Em uma retrospectiva acerca do clássico ‘Chinatown’, a versão remasterizada do filme trouxe revelações sobre os bastidores do drama detetivesco dirigido por Roman Polanski e assinado por Robert Towne. Nas discussões proferidas pela dupla, ao lado do produtor Robert Evans, o diretor, que já mergulhava de cabeça no cinema hollywoodiano e saía de um sucesso tremendo com o terror ‘O Bebê de Rosemary’, argumentava com todas as forças que o final formulaico dos longas-metragens do gênero deveria ser mudado: Evelyn, a suposta “donzela em perigo” que outrora seria integrada aos contos de Sir Arthur Conan Doyle e ao ultrarromantismo gótico escolhido por Bram Stoker, deveria morrer.
É claro que essa inesperada ideia causou bastante controvérsia na época; afinal, as pessoas desejavam, em um momento em que praticamente todos os conflitos começavam a se acalmar (dando abertura para uma década de renascimento das sociedades), um final feliz. Logo, pensar na morte da mocinha, do arquétipo da inocência e do altruísmo sobre-humano que remontavam aos séculos passados, era inconcebível. E o resultado não poderia ser outro: Polanski, depois de entrar em vários debates com seu time criativo, resolveu reescrever o roteiro de Towne e deu um final chocante e frustrante, por todos os motivos certos, a uma das protagonistas. Não é surpresa que, quase cinco décadas depois de seu lançamento, ‘Chinatown’ continue num patamar bastante seleto dos melhores filmes já feitos até hoje.
A premissa é bastante atribuída à época de ouro da indústria cinematográfica, drenando inspiração das produções lançadas entre os anos 1940 e 1950. O enredo é centrado em Jake Gittes (Jack Nicholson na performance que o lançaria numa carreira astronômica), um investigador particular que é contratado por uma mulher chamada Evelyn Mulwray para descobrir se seu marido, Hollis, tem mesmo uma amante. Entretanto, depois de segui-los por alguns lugares, ele é contatado pela verdadeira Sra. Mulwray (agora interpretada por Faye Dunaway), que o processa por quase ter arruinado seu casamento e sua vida – ainda mais considerando que a família em questão é extremamente poderosa. Mais as coisas não terminam por aí: Gittes percebe que algo está errado e que, se alguém se passou por Evelyn para destruir a reputação de Hollis, a história ainda está bem longe de acabar.
Dito e feito: poucos dias depois, em uma tentativa sem sucesso de encontrar o Sr. Mulwray, ele aparece morto, com o pescoço quebrado, no meio de uma barragem. E é nesse momento que Jake é envolvido por uma trama intrincada de falcatruas, mentiras e golpes econômicos cuja problemática é apenas a ponta de um iceberg perigoso e bastante mortal.
‘Chinatown’ não é apenas um filme com uma narrativa redonda: ele é, na verdade, uma homenagem às tragédias gregas e shakespearianas que tanto influenciam realizadores e romancistas, cronistas e artistas, a delinear apresentações perfeitas que nos levem a um crescente estado de catarse cuja epifania é irreversível e irretocável. Essa representação neo-noir não apenas lançou a carreira de Nicholson e reafirmou Dunaway como um dos rostos mais prolíficos do entretenimento, mas mudou o espectro familiar e repetitivo dos contos de mistério e suspense, descontruindo e reerguendo estereótipos, como o fato da personagem de Dunaway dizer adeus do modo mais abrupto possível. Ou então a construção do arco de Jake, que é calcado como um cético e ácido detetive com ares de Sherlock Holmes – mas que, eventualmente, não consegue fazer justiça e “limpar” um traumático passado. Ou até mesmo a ideia batida das fábulas e contos de fada, cujo final feliz é transmutado num retorno forçado à essência maléfica do próprio humano.
De fato, o roteiro de Towne é brilhante por nos levar a um caminho bem diferente do que se imagina: ele guia o público através de um mundo onde existe o certo e o errado, e onde Gittes é a representação do que há na metade. Almejando sempre a viver de modo limpo, ganhando seu dinheiro fazendo apenas o que lhe pedem – isso é, até cruzar caminho com Evelyn. A partir daí, tudo o que conhece é colocado em xeque: seus trabalhos em Los Angeles adquirem uma dimensão catastrófica que envolve a Guerra das Águas da Califórnia, o enfrentamento de magnatas ruralistas e de fazendeiros se subsistência que lutam pelo controle de uma commodity de grande valor numa área desértica. Ele acaba se envolvendo com sua cliente mais do que deve, traçando um enlace romântico bastante conhecido na literatura e no cinema – apenas para duvidar de suas histórias “mirabolantes” e arrancar de seu âmago um segredo que envolve o pedófilo pai e a mulher que mantém em uma casa afastada: sua irmã e filha, Katherine (Belinda Palmer).
As múltiplas reviravoltas constroem-se de modo bastante fluido, convidando o espectador a acompanhar a ascensão e a queda de Jake. Conforme fica claro para nós com a transição do segundo para o terceiro ato, o detetive anteriormente trabalhava em Chinatown, um bairro de Manhattan que emprestou seu nome ao título da obra. Lá, ele acabou sendo responsável pela morte de uma mulher, afastando-se da polícia local e mudando-se para a Costa Oeste buscando uma purgação através do duro trabalho. Mas todas as suas atribuições heroicas caem por terra quando ele vê o vilão, encarnado por John Huston, se safando das punições que merecia, seu par romântico levando uma bala na cabeça e seu passando voltando à tona com força descomunal.
O longa transforma-se à medida que o pior lado da humanidade se torna protagonista da história e, quanto mais a justiça se mostra incapaz de resolver o que está errado, Jake está um passo mais perto de reviver o que não desejava. E, no final das contas, ele percebe do pior jeito possível que suas tentativas de nada adiantaram – dando origem à icônica frase: “esqueça, Jake. É Chinatown”.