telonas da forma mais ácida possível – motivo pelo qual certas críticas afirmam que o projeto é vazio. Mas ele não é vazio, e sim sarcástico o suficiente para que as alfinetadas atinjam quem precisa ser atingido e tirem os alvos de uma zona de conforto em que estão há muito tempo. 

Uma das cenas mais impactantes é quando Barbie conhece sua criadora, Ruth Handler (vivida por Rhea Perlman). Nesse momento, Barbie está afundada em um senso de não-pertencimento e entende que, talvez, Barbieland não seja mais seu lar. Ela quer se tornar humana, mas o que isso significa? Afinal, os seres humanos são efêmeros; as ideias vivem para sempre. Barbie é uma ideia eterna, e migrá-la para um espectro em que a morte é certeira pode ser assustador – mas ao menos indica que ela poderá viver o máximo que puder em uma compleição satisfatória e que, por fim, lhe dê algum direcionamento e um sentido. Logo, o medo se transforma em melancolia, que, por fim, se concretiza em completude. 

Barbieé um filme muito mais profundo do que aparenta ser – e navega por temas sociológicos, antropológicos e filosóficos com naturalidade invejável e arrebatadora. Não é por qualquer motivo, pois, que essa multiplicidade de camadas o torne um dos grandes filmes da década que precisa ser reassistido em seus mínimos detalhes. 

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